Solar

Trecho | O esquecimento

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“O surpreendente era que sua vida pouco havia mudado após o nascimento de sua filha, Catriona. Os amigos lhe haviam dito que ficaria abismado, que se transformaria, que seus valores seriam outros. Porém nada mudou. Catriona era algo bom, mas continuou a confusão de sempre. E, agora que entrara nos últimos estágios ativos de sua existência, começou a compreender que, não ocorrendo acidentes, a vida não mudava. Ele fora iludido. Sempre presumira que chegaria um tempo na vida adulta, uma espécie de planalto, em que haveria aprendido todos os truques de ir levando as coisas, de simplesmente ser. Com todas as cartas e e-mails respondidos, todos os papéis em ordem, livros organizados alfabeticamente nas estantes, roupas e sapatos em bom estado nos armários onde podia encontrá-los; com o passado, incluindo as cartas e fotografias de outrora, arrumado em caixas e pastas; com a vida privada assentada e serena, assim como as acomodações e as finanças. Em todos aqueles anos, essa arrumação, o calmo platô, nunca apareceu, e apesar disso ele havia continuado a presumir, sem pensar sobre o assunto, que estava pertinho, ali do outro lado da esquina, que em breve ele faria um esforço e o alcançaria. Naquele momento a vida se tornaria clara e a mente livre, sua existência como adulto teria então início de fato. Contudo, pouco após o nascimento de Catriona, pensou ter entendido a verdade pela primeira vez: no dia de sua morte, estaria usando meias de pares diferentes, haveria e-mails não respondidos, e na pocilga que chamava de casa ainda existiriam camisas sem os botões do punho, uma lâmpada apagada no hall, contas a pagar, sótãos a limpar, moscas mortas, amigos esperando por uma resposta e amantes que ele não havia confessado ter. O esquecimento, palavra final em matéria de organização, seria seu único consolo.”

Trecho de Solar, de Ian McEwan (ao som de As the world rises and fall, do Clientele).

Superoito express (30)

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Tomorrow morning | Eels | 7.5

Oficialmente, Tomorrow morning é o terceiro capítulo de uma trilogia que começou com Hombre lobo (2009) e End times (lançado em janeiro de 2010). Na prática, soa como uma continuação de Blinking lights and other revelations (2005), um dos melhores discos de Mark Oliver Everett. Aquele álbum parecia ter sido escrito e gravado nas primeiras horas do dia, num estado de quase vigília. Era preguiçosamente belo. Já o novo sugere uma manhã quente de verão. Céu azul. Férias. Passarinhos piando. E a sensação de que o pior já passou.

É, portanto, um daqueles discos otimistas e quase alegres, que só soam convincentes quando escritos por sujeitos muito calejados. É o Nashvile skyline de Everett, e um álbum que consegue resolver quase todos os problemas dos anteriores. Em resumo: não tem o peso de um tedioso diário de um ano ruim. Não (ainda que algumas faixas mais aborrecidas deixem vestígios dessa fase). Everett faz um esforço admirável para simular dias felizes e, no processo, acaba redescobrindo o prazer do pop doméstico, lúdico, que nos leva num pulo à estreia dele, Beautiful freak (1996). Juntas, essas canções mais alaranjadas e cheias de surpresas renderiam um disquinho nota 8.5. Então (papel e caneta!) anote aí e faça o seu CDzão do Eels: I’m a hummingbird, Baby loves me, Spectacular girl, This is where it gets good, Oh so lovely (a melhor do disco), The man, Looking up e Mystery of life.

Black city | Matthew Dear | 7.5

Se Tomorrow morning é um disco diurno, Black city é exatamente o oposto disso: noite preta (e é até instigante ouvir um disco após o outro; eu recomendo). Matthew Dear cria um ambiente instável, tenso, todos composto em tons de cinza, com canções que nos seduzem e, depois de alguns minutos, vão se desmontando até se transformar em objetos disformes. É um horror (no bom sentido). A faixa-título me parece um túnel sem fim, iluminado por lâmpadas frias, com curvas que chegam inesperadamente. E o miolo do álbum soa tão encardido quanto um The Contino sessions, do Death in Vegas, e um Pre-millenium tension, do Tricky. Só me incomoda um pouco notar que a atmosfera por vezes sufoca as canções. Felizmente, não é o que acontece com o encerramento, uma lindeza chamada Gem.  

The orchard | Ra Ra Riot | 6

O problema de discos que desenvolvem conceitos redondinhos (como Tomorrow morning e Black city) é que eles acabam denunciando a irregularidade de discos mais imaturos – como é o caso deste The orchard. Está claro que o Ra Ra Riot entrou em estúdio para gravar uma versão mais “sofisticada” e “adulta” de The Rhumb line (que já não era um grande disco) e que, para isso, acabou apelando para os recursos mais óbvios: arranjos melodramáticos de cordas e uma ou outra canção que rodaria em rádios mais conservadoras (caso de You and I know). O que é uma pena, já que o disco tem faixas que renderiam maravilhas num esquema lo-fi (a linha de baixo galopante de Boy e os corinhos de Massachusetts são viciantes). Deveriam ter aprendido com os chapas do Vampire Weekend: crescer é preciso, mas um passo de cada vez. 

Causers of this | Toro Y Moi | 6

Outro disco com momentos luminosos, só que dispersos num conjunto ainda verde. Consigo notar alguns sinais de Animal Collective (as canções circulares, escoradas mais em ritmos do que em melodias) e do Cut Copy (ares de synthpop), além de um desejo grande de afirmar um estilo (não foi dessa vez). Apesar disso, o disco me agrada por apresentar um compositor de sutilezas: Chazwick Bundick nos obriga a ouvi-lo várias vezes antes de tirarmos alguma conclusão. Talamak e a faixa-título mostram que o rapaz tem muito a ganhar se tiver o despudor de incluir mais elementos pop num estilo que, por enquanto, veste o rótulo ‘chillwave’ confortavelmente. Talvez confortavelmente demais.