Soul Music
Mixtape! | Abril, pela manhã
A mixtape de abril é soul. Entende? Soul music, meu filho. Pra rebolar o cérebro e aquecer os ventrículos. Coisa forte, que gruda e (cuidado!) pode machucar.
Portanto, já estou preparado para reações adversas: quem vem a este blog procurando indie rock vai cair do cavalo (apesar de uma ou outra surpresinha); quem curte um country rock vai ficar mordendo cana. Mas só desta vez, ok? É uma coletânea especial.
Especial porque sempre quis gravar um CDzinho temático, puxado mais pro r&b, pro funk, pro hip-hop e adjacências. Eis o rapagão, finalmente vestido para seduzir as minas. Admito que estou muito orgulhoso do moleque.
É, de muito longe (e desta vez não estou forçando a barra), a melhor coletânea de todos os tempos deste blog. É coesa e também um tantinho surpreendente, é dançante e também profundamente triste, é um disco de amor escrito com linhas tortas de melodia, é pesadona e às vezes levinha. Se ela pudesse falar, diria: sou foda!
A ideia apareceu graças à música que abre o disco: The morning, do The Weeknd. É a minha preferida do ano (até abril, é claro) e está num discão: House of balloons. A foto lá em cima, com louvores, é deles. Tudo o que tentei foi criar uma coletânea que estivesse à altura dessa canção e que, de alguma forma, dialogasse com ela. Acho que consegui.
O disco conta uma história com início, meio e fim. Desta vez não vou estragar o surpresa: deixo que vocês tentem adivinhar sobre o que ela trata. Mas a coletânea também pode ser compreendida aos pedaços – e, desta forma, aparecem conotações muito diferentes, que fazem referência a pessoas que conheço e a situações da minha vida.
É um CD, por isso, de muitas dedicatórias. Uma parte do set é dedicada explicitamente à minha namorada (Roll up, You e Street) e trata amor e telefonemas de longa distância. Uma outra parte é para os meus amigos mais próximos (Last night at the Jetty, Ok). E, de uma ponta a outra, é um disco para quem frequenta este blog com mais dedicação e topa embarcar nas minhas loucuras quase diárias. Principalmente pro Pedro Primo, que vai entender direitinho este CD. Esse é teu, rapaz!
Sem querer forçar uma dissertação de mestrado, o disco tenta humildemente mostrar um pouco as variações do hip-hop que me agrada, do mais juvenil (Love is crazy) ao mais sábio (People are strange) ao mais peralta (Ok) ao mais melancólico (The vent). Vai fazer muito sentido, se você prestar atenção.
Além de The Weeknd, o CD tem Wiz Khalifa, TV on the Radio, Childish Gambino, Das Racist, Bibio, Metronomy, Jamie Woon, Panda Bear, Big KRIT e Beastie Boys. Mês que vem, se eu me convencer de que este blog merece a vida, prometo incluir Fleet Foxes (que não combinou muito com o clima deste disco, infelizmente).
É isso, acho. Gravei esta coletânea ainda na primeira metade do mês e fui fazendo pequenas mudanças aqui e ali. A conheço em cada detalhe. Por isso repito: não há outra que me agrade tão completamente. Mesmo que você deteste soul music, dê uma chance a ela. Talvez, quem sabe?, a danada acabe colando em você.
E depois (vamos lá!) deixe um comentário sobre a experiência. A lista de músicas, como de costume, está na caixa de comentários. Até mais e (no caso, bem apropriadamente) boa noite.
Faça o download da mixtape de abril.
(aproveite o embalo e faça também o download das mixtapes de fevereiro e de março)
Os discos da minha vida (33)
Só por hoje, vou simplificar a equação. Os discos + Minha vida = Saga dos 100 discos da minha vida. Capítulo 33.
Facinho.
Sem pormenores, então. Que não tá fácil pra ninguém, a vida. Tenho uma montanha de livros para ler, muitos discos para ouvir, filmes para três vidas, séries de tevê que adormecem na dimensão dos desejos que não serão realizados. No meio tempo entre uma e outra coisa que não vou fazer, ainda tenho que aprender a fritar ovo e a talhar madeira. Hoje, o que me resta é escrever este post, esticar as pernas na cama e dormir. Que o tio aqui está pregado.
E ainda tem que peça pra eu escrever mais sobre cinema. Vocês, hem.
Os dois discos deste post são insubstituíveis. Caso contrário, não estariam entre os meus 40 favoritos de todos os tempos. Darei um jeito de encher uma caixa de papelão com os 40 disquinhos, daí vou carregar todos comigo para uma ilha deserta. Vamos ficar bem.
036 | Daydream nation | Sonic Youth | 1988 | download
Este é um dos raros discos de rock que a Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos, selecionou para efeitos de preservação. É justo. Mas imagino o que vai acontecer quando, daqui a 50 anos, um menino muito curioso, 12 anos de idade, se aventurar numa pesquisa sobre a música pop do fim do século 20 e esbarrar nisto aqui. Certeza: um tanto de susto será inevitável. Ainda mais se ele tiver crescido na companhia de bandas que se acostumaram ao conforto das escolhas óbvias, dos pequenos riscos, dos hits de efeito imediato e curta duração. O Sonic Youth de Daydream nation é um esporte inseguro: as longas jam sessions que deram origem ao disco transformam cada música em cruzamentos de pop e vanguarda, Jimi Hendrix e Joni Mitchell, Neil Young e Andy Warhol. O estilo da banda já estava criado, mas aqui ele é amplificado numa moldura monumental. Para museus de arte contemporânea, garagens encardidas e afins. Top 3: Teen age riot, Providence, Silver rocket.
035 | What’s going on | Marvin Gaye | 1971 | download
What’s going on é soul music naquilo que, a partir dos anos 70, o gênero teria de essencial: um homem perplexo diante do mundo. Depois de se tornar uma das vozes mais populares da Motown, Gaye ignorou as obrigações do pop-para-rádios para compor um disco que pode ser “lido” como uma carta aberta, uma crônica pessoal sobre o início dos anos 1970. O personagem principal – um veterano que retorna do Vietnã e encontra um país despedaçado – era um reflexo do cantor, perdido numa década que não prometia ilusões. A pergunta que guia o álbum ecoava, por isso, com o poder de um emblema: “O que está acontecendo?”. Ainda ecoa, aliás. Hoje, pode não ser fácil a identificação com versos que comentavam um período histórico muito específico. Mas o sentimento de inadequação que transborda nessas canções é universal, eterno, e continua a nos emocionar. Top 3: Mercy mercy me, What’s going on, Inner City blues.
James Blake | James Blake
Quando o avião desceu no aeroporto de Brasília, domingo à noite, ainda não chovia. Mas lembro do céu avermelhado — aquele vermelho escuro, sangrento, vazando entre as nuvens, prestes a desmoronar num aguaceiro. Desde que moro na cidade (e cheguei há quase 20 anos), é uma imagem que me deixa agoniado. Por aqui temos céu em exagero — quando ele se enfeza, não há como ignorá-lo.
Mas o curioso é que, apesar da fúria climática, eu estava tranquilo. Nada me assustava naquele momento. Mais estranho que isso: nada, nem a vermelhidão do céu, despertava um átomo sequer da minha atenção. Eu flutuava anestesiado no setor de desembarque. No espelho do banheiro, tudo o que consegui notar foi um menino com um sorriso impossível de ser desfeito, perplexo diante de um aquário gigante. O que acontecia?
Algumas horas antes, quando anunciaram que o aeroporto de São Paulo seria fechado por conta do mau tempo (e as pessoas pareciam preocupadas com as pancadas medonhas de chuva), eu me senti aliviado por ficar mais algum tempo naquela enorme sala de espera, aquele purgatório refrigerado, eu e dezenas de desconhecidos. Não tenho certeza, mas devo ter pedido um suco de laranja.
Eu estava desligado da cidade, do mundo, um pouco desligado da vida. Uma sensação de torpor que, para mim, não é tão comum. Só que não era uma sensação ruim. Naquele fim de semana, algo novo começara. Havia um terreno a ser habitado — e ele se abria diante dos meus olhos. Fui procurar meus fones de ouvido e liguei, não por acaso, no disco do James Blake.
É um álbum que me acompanha desde o fim de dezembro, e que, aposto, vai me seguir durante o ano. Uma espécie de vulto, de nuvem vermelha. Que pode soar ameaçador, mas acho que vai me fazer bem.
Quando escrevi sobre Kaputt, do Destroyer, percebi no disco algo sobre as tentativas que às vezes fazemos para recriar a vida, alterar um destino que nos parece cômodo. A transformação da banda de Dan Bejar se comunicava diretamente com o meu desejo de abandonar para sempre algumas experiências recentes, desastrosas: o fim de um longo namoro e a dificuldade de aceitar um cotidiano que me parecia vazio, incompleto.
O disco do James Blake ressoa de uma forma parecida, ainda que mais profunda. É um álbum com lacunas que ainda não foram preenchidas. De certa forma, soa como um esboço de canções em branco e preto à espera de um retoque, de uma aquarela. “Está germinando”, diz Blake.
E é assim que, nessas canções desencarnadas, eu me enxergo.
Haverá muitos textos sobre este disco, comparações rasteiras serão feitas (Antony and the Johnsons, Thom Yorke), prevejo um bombardeio de hype e bajulação (em 2010, os Eps do britânico entraram no alto de melhores do ano da Pitchfork). Mas espero que não subestimem o que há de singular na arte de Blake: a forma como as canções se desnudam até soar quase como sussurros, monólogos secretos. Elas abrem espaços silenciosos onde nós, os ouvintes, podemos criar as imagens que bem entendemos. Em resumo: podemos colorir essas músicas e, assim, torná-las um pouco nossas.
Blake comenta em entrevistas que o disco de estreia do The XX foi uma grande inspiração. Há semelhanças. São dois álbuns que depuram as canções até um formato muito econômico, quase frágil. Negam os efeitos mais artificiais e as firulas de estúdio para valorizar a força dramática da hesitação, das cenas em que nada parece acontecer.
A diferença é que não consigo notar no disco de Blake as referências oitentistas do The XX: o compositor cria uma conexão estreita entre a soul music dos anos 1970 e o dubstep (e toda a eletrônica mais minimalista, daí a semelhança com o projeto solo de Yorke) dos anos 2000. Blake é um soulman escrevendo a trilha para as madrugadas de 2011.
Como acontece com o début do The XX, ele soa especialmente forte quando cruzamos as ruas largas de Brasília. Talvez por ser uma cidade que ainda não está pronta, que não nos mostra a cada minuto o quanto estamos sozinhos sob um céu onipresente. Blake mal faz desconfia, mas escreveu um disco bem brasiliense, que será compreendido integralmente por quem dirige no Eixão às duas da manhã numa noite chuvosa. Concreto e silêncio.
No meu caso, ele representa um pouco mais do que isso. As canções de Blake até me confortam, já que me sugerem a possibilidade de um recomeço. É assim que interpreto o disco: uma estreia que me emociona por soar verdadeiramente como uma estreia. Blake começa de um arcabouço vazio e vai erguendo lentamente, cuidadosamente, os tijolos de cada faixa. O prédio parece alto, mas o disco termina antes do segundo andar.
Os versos são curtos, confessionais, e se repetem num loop hipnótico. “Tudo o que sei é que estou caindo, caindo, caindo”, ele diz, em The Wilhelm scream, “Meu irmão e minha irmã não falam comigo, mas eu não os culpo”, entrega, em I never learnt to share. Até a adaptação de Limit to your love, de Feist, soa particular: “Há um limite para o seu amor, como um mapa sem oceanos”. Enquanto Blake se expõe — tão franco quanto um Jeff Buckley —, as melodias vão formando estruturas quebradiças de eletrônica e blues. É um disco de inverno, quase sempre melancólico, suicida. Mas tudo sob controle: uma encenação muito bem arquitetada.
Em apenas 38 minutos de duração, Blake isola o conceito do disco num recipiente fechado, quase que em vácuo. A concisão pode provocar algum incômodo (será criticado por soar monótono, anotem aí), mas, numa época em que os grandes discos tentam soar gigantescos, esta parece uma ousadia muito bem-vinda.
Depois de chegar em Brasília, na madrugada de domingo, ouvi ainda mais uma vez. Meus fones tremendo, volume máximo, as nuvens desabando lá fora. Numa época recente, ele despertaria em mim os sentimentos mais chuvosos. Neste incrível início de 2011, que me transformou repentinamente num homem otimista e feliz (uma criança pequena num playground), soa como algo totalmente diferente: um primeiro disco para o resto da minha vida.
Primeiro disco de James Blake. 11 faixas, com produção de James Blake. Lançamento Atlas/A&M. 8.5/10
Superoito express (26)
How I got over | The Roots | 7
Note o paradoxo: How I got over está entre os discos menos caóticos que o Roots já gravou (e é conciso, o danado: um álbum de hip-hop e R&B cheio de participações especiais e com apenas 42 minutos de duração) – mas é também, e de longe, o mais ameno entre todos os que ouvi deles (e ouvi vários). Não sei se interpreto esse momento como uma resposta da banda à era Obama ou às transformações no mercado pop norte-americano (o rapper mais badalado do momento é o Drake, um sujeito romântico e doce). De qualquer forma, é um novo tempo.
E, não tenho dúvidas, é um disco que cumpre os próprios objetivos de uma forma muito precisa e com eficiência germânica: uma coleção de hits agradabilíssimos (Walk alone, Radio daze, Now or never, são tantos…) que confirma o gosto da banda por andar “on the indie side”, com flertes a Monsters of Folk (Dear God 2.0, que tem ares de Fleetwood Mac), Dirty Projectors (A peace of light) e Joanna Newsom (Right on tem sample da moça), sem abandonar o mainstream (vide a ponta de John Legend e a produção polida, sob medida para as rádios). O discurso também continua comprometido com o social e levemente agoniado, ainda que positivo. O importante é que eles ainda fazem a coisa certa, e a faixa-título começa assim: “Nas ruas onde cresci, sempre me ensinaram a não estar nem aí. Esse tipo de pensamento não te leva a lugar algum. Alguém tem que se importar.” Sacou? Mesmo mansinhos, eles ainda se importam.
Brothers | The Black Keys | 7
O sexto álbum do Black Keys é uma espécie de continuação de Attack and release (2008), também produzido por Danger Mouse, com o mesmo blues-rock compacto, comprimidíssimo (o maior impacto no menor espaço), que soa como se alguém tentasse encaixar o som do Led Zeppelin dentro de um dedal. Mas, ao mesmo tempo, Brothers estica esse estilo para que caiba numa tela grande. É uma questão de duração: em 15 faixas, a dupla se obriga a se exercitar mais. E, nesse esforço, a banda acaba beliscando o pop (as últimas faixas, baladonas bluesy, são até tocantes). Claro que nem tudo dá certo, e o duo ainda me incomoda muito quando faz o decalque fácil de uma certa estética de brechó à anos 70, sem nervos, sem sangue, diluída para desfiles de moda e peças publicitárias (e aí chegam muito perto de um Lenny Kravitz). Tropeços acontecem, mesmo quando (acredite) estamos falando do disco menos acidentado que eles gravaram.
Love king | The-Dream | 7
Timing perfeito: o terceiro de Terius Youngdell Nash chega na cola de Thank me later, a estreia do Drake. Eles disputam o título de melhor álbum perdidamente amoroso de rap ‘n’ soul, e não vejo muitos outros concorrentes na pista (a menos que Kanye West decida manter o tom dramático de 808s and heartbreak, o que acho improvável). Por mim, dá empate. Drake me agrada um pouco mais, já que me parece tão convencido quanto vulnerável, cheio de dúvidas e traumas de infância e frescurinhas mil. The-Dream é só convencido, mas tem a vantagem de trabalhar duro para aninhar um estilo – enjoativo ou não (e, em muitos momentos, não tenho paciência para o excesso de mel com morangos e chantilly das faixas bônus), este som aveludado é só dele. Love vs. money (2009) era mais sortido, mas Love king soa como um álbum conceitual (!) muito ambicioso, sexy toda vida, às vezes cafajeste (ouça Sex intelligent) e meio monocórdico sobre… o amor, o amor e o amor, é claro (também sobre sexo com champanhe num pornô-chic dos anos 80, quando muito). Coloque na estante perfumada ao lado de Futuresex/Love sounds, do Justin Timberlake.
Recovery | Eminem | 5
Demora apenas duas faixas. E lá vai: “Os críticos nunca têm nada legal para dizer, cara. Você quer saber o que eu penso sobre os críticos? Os críticos nunca perguntam como foi o meu dia.” Recovery é bem isto: um disco totalmente na defensiva. Curiosamente, o próprio Eminem parece admitir essa má fase – caso contrário, o nome do disco não seria Recovery, e sim algo imponente do tipo Staying on top ou Still king. Daí que, se o álbum anterior (Relapse, 2009) era uma tentativa bem picareta de reprisar o que deu certo antes (o humor cartunesco, a persona violenta, o clima de fita de horror, as paródias pop, etc), o novo tenta algo como The blueprint 3, do Jay-Z: um disco de rap comercial by-the-numbers, eficiente, 1×0 sem show de bola, com participações especiais de gente famosa (Pink, Lil Wayne, Rihanna) e samplers que já ouvimos de algum lugar (tem até What is love, do Haddaway!). Se a meta de Eminem era sair com um disco mediano de rap, que qualquer outro rapper mais ou menos talentoso poderia ter gravado, conseguiu. E pelo menos sobre um aspecto os críticos vão ter que concordar: é menos vergonhoso do que os dois anteriores.
Thank me later | Drake
Você conhece Drake? Então está na hora.
Até porque, nos próximos meses, será impossível não reconhecê-lo por aí. Nas rádios. Na MTV. Nas trilhas de cinema. O rapaz tem bons amigos (Lil Wayne, Jay-Z, Kanye West, Timbaland, The-Dream, T.I., Alicia Keys), vem no embalo do marketing da Universal Music e está prestes a lançar um disco de estreia que, se tudo der certo, o transformará num astro do R&B.
Está escrito.
O plano, aparentemente, é fazer de Drake um novo Usher, um novo The-Dream, um novo sexymothafucker (e é provável que isso aconteça). Mas, é claro, não é por isso que você precisa conhecê-lo.
Dou três motivos:
1. Na mixtape So far gone, lançada no ano passado, a terceira música é uma balada robótica, na linha do Kanye West de 808s and heartbreak, chamada Successful, que virou single e rodou até no VH1. A faixa seguinte é uma versão para Let’s call it off, de Peter, Bjorn and John. Isto é: o sujeito não ouve qualquer coisa.
2. O refrão de Successful (muito simplezinho, até: “tudo o que quero ser é bem-sucedido”) não vem embalado no tom fanfarrão típico dos novos-ricos da black music, mas, surpreendentemente, existe nele uma certa melancolia, como se o intérprete da canção soubesse que o sucesso é doce e amargo.
3. Drake é um ator de 23 anos, ex-astro teen de seriado de tevê. E canadense.
Se nenhum desses argumentos parece suficientemente forte para que você dê uma chance ao moço, então não há nada a ser feito. Provavelmente, o álbum não vai colar. Não é sua praia. Vá por mim. Não perca o seu tempo.
Para começo de conversa, o disco soa conservador: não rejeita um modelo muito típico de R&B, pelo contrário. É quase um disco-de-gênero, songs for the lovers com alguma marra hip-hop. Nada que Kanye West, The-Dream ou Jay-Z não tenham feito. E Thank me later pode até ser ouvido dessa forma: como um álbum pop muito eficiente, coleção de hits, tudo nos devidos lugares, arquive entre Justin Timberlake e Rihanna.
O instigante na história, no entanto, é como Drake pega esse formato industrial e, sutilmente, se apropria dele. Sutilmente. O tom desiludido como o vocalista – que se chama Aubrey Graham – interpretou Successful é a colcha sonora do disco. Um fantasma que está sempre lá.
Há artistas que só se decepcionam com o sucesso lá pelo quarto álbum de estúdio. Pois a primeira música de Thank me later, Fireworks, abre com versos como “o dinheiro mudou tudo” e “meus 15 minutos de fama começaram há uma hora”. Novamente, Drake soa dúbio, na contramão das estrofes: a letra celebra a boa fase, o “sonho”, mas não existe alegria alguma na interpretação. A melodia é mecânica, cheia de lacunas e ecos.
Estranho.
Felizmente, todos os produtores – e são muitos! – parecem entender esse perfil introspectivo do cantor, que vai flutuando sobre névoa de teclados e efeitos metálicos. Nas primeiras faixas (as melhores do disco), não há festa: Drake narra dramas familiares (a separação dos pais, aos cinco anos), decepções amorosas e transformações da idade adulta. O sucesso não cura nada disso, e ele sabe disso. “Do que tenho medo? Isso deveria ser meu sonho. Mas todas as pessoas olham para mim e dizem a mesma merda: ‘você prometeu que nunca mudaria'”, ele desabafa, em The resistance.
A soul music de pesadelo atinge a catarse logo na quarta música, que se chama (olha aí) Over. Nesse ponto, Drake beira a esquizofrenia. “Conheço muitas pessoas que eu não conhecia há um ano. O que aconteceu? Fizemos de tudo ontem à noite, mas não lembro de nada. O que estou fazendo? O que estou fazendo?”, ele pergunta. Em seguida, porém, muda o discurso: “Eu estou me divertindo, estou vivendo a vida, e vou continuar assim até o fim.”
O hit é narrado com uma atmosfera dramática, tensa, que os produtores Boi-1da e Al Khaliq pressionam ao limite. O videoclipe mostra Drake fuzilado por canhões de luz, sozinho em um quarto de hotel.
Já ali, na quarta faixa, dá para concluir que Drake tem o “algo mais” que falta a muitos aspirantes ao trono do R&B: o intérprete paira acima dos produtores, das canções, de tudo. O álbum soa coeso, quase uniforme, porque é um retrato do cantor (ou talvez do personagem que o ator criou para si).
Na segunda metade, esse clima asfixiante das primeiras músicas vai se dissipando, ora em faixas mais animadinhas como Find your love (produzida por Kanye West), ora quando o “padrinho” Lil Wayne entra em cena, em Miss me. Mas até aí o show é de Drake. Em Miss me, o que fica na memória não é o falatório nonsense de Wayne, mas o apelo infantil, carente do vocalista. “Você vai sentir minha falta quando eu for embora?”, ele pergunta.
Superprodução programada para cumprir expectativas de uma indústria, Thank me later equivale a uma fita de fantasia dirigida por Sam Raimi: sob os efeitos especiais, há um coração que bate.
Primeiro disco de Drake. 14 faixas, com produção de Lil Wayne, Birdman, 40, Al Khaliq, Boi-1da, Crada, Francis and the Lights, Jeff Bhasker, Kanye West, No I.D., Omen, Swizz Beatz, Timbaland e Tone Mason. Lançamento Universal Music. 7.5/10
Compass | Jamie Lidell
De Jamie Lidell eu espero quase todo tipo de surpresas. Se o sujeito criasse um gênero e decidisse chamá-lo de neo-merengue ou de digisalsa, eu não me assustaria. Mas nada me preparou para um álbum caótico (na mais cruel das análises) e espontâneo (na mais generosa delas) como este Compass. É, numa descrição rápida, um fluxo de consciência em formato de música pop. Soa como uma novidade verdadeiramente inusitada – até para os parâmetros de um artista que sempre se portou como um menino irrequieto de três anos de idade.
Até hoje, Lidell era o nerd britânico, meticuloso, que controlava obsessivamente as próprias criações sonoras. Multiply, de 2005 (o primeiro álbum dele pelo selo Warp Records), ganhou logo o emblema “neo-soul”. Não era um disco conciso, mas todo ele se erguia sobre um conceito muito bem definido: o de contrabandear algumas heranças da black music (soul, funk) para o mundo pós-tudo das colagens eletrônicas. Uma operação quase matemática – para alguns, é um disco que soa frio, congelado em câmara de gás e bits.
Pode ser. Mas o admiro. Desde o início, os gostos de Lidell sempre me pareceram muito sinceros. Ele sabe que nunca será tratado como um autêntico soulman, mas não se contenta com o destino. Consigo imaginar os traumas sofridos por um adolescente de Cambridgeshire, branquelo, míope, que insistia em cantar como Otis Redding.
Mas, contra tudo e todos, no disco seguinte Jamie resolveu prestar uma homenagem até certo ponto sóbria, direta, afetuosa, aos ídolos setentistas: James Brown, Marvie Gaye, Otis e tantos outros. Fácil e polido como um antigo álbum da Motown, Jim (2008) assombrou o fã-clube. Era como se ele dissesse: vocês modernos que se virem com a tradição. Um disco agradabilíssimo, incompreendido, falsamente conservador (já que, de ponta a ponta, desafiava as regras da cartilha indie) e talhado para exibir a voz furiosamente negra de Jamie.
Só havia uma semelhança entre Jim e Multiply: eram discos apolíneos, arquitetados cuidadosamente, discos-experimentos, discos-conceito; mais para Prince e Beck, menos para James Brown e Ray Charles.
Em Compass, Jamie altera exatamente esse padrão: tenta criar um álbum menos planejado, mais “irracional”, mais “humano” (como se os outros não o fossem). As 14 canções foram escritas no período de um mês – e é exatamente assim que o disco soa.
A história do álbum começa quando Beck convidou Lidell para participar do projeto Record Club – uma reunião de amigos famosos cujo objetivo prático é regravar um grande álbum. Com Wilco e Feist, ele colaborou para a versão de Oar, de Alexander Spence. Entusiasmado com o clima da gravação, Jamie convidou a turma para gravar Compass. O disco, produzido por Chris Taylor (do Grizzly Bear), tem convidados como Beck, Feist, Gonzáles e Pat Sansone (do Wilco). Foi gravado em Los Angeles, Nova York e no Canadá.
Esse método mutante de criação está no DNA de Compass. Jamie tenta organizar a “grande bagunça que estava armazenada no laptop” (como ele próprio explica, no site oficial) e, sinceramente, nem sempre consegue. O que vale, no entanto, é o tamanho do empreendimento: desta vez, Jamie soa como o Prince dos anos 90, especificamente o de Chaos and disorder (aliás, ele bem que poderia ter roubado o nome daquele disquinho). Testar um ou outro conceito não é o suficiente: o rapaz quer tudo ao mesmo tempo, de preferência com um punhado de chantilly em cima.
Essa ânsia de multiplicar-se faz de Compass um disco exaustivo (de propósito, parece), confuso, enervante, looongo demais. Cada uma das faixas parece pertencer a a galáxia diferente. Completely exposed, a abertura, lembra um pouco a soul music quebradiça de Multiply, mas Your sweet boom, a seguinte, se aproxima das invencionices psicodélicas do Of Montreal. I wanna be your telephone é Prince dos mais alucinados, compactado nos ritmos mecânicos do Beck fase Modern guilt. The ring = blues-rock. E Gypsy blood é exatamente o que o nome indica: algo exótico.
Descrever cada uma das canções seria tão cansativo quanto ouvir o disco do início ao fim. Melhor pular para as combinações mais felizes: orientalismo chic + vocais emotivos + violões dedilhados por um aluno em fase de iniciação no instrumento + eletrônica hipnótica (a faixa-título, Compass), corinho sessentista + bateria endiabrada + funk rock à Red Hot Chili Peppers (You are waking), lamento doloridíssimo à Pearl Jam + arranjo letárgico (Big drift).
E (tirando algumas baladas até simplórias) a coisa fica ainda mais improvável.
O importante é que, a partir de agora, sabemos o seguinte: Jamie Lidell sabe fazer uma bagunça dos demônios. É corajoso. É um guerreiro. É um exemplo de vida. Faz o que dá na telha. E, em vez de criar um disco planejadinho para agradar aos críticos ranhetas que desprezaram Jim, dobrou o quarteirão e seguiu em frente. Bom para ele. Boa sorte! Agora, eu? Demorei um tempinho para perceber que essa bagunça não me satisfaz e, na maior parte do tempo, me deixa com saudades do músico obsessivo e perfeccionista (e às vezes frio, ok?) de Jim e Multiply. Talvez Compass seja o rascunho para uma nova fase – mais sangue, menos cérebro.
Talvez sim. E vou esperar essa primavera chegar. Por enquanto, o Jamie Lidell impulsivo de Compass me deixa mais frustrado do que desnorteado.
Quarto disco de Jamie Lidell. 14 faixas, com produção de Jamie Lidell e de Chris Taylor. Lançamento Warp Records. 6.5/10
Rope of sand | Jamie Lidell
Lembram dele? Em 2008, Jamie Lidell lançou um disco de soul music (ou seria melhor chamá-lo de pós-soul, já que se trata de uma colagem/homenagem a mestres do gênero?) que chegou quase ao topo da minha lista de melhores do ano: o subestimado Jim. Demorou, mas criaram um clipe para a faixa mais delicada do álbum, Rope of sand. Mas taí: Leo Rome dirige este passeio na praia que, aos poucos, se transforma num delírio amarelado. Não fica à altura da música, mas o que está?
One life stand | Hot Chip
Amigo: se você enfrenta as aflições de um namoro à distância, cuidado com One life stand. Pode ser brutal.
Este não soa como um daqueles álbuns de soul music que celebram um tipo romance que parece sexy ou róseo demais para ser verdade. Já na faixa-título, o Hot Chip avisa que é rapaz sério, direito, não quer saber de one-night stands e sabe que, à luz do cotidiano, histórias de amor nem sempre soam como uma balada da Beyoncé. Não. Nos namoros reais, é inevitável lidar com incertezas, desencontros e alguma melancolia.
Não é preciso ser cool para entender disso. Não é preciso ser adulto. Não é preciso ser muito inteligente. O Hot Chip, sabemos, é uma banda de electroindie formada por cinco nerds de Londres, Inglaterra. Eles sempre soaram juvenis, brincalhões, quase tolos (de uma forma saudável, que produziu hits marcantes como Over and over e Ready for the flood). E eles, veja, até eles entendem.
Depois de algumas paqueradas muito tímidas com a soul music (Made in the dark, de 2008, quase chegou aos finalmentes), o quinteto finalmente concretiza um projeto que estava quicando há um tempo: One life stand é a “love machine” do Hot Chip. Um álbum embriagado, mas não imbecilizado, de amor. James Brown e Sade podem até ter servido de (distante) inspiração. Mas o cotidiano do Hot Chip, mais realista, se aproxima da delicadeza eletrônica de projetos indie como o The Postal Service – ou da irresistível insegurança de um 808’s and heartbreak, do Kanye West.
Na prática, esse ingleses desajeitados são um pouco como nós, jovens adultos: depois de registrar em três discos um cotidiano dividido entre a fervura das pistas de dança e as madrugadas frias de quarta-feira, eles chegaram num ponto da vida em que os prazeres efêmeros pararam de provocar tanto efeito. Para um disco de amor, One life stand soa quase desencantado. Os vocais, chapados na frente da mixagem, não escondem a fragilidade de faixas que, mesmo quando deveriam soar positivas, deixam escapar um certo desespero. “Felicidade é o que todos queremos”, eles admitem, na canção de abertura. Mas nem eles parecem acreditar na vitória da utopia. No máximo, é sonho.
Em Made in the dark, a inspiração soul era traduzida sem muita convicção (os momentos mais fracos do disco são os supostamente mais sensuais). Com a coragem de encarar sua maior fragilidade, o Hot Chip deixa de lado até as brincadeiras rítmicas meio cerebrais que garantiam prestígio a eles. One life stand volta-se ao calor da disco music dos anos 1970 e à espontaneidade que existia nas primeiras gravações de house music. Procuram “alma” nas divas dance e no pop descomplicado (e descaradamente sentimental) de um Pet Shop Boys. De propósito, perdem a pose. Soam frágeis, com mais sangue e menos neurônios.
Em tese, é um esforço extraordinário de amadurecimento para uma banda que poderia muito bem ter se acomodado com o status conquistado entre os indies. Na prática, infelizmente, a catarse nem sempre cola: depois de uma abertura tocante (com quatro faixas que estão entre as mais vívidas que eles gravaram), eles acabam tombando em fragilidades de composição e arranjos que (se tivermos sorte) possivelmente serão resolvidas no próximo disco. Abrir o coração nem sempre justifica a falta de ideias musicais – e faixas como We have love e Keep quiet penam nesse processo.
A inconsistência do conjunto, no entanto, não ofusca o tom dolorosamente plausível da história de amor escrita pelo Hot Chip. Longe do formato típico de love songs, as canções da banda traduzem sensações de afeto, saudade, alegria e dor – às vezes, simultaneamente. Talvez eles estejam cansados de ilusões (musicais, até), tenham experimentado namoros à distância. Talvez tenham crescido (um pouco). Ou escreveram um disco inteiro como resposta a um álbum da Celine Dion. Aposto que até ela viveu algumas das emoções tão triviais – e fundamentais – narradas aqui.
Quarto álbum do Hot Chip. 10 faixas, com produção da própria banda. Lançamento EMI. 7/10