Sound of silver
This is happening | LCD Soundsystem
This is happening, o terceiro disco do LCD Soundsystem, confirma a minha impressão de que, se tivermos sorte, James Murphy vai acabar escrevendo sobre música em alguma revista bacana, tipo New Yorker. Já tem um leitor fiel: eu. Admita: o sujeito é um ótimo cronista do pop que, meio encabulado com o ofício, anda por aí disfarçado de astro indie.
“Criei a banda para explicar o que eu sinto sobre música. A banda é um argumento”, disse Murphy, numa entrevista à Rolling Stone. Já estava meio óbvio: os discos do LCD Soundsystem são os diários de um fã de rock que tirou a tarde para revirar a coleção de LPs.
Você já experimentou esse exercício dolorido que é desenterrar a pilha de LPs (ou, vá lá, de CDs) que jaz no armário da sala? Eu tentei e fui quase asfixiado por lembranças boas e ruins, sensações de alegria, pânico e profunda tristeza. Canções pop têm essa capacidade de compactar episódios do passado, que repousam na nossa coleção até o dia em que, destemidos, resolvemos apertar o play.
James Murphy nasceu em fevereiro de 1970. A maior parte das “memórias musicais” contidas nos álbuns do LCD Soundsystem vêm dos primeiros 10 anos de vida do compositor: o punk rock, o pós-punk do Joy Division, o glam rock de David Bowie, a protoeletrônica do Kraftwerk, a disco music. Isto é: elas não foram adquiridas no calor do momento (a menos que ele fosse um menino muito precoce), mas assimiladas com distanciamento. Em algum momento da vida, Murphy se pegou estudando o pop dos anos 1970.
É por isso que os discos do LCD Soundsystem têm um quê de ensaio, de pensata. Murphy vai organizando as próprias referências como quem compõe uma grande lista de favoritos, um guia musical, uma calçada da fama pavimentada com impressões pessoais. Mas, ao mesmo tempo (como bom fã de rock que é), ele foge do tom saudosista. Faz álbuns contemporâneos de dance-punk que deslocam os heróis do cantor para o tempo presente (talvez para mostrar que eles não envelheceram).
(E vale abrir mais parênteses: na trilha sonora do filme Greenberg, de Noah Baumbach, Murphy provou que sabe reproduzir direitinho uma sonoridade associada aos anos 70. Mas essa não é a onda do LCD)
Dito isso (e que longa introdução, hem?), This is happening me parece um disco muito coerente com o passado de Murphy. Se Sound of silver já soava como uma colagem musical e sentimental, o novo repete o formato e, ao mesmo tempo, amplia as ambições dos anteriores. É daquele tipo de sequência que se segura em pé e ainda engrandece o original.
Cada faixa costura pelo menos dois gêneros que não se dariam muito bem: e, ainda assim, não soam truncadas. You wanted a hit começa como um electropop adocicado, se transforma num dance-funk repetitivo e ganha um tom amargo quando Murphy começa a discursar sobre as cobranças da gravadora, dos fãs, dos críticos. No fim, um enxame de barulhinhos eletrônicos toma conta da mixagem. “Você quer um hit. Não fazemos hits”, diz.
Já All I want é uma sanduíche de Blur com Sonic Youth, tomado pela poeira de guitarras distorcidas. I can change é Kraftwerk remixado para um disco da Madonna. A faixa mais direta (e mais curta) é Drunk girls, uma espécie de hino hooligan inconsequente (e descartável). Modelar o caos é uma arte que Murphy domina bem.
Se This is happening é um objeto sonoro indefinido (mas também familiar, estranhamente coeso), as letras trazem de volta o James Murphy inseguro, irônico e autodepreciativo que conhecemos. “Você quer esperteza. Honestamente, eu não sou esperto”, admite, em You wanted a hit. Em All I want, um esboço de love song (e parente próximo de All my friends), ele faz a declaração de amor mais desastrada do planeta: “Tudo que eu quero é que você sinta pena de mim”, implora. “Eu posso mudar, se isso fizer com que você se apaixone por mim”, se arrasta, em I can change.
Se Sound of silver era um disco sobre a idade adulta, o peso do tempo (todos os amigos ficaram para trás, alguns morreram e até Nova York provoca tristeza), This is happening, sem um tema central, deixa a sensação de desconforto com o showbusiness e com a necessidade de cumprir expectativas, de fazer o trabalho.
Murphy já anunciou que este será o último disco do LCD Soundsystem. Soa mesmo como uma despedida. O argumento está completo, fechado. Entendemos o recado. Em três discos, ele escreveu um roteiro para a música que ama: emotiva e cerebral, dançante, inventiva, surpreendente. Está tudo aqui. This is happening não soa tão preciso ou forte quanto Sound of silver (e não me vejo ouvindo Pow Pow muitas vezes). Mas não faltam ao álbum a franqueza (quase constrangedora) e a paixão (à flor da pele) de um fã que, por acaso, virou ídolo.
Parece até um disco que sintetiza nossos desejos musicais. E que poderia ter sido escrito por você, por mim, por gente comum e banal que se emociona com a coleção empoeirada de discos. É claro que não poderia. Mas a graça está nessa ilusão.
Terceiro disco do LCD Soundsystem. Nove faixas, com produção de The DFA. Lançamento DFA Records. Ouça o disco na íntegra aqui. 8/10