Sentimentos conflitantes
High violet | The National
Tenho quase certeza de que conheço o narrador das canções do The National: é um homem de trinta e poucos anos, intensamente melancólico, que, depois de uma noite terrível, acordou com a sensação de que as paredes do quarto ganharam uma consistência macia, feito colchão de água. As cortinas perderam a cor (o que aconteceu com elas?). O teto decolou para Marte. Ele tenta se concentrar, mas só consegue pensar em três ou quatro frases sem sentido, que giram em torno da cama numa ciranda enervante.
Ok, vocês mataram a charada: eu sou o narrador das canções do The National. Bingo. Muito prazer. Puxe uma cadeira, por favor. A vida… não… vai… fácil… meu…. irmão.
Bem, talvez eu não seja verdadeiramente o narrador das canções do The National. Talvez todos nós tenhamos nossas manhãs de narrador-das-canções-do-The-National, quando o cotidiano embaralha as nossas roupas, some com os nossos livros, derruba lama no piso da sala e, de surpresa, nos deixa mudos, congelados, estirados na cama, sem corpo, quase dissolvidos no ar (nem que por alguns dez minutos, e eles duram para sempre).
Esse protagonista recorrente, que aparece em faixas agoniadíssimas como Mr. November e Mistaken for strangers, retorna especialmente tenso em High violet, o quinto disco do The National. Um sujeito inseguro e atormentado, que luta em silêncio para se livrar de uma rotina infernal. “Eu vivo numa cidade que a tristeza construiu. Ela está no meu mel, no meu leite”, ele admite, em Sorrow. A canção-autorretrato oferece um perfil psicológico até muito preciso desse homem em queda (que poderia ser confundido com o vocalista Matt Berninger, mas vamos fazer de conta que é tudo ficção, ok?).
Antes, na primeira música do disco, o narrador confessa que está preso a um amor terrível. A dor é uma companhia silenciosa. “Eu não consigo dormir sem uma pequena ajuda”, diz. Mas, ainda assim, não se entrega. “Não vou te seguir à toca do coelho. Eu disse que iria, mas sua pele e seus ossos disseram não”, ele conta. Enquanto isso, as guitarras rasgam a melodia, os versos se repetem (dão voltas ao redor da cama) e o drama permanece sem solução.
De forma mais ou menos explícita, essa história triste se repete no disco inteiro. Em alguns momentos, ganha tom de crônica tragicômica. É o caso de Bloodbuzz Ohio, que relata um encontro familiar. “Eu nunca pensei em amor quando lembro da minha casa. Eu ainda devo dinheiro ao dinheiro que devo ao dinheiro”, diz, antes de deitar a cabeça no carro, desamparado. “Eu sinto medo de todo mundo”, confessa, em Afraid of everyone.
Esse homem comum não está, no entanto, num beco sem saída. Em Little faith, ele aponta para uma discreta salvação. “Eu não quero ser o fantasma de ninguém”, avisa, em Anyone’s ghost. “Não serei um fugitivo”, promete, em Runaway. Mas terminamos o disco sem saber se esse desejo de libertação foi concretizado. É tudo muito vago, confuso (de propósito). Fluxo de consciência. Pesadelo.
A cada disco, a banda parece procurar uma sonoridade adequada para ilustrar esses sentimentos conflitantes e destrutivos, essa “reunião secreta no fundo do cérebro” (como explicam em Secret meeting). Em Alligator, os momentos delicados eram alternados aos mais raivosos. Esquizofrenia pura. Já em Boxer, as melodias definem uma atmosfera de monólogo íntimo, sussurrado, quase doce, Tindersticks meets Joy Division, mas tão desesperado quanto.
Agora cá estamos. Em High violet, os arranjos soam tão febris e instáveis quanto as confissões do narrador. As maior parte das músicas lembra o repertório de Boxer, mas caminha para desfechos violentos, ruidosos, de catarse. Elegância manchada de sangue. Aposto que, no palco, elas provocam taquicardia.
É de doer. Em Afraid of everyone, Sufjan Stevens acompanha Berninger no vocal (“Sua voz roubou minha alma”, eles cantam), enquanto a bateria de Bryan Davendorf vai empilhando efeitos até estourar em golpes agressivos. Terrible love, outro veneno, vai se afogando em distorção. O aparato luxuoso do disco (que usa vários instrumentos de sopros, cordas, além de piano) e os convidados especiais (além de Sufjan, tem Justin Vernon e Nico Muhly na folky Vanderlyle crybabe geeks, talvez a única grande surpresa do disco) só aparecem quando precisam aparecer – e, geralmente, são as cerejas explosivas desses hinos dark.
É um paradoxo dos bons: enquanto a banda se mostra mais segura do que faz e certa do som que procura (correndo o risco de esgotar um formato que ela refina desde o primeiro disco), o narrador das histórias parece cada vez mais fragilizado, desencantado, um homem condenado a viver dentro de canções tristes e de manhãs traiçoeiras. Mas temos o direito de cobrar algo diferente? Esse é o mundo do The National. E, às vezes, esse é o nosso mundo.
Quinto disco do The National. 11 faixas, com produção de Peter Katis e da própria banda. Lançamento 4AD. 8/10