Show
Paul McCartney, 21 de novembro, São Paulo
Tentei telefonar para meu pai. Ninguém atendeu. Tentei novamente e nada. Talvez o homem estivesse na casa da minha avó, foi o que pensei. Liguei para minha avó. E nada. “Saiu, não disse pra onde”. Pedi a bênção. “Não vejo a senhora há quanto tempo? Quanto tempo mesmo? Dois anos? Três?”
Eu, o neto melancólico. Ela, a avó invisível. O tom de voz era aquele que eu conhecia desde pequeno. Sereno. Se o tom de voz estava ok, então minha avó seguia ok. Irradiando otimismo e bondade para todo o sempre, amém.
Antes de desligar o telefone, perguntei sobre meus primos. Tudo bem? Tudo bem. Então tudo bem. Então ok. Ligue mais. Vou ligar, vou sim.
Voltei ao início da aventura. Telefonar para meu pai: uma aventura. Mais três tentativas. Três e, sem resposta, finalmente desisti de procurar meu velho. Só por hoje. Volto a telefonar amanhã (era esse o plano). Depois do almoço, no período da tarde (é esse o plano).
É como as coisas funcionam: posso falar com meu pai quando bem entendo. Para isso, preciso clicar um botão no meu telefone que dispara um número memorizado na minha agenda. Meu pai pode ligar para mim quando bem entende. Para isso, precisa discar o DDD, o número do meu telefone e pagar uns trocados a mais. Um processo simples, banal, mas raramente conversamos.
E raramente conversamos porque não temos o que conversar. Estamos cada vez mais separados um do outro. Fisicamente, psicologicamente; de todas as formas. Uma relação que se tornou impossível. Talvez por culpa dele (mas não o culpo; eu o amo). Talvez por minha culpa (ainda que eu não identifique culpados no nosso drama). Talvez porque as nossas histórias de vida tenham apontado para direções inevitáveis, que nem sempre nos matam de orgulho.
O que sobra do meu pai é um reflexo, vestígios, filetes de memórias, uns cacos miúdos. Nada muito sólido. Lembro das feições do rosto (e lembro quando olho o espelho; sou uma cópia fiel). Lembro do jeito como ele anda (como um gorila de desenho animado, e também ando um pouco assim). Lembro do sorriso, das desculpas preguiçosas que ele usa para não resolver os problemas, do raciocínio manso; acredito que, mesmo sem ter vivido com ele, herdei tudo isso.
Mas encontro meu pai, principalmente, quando volto às canções que ele me ensinou a ouvir.
E todas elas, todas essas músicas e lugares e memórias (minha infância, minha família, meu passado, o que lembro e deixo de lembrar), estão armazenadas em discos dos Beatles.
A música, você sabe, sequestra nossos sentimentos e os arquiva para sempre. Um acorde pode disparar lembranças longínquas, impressões confusas, cenas traumáticas, acidentes e desilusões, o medo e os amores, o cheiro da adolescência. O tempo passa, mas o passado permanece congelado dentro das músicas que (talvez contra nossa vontade) mapearam a nossa vida.
Por isso, a associação é imediata: ouço Beatles e vejo meu pai. As canções remontam cenas muito específicas, criam uma narrativa. Meu pai na sala gravando Rubber soul em fita cassete para que eu ouvisse no meu quarto. Meu pai ensinando as diferenças entre Revolver e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Meu pai recomendando para que eu ouvisse Abbey Road “mais tarde, não é um disco simples”. E que o Álbum Branco era para adultos (o que só fez disparar minha curiosidade em relação a ele, o meu favorito da banda).
Meu pai defendia o Paul McCartney e, talvez como uma reação instintiva, me tornei um grande entusiasta das loucuras de Lennon. Para meu pai, o segredo do universo está codificado na melodia de Yesterday. Sempre fui do time de Dear Prudence.
O importante é que, por muito tempo, os Beatles eram o único ponto de contato entre as minhas experiências e as do meu pai. Nossa passarela. Sem os Beatles, eu não admiraria o sujeito da forma como o admiro. Ele seria apenas um pai ausente. Talvez ele se diluiria por completo da minha vida.
Era por tudo isso, por todos esses significados contidos nessas músicas, que hoje eu queria tanto, tão desesperadamente, falar com meu pai. Conversar com ele. Abriria a conversa com um bombástico “ei, pai, vi o Paul” – só para ouvir a reação do homem. Susto? Indiferença? Uma risada? Nada?
Além de espetáculo extraordinário (um dos mais tocantes que vi na vida), um show de Paul McCartney desperta todo tipo de impressão e lembrança num público que une jovens e adultos, crianças e avós. As canções pop, essas cápsulas de sensações, se adaptam ao temperamento de quem as ouve. No caso dos Beatles, que escreveram algumas das mais queridas do século 20, esse efeito de catarse ganha o poder de um fenômeno natural incontrolável. São as músicas que nós escolhemos (ou que nos escolheram) para encapsular as nossas memórias, trechos das nossas vidas.
Durante o show, me peguei tentando adivinhar o que All my loving representava para a menina de 13 anos que acompanhava os movimentos do ídolo com uma câmera digital. Qual era o sentido que ela impregnou àquela canção? Depois, notei um quarentão tirando os óculos para secar lágrimas que caíam durante Something. Qual teria sido o poder daquela canção naquela pessoa? Não sei. Possibilidades infinitas.
No meu caso, me surpreendi com canções que me emocionaram. No início do concerto, admito que não consegui criar o elo entre o homem de 68 anos que entrou no palco e aquele rapaz corretinho de Liverpool que, nos anos 60, interpretou as músicas que me aproximaram do meu pai. Algo parecia errado. Algo parecia solto no tempo, desprendido do espaço, como se aquele homem não tivesse o direito de reavivar uma canção como All my loving, que deveria existir apenas nos nossos discos, nos nossos cérebros, nas nossas fitinhas antigas e gastas.
Aconteceu que, pouco depois, o show começou a fazer sentido com tanta velocidade que me engasguei, perdi o ar. Foi durante Drive my car, uma canção não tão pungente quanto Yesterday ou Something ou Hey Jude, mas que, para mim, soou fatal. Soou como um estrondo. Quando as 64 mil pessoas começaram a cantar em coro, aconteceu o milagre: eu estava novamente na casa do meu pai, conversando com ele, ouvindo Rubber soul numa tarde de sábado. Senti até a temperatura da sala. Senti a paisagem fora da sala.
O segundo golpe veio com Blackbird. Paul vai ao centro do palco, a banda se recolhe e sozinho, ele é acompanhado apenas pelo dedilhado de violão. O público reconhece a música e grita, quer chutar a porta da canção. Mas é a voz de Paul que flutua sobre o coro. A confusão está feita: quem canta a música? O Paul de hoje ou de ontem? O que aconteceu com o tempo? Por que aquela canção que ouvimos tantas vezes voltou a nos tocar? Antes que eu tentasse responder qualquer uma dessas perguntas, chorei mais uma vez.
Chorei sem saber por que eu chorava. Depois tentei entender. Mas tai algo que, horas depois do show, ainda me parece um tanto misterioso.
Depois de A day in the life, imaginei como seria se meu pai estivesse comigo naquele show. Possivelmente ele esconderia o choro. Tai: nunca vi esse cena, meu pai chorando. Nem aos 30 anos, nem aos 40, nem aos 50. Desconfio: não conheço meu pai. Dele tenho apenas uma imagem superficial. O rosto duplicado no meu rosto, projetado numa canção de Lennon e McCartney.
O show de Paul é simples o suficiente para permitir que entremos nele. Não nos afasta; nos abraça. Não é maior do que as nossas memórias – está à mesma altura delas, ele as envolve. O único momento de pirotecnia (em Live and let die) soa mais como um exorcismo (nossa catarse explodindo em fotos de artifício) do que mera demonstração de poder e dinheiro. Estamos em outro mundo. Não somos ingênuos, entendemos a máquina milionária que opera um show cujo repertório se repete, até de forma previsível, noite após noite. Mas aceitamos o jogo, precisamos do jogo, o jogo nos alimenta: Paul nos conduz a esse túnel largo onde confrontamos nossa própria história e o passado da música pop.
Yesterday, portanto, é a chave do show (e talvez da carreira de Paul).
E, depois da música, lá no segundo bis, o espetáculo passa a parecer até didático. Paul revê a própria trajetória, dos anos 60 aos 2000, para comprovar a eternidade das canções que escreveu. Elas sobreviveram. Mais do que isso: elas se renovam. Elas estão no ar. Elas venceram. Elas estão acima da nossa capacidade de compreender o efeito que elas provocam em nossos corpos, na cabeça, no peito, nos nossos ossos.
Duas horas depois do show eu ainda não sabia por que havia chorado em Blackbird. Descobri hoje pela manhã, quando o avião aterrissou em Brasília e encontrei uma cidade coberta por neblina. Lembrei de um dia em que eu viajei com meu pai para uma cidade muito fria (não lembro o nome, infelizmente) e Blackbird era a música que eu ouvia insistentemente no Walkman. Um período complicado: o velho não parecia confortável dentro de um segundo casamento, havia perdido o controle de uma rotina que não o entusiasmava. Era terrível de ver. Num dia, muito cedo, pediu o Walkman e começou a ouvir a fita. Ele estava recolhido na varanda, mas espiei a cena. Meu pai assobiando a música, com o olhar perdido, triste, pássaro sem penas.
Ali (eu tinha uns 14 anos) percebi que aquele homem nunca não me defenderia de nada. Era uma pobre alma. Um fraco. E um exemplo que acabei seguindo, mesmo à distância. Quando Paul interpretou Blackbird, talvez eu tenha sentido um tanto daquele desespero que meu pai sentiu. Hoje, aos 31 anos, já desencantado e cansado, eu o entendo.
Acredito que foi por isso, por causa de Blackbird e Drive my car, que tentei telefonar para ele logo que cheguei em casa. Para falar do show, talvez só por isso. Não: para pedir ajuda. Um conselho, uma informação útil, uma dica. E agora, pai, pra onde eu vou?
Sei, sei bem, que ele responderia com uma frase vaga, inútil, ficaríamos em silêncio. Um, dois, dez minutos. E nosso único elo voltaria a se esconder em canções que, quando amplificada pelas caixas potentes de um megaconcerto de rock, ainda me fazem chorar.
2 ou 3 parágrafos | Machete e Green Day
Robert Rodriguez, 42 anos. Billie Joe Armstrong, 38. Poderiam ser meus tios. Mas posso usar a palavra maturidade (ou outra menos desgastada, com o mesmo significado) para descrever a fase atual de um cineasta e um rockstar que nunca abandonaram a adolescência? Por coincidência, assisti a Machete na manhã seguinte ao show do Green Day em São Paulo: são dois exemplos de arte juvenil pensada por gente grande.
No show, Armstrong cria um circo, um playground quase grotesco (há um momento especialmente kitsch que me lembrou as cafonices de Las Vegas), para assumir a vocação para entertainer. O espetáculo é tão populista quanto possível (em quase três horas, a banda toca praticamente tudo o que os fãs querem ouvir), mas até essa imensa generosidade do trio vem carregada com um tom de farsa, de brincadeira venenosa. O “show de calouros” de Armstrong mostra com clareza a identidade da banda: mais afinada ao hard-rock excessivo dos anos 70 do que ao hardcore melódico dos anos 90.
Machete (4/5) é todo feito de conceitos também precisos, que definem um estilo. Rodriguez, que codirige o longa com o montador Ethan Maniquis, geralmente é atropelado pelas próprias ideias. Filmes como A pedra mágica e até mesmo Planeta terror (de que não sou grande fã) podem deixar a impressão de um moviemaker criativo porém frenético e desatento, sem paciência para consolidar todos os planos que faz na pré-produção. É uma surpresa, por isso, notar que Rodriguez finalmente conseguiu criar uma comédia sangrenta, à grindhouse, com alvos muito bem definidos (a esculhambação mal esconde um ataque feroz às instituições e às manias americanas) e um protagonista que representa a obsessão do diretor pelos heróis mexicanos (e Danny Trejo, antes coadjuvante, é um achado). E é um filme ainda mais “grosseiro”, mais popularesco quanto os primeiros projetos do diretor. A crianções como eu, Rodriguez e Armstrong alertam: pode levar muito tempo para que nos tornemos adolescentes verdadeiramente interessantes.
2 ou 3 parágrafos | Franz Ferdinande!
Depois de ter escrito um caminhão de abobrinhas sobre os shows do Guns N’ Roses e do a-ha, me sinto na obrigação de contar alguma coisa sobre a passagem diabólica (explico: fazia um calor infernal) do Franz Ferdinand por Brasília. Acontece que – a-há! – não tenho muito a dizer sobre a performance dos rapazes. Isso me deixa um pouco incomodado, já que foi um show muito, muito bom.
Não deixa de ser um negócio estranho: por que, no day after, bateu uma certa apatia. Teria sido um show apenas correto? Não pode: o Franz é uma das bandas mais precisas do mundo. Tudo está no lugar certo — o carisma do vocalista (que dá chutes no ar e sorri quando o fã salta do palco num mosh desengonçado, e diz ‘Franz Ferdinande!’ com sotaque carioca), o entusiasmo do baterista, os incríveis macetes do guitarrista (que manda muito bem nos sintetizadores), as jams hipnóticas (se bem que a batucada de Outsiders, marca registrada deles, já está virando um tique), o namorico com a dance music, o baixo pesadão, os hits poderosíssimos, a atitude invariavelmente cool (antes do show, eles aqueceram o público com quatro faixas do disco novo do Caribou!)…
De onde vem meu incômodo, então? Talvez tenha sido culpa do set list meio torto, que queima todos os hits bem antes do bis. Ou do uso desleixado do telão, jogado às traças. Ou nada disso. Talvez minha birra resulte de uma espécie de choque térmico: depois dos excessos (sentimentais, pirotécnicos, patéticos) do Guns N’ Roses e do a-ha, o Franz me pareceu carne crua, hambúrguer sem ketchup, biscoito sem recheio de marshmallow. Mas do que estou reclamando? É o que dá cair de barriga no século 21, sem asa delta. A filosofia da geração desse quarteto (e do Strokes, e do White Stripes) é podar a penugem e ir ao osso da canção, da atitude, da encenação, da pose (e há pose sim, como não?). O show deles deixou essa imagem: é ossudo. Cálcio à beça. Símbolo de uma época. E, possivelmente, um espetáculo que deveria ter feito de mim um sujeito realizado. Mas não foi bem o que aconteceu — e é bizarro, acreditem, não saber por que.
Guns N’ Roses em Brasília
O palco do Guns N’ Roses é um campo minado. Um rojão explode a cada 10 minutos. Ninguém está seguro. O bombardeio, quando chega, é tão extremo que solta algum cheiro de apocalipse. O estádio estremeceu? Em tempo de terremotos emmerichianos, não há como não ficar (pelo menos um pouco) estressado. Mas tudo é artifício. A terra treme, espalha fumaça, cospe fogo, dispara faíscas coloridas de festas juninas e, depois do vigésimo estouro, estamos anestesiados. É só um show de rock.
Antes de começarmos, um rápido flashback: comprei ingresso para o show do Guns N’ Roses (domingo à noite, no ginásio Nilson Nelson, Brasília) talvez disposto a reencontrar o Tiago meninão que, em 1991, queria ser Axl Rose. Chamem de masoquismo. Minha pré-adolescência, como muitas outras, foi estranha. Ainda não entendo como, naquela época, eu conseguia amar simultaneamente os hits medonhos do Information Society, Roxette, Skid Row, The Simpsons (sing the blues!), Paula Abdul, New Kids on the Block e… Guns N’ Roses. November rain era minha Bohemian rhapsody.
Dois anos depois, eu me envergonharia disso tudo. É natural. A pré-adolescência, como eu ia dizendo, pode ser pavorosa. Daí que entrei no ginásio, 30 anos no meio da testa, com aquela aparência esnobe de quem assiste a um megashow de rock com o distanciamento de quem se submete uma “experiência pop”. Ã-hã. Mal sabiam que o Tiago pré-adolescente, tinhoso e cruel, pulsava de saudades, faminto por sucessos radiofônicos moribundos. O show de abertura (Sebastian Bach!) provocou arrepios de nojo e nostalgia. 18 and life é mesmo um horror, mas diz muito sobre o babaca sentimental que eu era naquela época (e que ainda está um pouco vivo, e vaso ruim não quebra).
O que mais me agrada na ideia de escrever textos em blogs é que temos o direito de mandar os bons modos às favas: desculpem-me os fãs mais talibãs e os adeptos tardios da axlmania, mas o show do Guns N’ Roses em Brasília foi uma bela merda. Uma fedida, imensa, cafona, barulhenta, estúpida, bela merda. Mas, antes que o primeiro fanático grude este post numa comunidade odiosa do Orkut, peço para que reparem no adjetivo: uma bela merda não é qualquer merda. E, quando eu digo que o show foi uma bela merda, estou fazendo uma espécie de elogio. Acreditem em mim.
No início dos anos 90, essa fanfarronice ganharia o apelido da moda: farofa. Como todo legítimo espetáculo farofeiro, a turnê do Guns não tem limites. Perde a medida logo nos primeiros cinco minutos. É Onde vivem os monstros dirigido por Baz Luhrmann. A produção escolheu uma banda de heavy metal de Brasília para abrir os trabalhos, mas a quem eles querem enganar? Guns N’ Roses nunca escondeu no armário a quedinha por Queen, Elton John e Kiss. Se existe uma definição para esse som escancaradamente festivo, seria algo como glam-hard-rock. Sabe Extreme? Sabe Mr. Big? Axl Rose pairou sobre tudo isso feito um urubu-rei.
Não é um show que pede licença, e isso me agrada. Axl Rose não mira o cérebro, mas o intestino. Daí as explosões desagradáveis no palco. Que irritam. E pregam sustos no público. Daí a chuva de confete e serpentina. E a lista de pedidos estranhos à produção (muito champanhe, alguma cachaça, toalhas brancas). As imagens nonsense exibidas no telão (em You could be mine, o que significam as cenas de corrida de Fórmula 1, tio Axl?). Os solos ridiculamente exagerados. Cada música é devassada numa escala monumental. Impossível sobreviver às 2h45 de show sem ficar pelo menos um pouquinho cansado.
Eu admito: fiquei exausto. Às 2h45 da madrugada, quando Axl deixou o palco, tudo o que eu queria era deitar meus neurônios num balde de gelo.
Lá pela terceira música, quando meus tímpanos zuniam com o eco de uns cinco cabeções-de-nego, notei que o Guns N’ Roses que estava no palco não era exatamente o Guns N’ Roses da minha pré-adolescência. Não é nem poderia ser. A banda estava totalmente remodelada (um septeto formato por tipinhos calculadamente exóticos) e o próprio Axl era um avatar inflado daquele ídolo que, lá por volta de 1994, morreu e voltou na pele de um esquisitão obcecado por new metal e política chinesa.
E àqueles que me perguntam se o Axl ainda canta, respondo o seguinte: não sei. Pergunte a outro. Da arquibancada, ouvíamos absolutamente tudo (a bateria, a percussão, os chocalhos, o piano, a metralhadora de bombinhas, os ruídos bizarros à rock industrial), menos a voz de Axl Rose. Não é curioso? O que esperamos encontrar de aparentemente genuíno num show do Guns N’ Roses é a figura de Axl, a celebridade-problema, o monstro congelado no início dos anos 90, o Macaulay Culkin crescido. E tudo o que vimos foi um sujeito de bandana gesticulando agoniadíssimas canções de amor. Um videokê.
Coisas assim acontecem, eu sei. Shows são imprevisíveis, eu sei. Lembro de um da Marisa Monte: espremido na beirada da arquibancada, não consegui ver o palco (que estava aprisionado por um freezer luminoso de arte moderna) e não ouvi o som (cheio de delicadezas sussurradas). Em Brasília, no ginásio Nilson Nelson, esse tipo de coisa acontece com certa frequencia.
Sorte a minha que, no caso do Guns, consegui entender o que acontecia no palco. Os músicos improvisam melodias engraçadinhas (o tema de James Bond, David Bowie, Pantera cor de rosa) enquanto Axl some no camarim (e ele sumia tantas vezes que começamos a suspeitar que ele estaria assistindo ao Oscar e tocando nos intervalos da transmissão). Axl retorna e intercala um hit com uma faixa desconhecida de Chinese democracy. Bombas explodem. É uma guerra, é uma guerra, e ela continua assim por quase duas horas.
A banda (cover) o acompanha com muita precisão. No telão, vemos imagens de meninas depressivas e suicidas. Axl, para quebrar a rotina, vai ao piano e toca November rain. O povo chora, mesmo sem ouvir a voz do moço. Daí ele toca Patience (e dá a deixa pra todo tipo de piada maldosa – esperamos 1h30 para a montagem do palco). O povo se emociona e grita “esta é minha música!”, mesmo sem ouvir a voz do sujeito. Ele sai do palco e volta. Canta outra faixa obscura do Chinese democracy. E termina com Paradise city, que reprisa o entusiasmo com que recebemos o momento bombástico e irado da noite, Welcome to the jungle. Chove serpentina. É carnaval na farofalândia. Axl, bonachão, pede desculpa aos pais que precisam levar os filhos ao colégio. Muita gente boceja.
E é isto: um showzaço escroto e safado e muito ca-fo-na que esfrega na nossa cara o quão grosseiro era o nosso gosto musical em 1991. Tomem isto. Dancem com isto. Chorem com isto. E ainda houve quem disesse que Brasília nunca viu um evento tão grandioso, tão espetacular, tão bonito e poderoso. Então é isso que vocês querem, é? Farofa, suor e rock ‘n’ roll? Nós, brasilienses, ainda seremos devastados pelo nosso complexo de inferioridade.
Para mim, funcionou como uma espécie de terapia. Agora entendo por que, na minha autobiografia íntima, pulo essa temporada confusa da minha vida. Para todos os efeitos, nunca tive 11 anos de idade. Nunca comprei fitas cassete do Guns N’ Roses. Nunca usei bandana em bloco de carnaval. E nunca, em nenhum momento, juro que não quis ser Axl Rose quando eu crescesse.
Quero menos ainda. Pelo menos até o dia em que o fantasma da minha pré-adolescência resolver me atazanar de novo. Eu era um menino muito estúpido, já disse isso? Mas e o Poison, ainda faz turnês?
A day in the life | Neil Young e Paul McCartney
Caramba, emocionante isso.
No Hyde Park,em Londres, sábado à noite, Paul McCartney praticamente invadiu o show do Neil Young para dividir o microfone numa obra-prima dos Beatles.
Agora repare na letra. Não sei se eles calcularam uma homenagem ao Michael Jackson, mas está tudo ali. “I read the news today, oh boy…”
Pelo visto, eles levaram ao pé da letra o conselho do Jacko: “heal the world, make it a better place”… E agora deixem-me voltar ao trabalho, ok?