Steven Spielberg

cine | As Aventuras de Tintim

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Explicar um pouco sobre como descobri os quadrinhos de Tintim talvez nos ajude a entender por que me decepcionei com esta adaptação de Steven Spielberg.

Vai se rápido, prometo.

Comecei a ler os livros do Hergé aos 12-13 anos, numa época em que eu ainda tentava me adaptar (sem sucesso) a uma adolescência solitária numa cidade nova, Brasília. Era uma fase de descontentamento e insatisfação — uma puberdade, por isso, muito típica. Eu não conseguia me identificar, talvez por me achar absolutamente especial, com nada que era muito popular. As HQs da Marvel e da DC, por exemplo, me pareciam todas aborrecidas.

Era com esse espírito very snobbish, de rebeldezinho sem causa que, na biblioteca da Cultura Inglesa, eu virava as páginas das edições britânicas daqueles livrões bonitos de capa dura. O que me atraía nas histórias de Tintim era o que eu não encontrava num gibi do, digamos, Capitão América: Hergé me parecia menos preocupado em descrever cenas de ação e mais em transmitir o deslumbre da descoberta, a ânsia pela aventura, o contato de um garoto incomum (porque nosso herói, no caso, compensava com inteligência o que faltava em tônus muscular) com ambientes desconhecidos. Tintim não era um investigador de polícia, não era um super-herói, não era um justiceiro — mas um jornalista movido pela curiosidade, apenas isso.

Não tenho motivo algum para duvidar que Steven Spielberg também viveu uma relação próxima com o personagem, ainda que, provavelmente, muito diferente daquela que eu criei. Diz-se que ele foi apresentado à ficção de Hergé ainda em 1981, quando um crítico de cinema comparou as criações do Belga ao enredo de Os Caçadores da Arca Perdida. Spielberg notou semelhanças entre Tintim e Indiana Jones e, a partir daí, com aval de Hergé (que era fã do diretor), começou a desenvolver um projeto que só ficou pronto muito tempo depois, quando o diretor percebeu que a técnica de “performance capture” (filmes da animação que simulam a atuação de um elenco) seria uma forma possível de recriar no cinema as particularidades dos livros originais. O longa é produzido por Peter Jackson, outro cineasta que, sabemos, tem uma relação muito afetuosa e séria com os filmes de entretenimento.

O que (em tese) seria um projeto acima de suspeitas, engenhoso, impecável e tudo o mais — também pessoal, na mesma medida em que Avatar (que também só foi feito quando o desenvolvimento da tecnologia digital permitiu) o era — me parece, no entanto, um filme cuidadoso em excesso, que faz uma série de concessões burocráticas para vender um personagem atípico a um público típico.

É, apesar disso (e deixe-me tirar esse elefante da sala), uma aventura correta. Aposto que muitos dos detratores de Cavalo de Guerra — o outro Spielberg da temporada, mais derramado e kitsch — vão encontrar o passatempo spielberguiano que procuravam: um action movie “para toda a família”, ágil, passável, tecnicamente irrepreensível (dá pra notar cada fio de cabelo dos personagens, deus!), com dois ou três momentos “de perder o fôlego”, que refaz graciosamente o que já foi refeito tantas vezes: é um, como o próprio diretor comentou, “Indiana Jones for kids”. Se eu trabalhasse num instituto de medição de qualidade de filmes comerciais, avaliaria este aqui como “satisfatório”.

O Tintim que eu conhecia, no entanto, não está presente. Spielberg, acho até que por estar tão próximo do personagem, se esquece de que é preciso apresentá-lo de uma forma sedutora ao público. O rapazinho me parece, em muitos momentos, um herói qualquer, às voltas com uma trama qualquer, enfrentando um vilão qualquer: o diretor faz referências a filmes como Tubarão e Jurassic Park, mas acredito que este filme foi programado para fãs de Piratas do Caribe. O verniz “antiquado” não consegue esconder que o roteiro (coescrito por Edgar Wright, cadê você?) é uma escalada mecânica de action sequences, sem todas aquelas estranhezas e nerdices charmosas que me faziam chegar mais cedo nas aulas de inglês.

Ou, em resumo: é um Hergé para muitos, mas talvez não para mim.

(The Adventures of Tintin, EUA, 2011) De Steven Spielberg. Com Jamie Bell, Andy Serkis e Daniel Craig. 107min. C+

cine | Cavalo de Guerra

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Na cena de Munique que mais me incomoda, um soldado israelense se encontra com o inimigo — um combatente árabe — num prédio em ruínas. O clima entre eles é de trégua: naquele momento, naquele lugar, no maravilhoso mundo das licenças poéticas (resumindo: no cinema de Spielberg), judeus e muçulmanos têm a chance de conviver em paz. Let’s Stay Together, de Al Green, é a música que vai na trilha sonora.

A sequência toda deve durar três, quatro minutos dentro de um filme de três horas de duração — mas ela resume muitos dos problemas que vejo no diretor: o jeito como infantiliza questões complicadas, recorrendo a encenações redundantes, fáceis, for dummies. Não basta filmar um encontro lírico entre um israelense e um árabe: a cena virá sublinhada com Let’s Stay Together (de preferência, com uma fotografia que dê preferência ao contraluz).

Acho que por isso acredito Spielberg se movimenta com mais naturalidade em filmes infantojuvenis. É o caso de Cavalo de Guerra, um conto de guerra para crianças que pode ser “lido” como um daqueles livrinhos coloridos cujas ilustrações reiteram o conteúdo dos parágrafos. É longo (duas horas e meia), inflado (como se espera de um filme do diretor). E, ao pé da letra, espetacular: há pelo menos três cenas em que um grupo numeroso de figurantes faz plateia para uma ação que envolve o cavalo-herói (numa delas, o animal aprende a trabalhar no campo; em outra, o bicho é leiloado etc).

Lembro de uma entrevista do Sam Mendes em que o diretor de Beleza Americana falava sobre um conselho que recebeu de Spielberg: faça de cada uma das cenas a melhor do filme.

Em Cavalo de Guerra, Spielberg está apenas seguindo o próprio conselho: “engrandece” cada cena, até as menores (uma conversa de família, no quintal da fazenda, é filmada sob um céu azul-berrante), nivelando a narrativa numa escala de grandiosidade que, admito, me cansa. As cenas são todas muito bonitas e bem fotografadas — como acontecia na primeira metade de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, o diretor acena o tempo inteiro para um cinema narrativo de brechó, cuidadosamente antiquado —, ainda que o acúmulo desses momentos-Oscar, acompanhados de uma trilha incessante de John Williams, prenda a trama pelo pescoço, sufocando-a.

De qualquer forma, Spielberg está em casa, sempre muito confortável dentro de um rancho spielberguiano: quando a cor é de conto de fadas, as fantasias adolescentes do diretor parecem até fazer sentido; compro todas sem muitos problemas. A cena que mostra um bate-papo entre um soldado inglês e um combatente alemão, ambos comovidos pelo sofrimento do cavalo mágico —não me irrita tanto quanto a sequência-irmã de Munique (porque, aqui, é a fantasia que se impõe). E, se o plano final já rende muitas comparações a John Ford (e me desculpem, mas acho de uma obviedade sofrível, ainda que linda toda-vida), o tom de fábula otimista, sinceramente bem intencionada, me lembra alguma coisa de Capra.

É, baixem a guarda!, um Especial de Natal da Sessão da Tarde — e que vai ficar ainda mais adorável quando acompanhado de uma dublagem bem cafona.

(War Horse, 2011) De Steven Spielberg. Com Jeremy Irvine, Emily Watson e David Thewlis. 146min. B

Os filmes da minha vida (2)

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A saga dos 100 filmes mais cultuados cá na Tiagolândia chega ao segundo episódio com mais dois títulos que cuspiram lava no meu infinito particular. Vocês entendem a dimensão desta série de posts, entendem?

Mas, sem querer ficar marisamonteando, serei sucinto: já que este ranking só vai terminar após a Copa de 2022, sugiro que os cinco frequentadores deste blog relaxem e, sem fazer julgamentos cruéis, aproveitem o passeio ao pântano das minhas lembranças & sentimentos imperfeitos. Ainda estamos nos trêilers, ok? E a sessão é tripla, tá certo? Então sit tight que…

098 | A esquiva | L’esquive | Abdellatif Kechiche | 2003

Quando penso em muitos dos meus filmes preferidos, geralmente lembro de características que nada têm a ver com a trama, com os conflitos que eles narram. Tomei um susto, por exemplo, ao ler hoje que as crianças de A esquiva ensaiam uma peça de Marivaux. É uma informação importante dentro do filme, mas que havia desaparecido dentro das minhas memórias. O que ficou foi uma impressão até infantil de coração partido: o desejo de ter permanecido verdadeiramente mais algumas horas, dias, dentro daquele mundo onde vivem os personagens. A encenação me convidou a entrar, digamos assim, e de repente eu me tornei um dos meninos da trama. Não foram poucas as vezes em que eu saí da sala de cinema como quem acorda de um daqueles sonhos que parecem muito vívidos: mas eu tinha uns 28 anos quando vi este filme. Não era mais inocente. Não era criança. Mas foi nisso que me transformei, naquela sessão (na embaixada da França), para meu espanto. Quando acenderam as luzes, me senti desamparado.

097 | Império do sol | Empire of the sun | Steven Spielberg | 1987

A história da minha minha relação com este longa de Spielberg está cheia de incompreensão e repulsa. Detestei o filme. Mas detestei, antes de tudo, porque não o compreendi, não entendi absolutamente nada da trama. Minha mãe cometeu um erro (uma ousadia?) ao me levar para o cinema numa época em que eu ainda não sabia ler legendas: o que ficou daquela sessão foi uma coleção de imagens desconexas. Também restou: um menino (mais ou menos da minha idade) perdido dentro de uma guerra e dentro de uma tela, tudo destroçado dentro da minha imaginação. Foi um embate difícil, sangrento, entre o espectador de oito anos e o pequeno J.G. Ballard (que se tornaria um dos meus escritores preferidos; mas muito mais tarde). Lembro que, nos créditos finais, me senti ainda mais pequeno, burro: enquanto o público aplaudia e chorava, eu só queria que alguém me explicasse aquela história, os diálogos, qualquer coisa. Mas eu me recusava a pedir orientações – e, depois que aprendi a ler legendas, me recusei a rever o filme. É um porre, eu dizia aos meus amigos. Menino orgulhoso, como vocês podem perceber.

2 ou 3 parágrafos | Super 8

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Como se não bastasse tudo o que há de metalinguístico nesta história toda, talvez Super 8 tenha sido feito para mim. De verdade. Se existe uma plateia ideal para este filme, eu faço parte dela. J.J. Abrams (o diretor) e Mr. Steven Spielberg (o produtor) aparentemente criaram esta aventura com centenas, milhares de frames da minha infância. Foram grudando, umas às outras, as lembranças de um tempo que antecedeu o período em que o cinema se transformaria, para mim, numa espécie de obsessão. Se existe um documentário sobre a pré-história da minha cinefilia, é este.

Era o que eu via na tevê, era o que eu alugava em VHS: Os Goonies e Contatos imediatos, E.T. e Gremlins. Eu e meus amigos. Eu e meninos que eu nem conhecia. Super 8 soa como uma mixtape do cinema comercial juvenil dos anos 80: e, se é assim, como ignorar a grife produzida pelo “hitmaker” da ocasião? Um filme sobre/a-partir-de/para Spielberg, com a caligrafia meio torta que encontraríamos na confissão (tocante) de um espectador que chora quando vê as seleções de clipes do VH1. Os anos 80 enquanto estado de espírito (se é que vocês me entendem). E um olhar orgulhosamente infantil para o cinema (aliás, ele dá pano pra manga aos críticos que se dispuserem a tratá-lo como um filme-sobre-fazer-filmes).

Acredito sim que temos a assinatura de Abrams no projeto deste trem supersônico — tal como Spielberg, o homem fazia curtas em Super 8 quando pequeno, e o argumento do longa poderia ter sido imaginado por um menino de 10 anos, fã de quadrinhos e sci-fi. Inevitável, por isso, que este filme pareça falar diretamente a mim (e a uma parte grande da minha geração). Mas a programação visual retrô (e o esqueminha narrativo idem, com um mix de drama-família e bombardeio) aplicada por Abrams me deixa um pouco melancólico; acho que cresci. Quando o saudosismo me abandona, me sinto um tanto desamparado diante de um filmezinho tão choroso e eficiente (Syd Field ficaria orgulhoso), tão amável e inofensivo quanto um bom Spielberg. Talvez por essas eu evite rever os filmes que estão no top 10 dos meus oito anos de idade: são memórias que me desarmam, mas às vezes me matam de vergonha.