São Paulo
Mixtape! | Junho tá frio, tá quente
Passei dois, três dias tentando escrever alguns parágrafos sobre São Paulo, a cidade onde estou passando uns dias de férias. Mas não consegui, falhei. Daí que tomei uma decisão mais ou menos trapaceira: uma mixtape, pensei, me ajudaria a enquadrar um cenário que ainda não entendo bem. Vocês sabem: quando faltam palavras, apelo para as canções dos outros.
Então taí: a coletânea de junho contém as minhas impressões sobre este mundão-de-deus, essa megalópole das sirenes, esse monstrão-de-concreto-e-luz, essa capital grandalhona e muito charmosa que, pra mim, já se transformou numa espécie de lar paralelo. Ou, para sermos menos abstratos, num segundo quarto – ele fica um pouco longe, é verdade, mas já me parece familiar.
A verdade é que este blogueiro forasteiro, nascido no Rio e criado em Brasília, não troca nenhum lugar por São Paulo. É isso. Tanto que, nas férias, ele sempre vem pra cá (e não existe praia que provoque nele o entusiasmo de caminhar na Avenida Paulista, assim à toa).
Mas voltemos à mixtape de junho. Porque viemos aqui pra isso.
O CDzinho da vez trata de São Paulo, sim, mas não só desse tema. É um pouco autobiográfico, como sempre (daí a quantidade de faixas sobre amor, sobre estar amando, sobre amar para sempre etc.), mas a ideia era gravar uma coletânea calorosa de inverno. Existe mesmo um contraste curioso, se vocês repararem bem, quando alguns dos seus amigos estão de férias no verão europeu enquanto você congela neste freezer aqui.
Daí que o disco começa vibrante, queimando gasolina, e termina num ambiente mais confortável, coberto por edredon, dentro de um sonho. O miolo é turbulência. Tem uns momentos estranhos, não vou negar. Mas percebo que, resumindo a ópera, esta é a mixtape mais pop que gravei.
São três atos. O primeiro, todo zoado, no esquema vou-pra-galera. O segundo, mais nervosinho, é uma treta braba. O terceiro, uma chuveirada morna pra enxotar o estresse. Pense aí num sorvete napolitano. Três sabores, começando com o de chocolate e terminando com o de morango. É quase isso (e, se vocês imaginavam que as descrições das minhas mixtapes não poderiam ficar mais ridículas, eis que…).
O CD tem Beyoncé e Ty Segall, Lady Gaga e Washed Out, Arctic Monkeys e Cults, Friendly Fires e Memory Tapes. Tem também WU LYF e uma vinhetinha do Frank Ocean que pode passar despercebida. Ele abre com Handsome Furs, que serviu de guia para a seleção inteira (e a foto da dupla ilustra este post: o CD Sound Kapital é o meu favorito do mês). A lista de músicas está na caixa de comentários.
Ah, claro (e como eu poderia esquecer disso?), é a minha melhor mixtape de todos os tempos.
Não demore muito pra fazer o download (que o arquivo periga desaparecer rapidinho). Ouça em volume alto. E depois dê um cheiro, um chamego, uma nota – de 0 a 10 – na caixa de comentários ali embaixo. Sem a sua colaboração, meus bróderes, vai ficar parecendo que tudo aqui neste blog confuso está sempre muito bem, muito bom. E a vida é mais complicada que isso.
Vá nessa, maninho, e faça o download da mixtape de junho. Até já.
James Blake | James Blake
Quando o avião desceu no aeroporto de Brasília, domingo à noite, ainda não chovia. Mas lembro do céu avermelhado — aquele vermelho escuro, sangrento, vazando entre as nuvens, prestes a desmoronar num aguaceiro. Desde que moro na cidade (e cheguei há quase 20 anos), é uma imagem que me deixa agoniado. Por aqui temos céu em exagero — quando ele se enfeza, não há como ignorá-lo.
Mas o curioso é que, apesar da fúria climática, eu estava tranquilo. Nada me assustava naquele momento. Mais estranho que isso: nada, nem a vermelhidão do céu, despertava um átomo sequer da minha atenção. Eu flutuava anestesiado no setor de desembarque. No espelho do banheiro, tudo o que consegui notar foi um menino com um sorriso impossível de ser desfeito, perplexo diante de um aquário gigante. O que acontecia?
Algumas horas antes, quando anunciaram que o aeroporto de São Paulo seria fechado por conta do mau tempo (e as pessoas pareciam preocupadas com as pancadas medonhas de chuva), eu me senti aliviado por ficar mais algum tempo naquela enorme sala de espera, aquele purgatório refrigerado, eu e dezenas de desconhecidos. Não tenho certeza, mas devo ter pedido um suco de laranja.
Eu estava desligado da cidade, do mundo, um pouco desligado da vida. Uma sensação de torpor que, para mim, não é tão comum. Só que não era uma sensação ruim. Naquele fim de semana, algo novo começara. Havia um terreno a ser habitado — e ele se abria diante dos meus olhos. Fui procurar meus fones de ouvido e liguei, não por acaso, no disco do James Blake.
É um álbum que me acompanha desde o fim de dezembro, e que, aposto, vai me seguir durante o ano. Uma espécie de vulto, de nuvem vermelha. Que pode soar ameaçador, mas acho que vai me fazer bem.
Quando escrevi sobre Kaputt, do Destroyer, percebi no disco algo sobre as tentativas que às vezes fazemos para recriar a vida, alterar um destino que nos parece cômodo. A transformação da banda de Dan Bejar se comunicava diretamente com o meu desejo de abandonar para sempre algumas experiências recentes, desastrosas: o fim de um longo namoro e a dificuldade de aceitar um cotidiano que me parecia vazio, incompleto.
O disco do James Blake ressoa de uma forma parecida, ainda que mais profunda. É um álbum com lacunas que ainda não foram preenchidas. De certa forma, soa como um esboço de canções em branco e preto à espera de um retoque, de uma aquarela. “Está germinando”, diz Blake.
E é assim que, nessas canções desencarnadas, eu me enxergo.
Haverá muitos textos sobre este disco, comparações rasteiras serão feitas (Antony and the Johnsons, Thom Yorke), prevejo um bombardeio de hype e bajulação (em 2010, os Eps do britânico entraram no alto de melhores do ano da Pitchfork). Mas espero que não subestimem o que há de singular na arte de Blake: a forma como as canções se desnudam até soar quase como sussurros, monólogos secretos. Elas abrem espaços silenciosos onde nós, os ouvintes, podemos criar as imagens que bem entendemos. Em resumo: podemos colorir essas músicas e, assim, torná-las um pouco nossas.
Blake comenta em entrevistas que o disco de estreia do The XX foi uma grande inspiração. Há semelhanças. São dois álbuns que depuram as canções até um formato muito econômico, quase frágil. Negam os efeitos mais artificiais e as firulas de estúdio para valorizar a força dramática da hesitação, das cenas em que nada parece acontecer.
A diferença é que não consigo notar no disco de Blake as referências oitentistas do The XX: o compositor cria uma conexão estreita entre a soul music dos anos 1970 e o dubstep (e toda a eletrônica mais minimalista, daí a semelhança com o projeto solo de Yorke) dos anos 2000. Blake é um soulman escrevendo a trilha para as madrugadas de 2011.
Como acontece com o début do The XX, ele soa especialmente forte quando cruzamos as ruas largas de Brasília. Talvez por ser uma cidade que ainda não está pronta, que não nos mostra a cada minuto o quanto estamos sozinhos sob um céu onipresente. Blake mal faz desconfia, mas escreveu um disco bem brasiliense, que será compreendido integralmente por quem dirige no Eixão às duas da manhã numa noite chuvosa. Concreto e silêncio.
No meu caso, ele representa um pouco mais do que isso. As canções de Blake até me confortam, já que me sugerem a possibilidade de um recomeço. É assim que interpreto o disco: uma estreia que me emociona por soar verdadeiramente como uma estreia. Blake começa de um arcabouço vazio e vai erguendo lentamente, cuidadosamente, os tijolos de cada faixa. O prédio parece alto, mas o disco termina antes do segundo andar.
Os versos são curtos, confessionais, e se repetem num loop hipnótico. “Tudo o que sei é que estou caindo, caindo, caindo”, ele diz, em The Wilhelm scream, “Meu irmão e minha irmã não falam comigo, mas eu não os culpo”, entrega, em I never learnt to share. Até a adaptação de Limit to your love, de Feist, soa particular: “Há um limite para o seu amor, como um mapa sem oceanos”. Enquanto Blake se expõe — tão franco quanto um Jeff Buckley —, as melodias vão formando estruturas quebradiças de eletrônica e blues. É um disco de inverno, quase sempre melancólico, suicida. Mas tudo sob controle: uma encenação muito bem arquitetada.
Em apenas 38 minutos de duração, Blake isola o conceito do disco num recipiente fechado, quase que em vácuo. A concisão pode provocar algum incômodo (será criticado por soar monótono, anotem aí), mas, numa época em que os grandes discos tentam soar gigantescos, esta parece uma ousadia muito bem-vinda.
Depois de chegar em Brasília, na madrugada de domingo, ouvi ainda mais uma vez. Meus fones tremendo, volume máximo, as nuvens desabando lá fora. Numa época recente, ele despertaria em mim os sentimentos mais chuvosos. Neste incrível início de 2011, que me transformou repentinamente num homem otimista e feliz (uma criança pequena num playground), soa como algo totalmente diferente: um primeiro disco para o resto da minha vida.
Primeiro disco de James Blake. 11 faixas, com produção de James Blake. Lançamento Atlas/A&M. 8.5/10
Mixtape! | O melhor de outubro
A mixtape de outubro foi gravada durante as minhas férias e, por isso, deve soar um pouco mais amena, um pouco mais leve, um pouco menos agoniada, um pouco menos pilha-de-nervos, um pouco menos tique-nervoso do que a de setembro. Ela até parece um pouco ensolarada, vejam só que coisa estranha.
Não é uma coletânea como as outras: a colagem foi feita não no fim, mas bem no meio do mês, antes da minha viagem a São Paulo (onde estou neste momento) e pouco depois da semana que passei no Rio de Janeiro. Portanto, o som remete muito mais a esse respiro carioca, do que à escala paulistana. A cor do som é mais azul do que cinza, portanto.
E só percebo isso agora, quando volto a ouvir o disquinho. As primeiras faixas evocam um souvenir de paraíso tropical – o mar, as moças de biquini, uma certa sensação de que as coisas vão terminar bem. Mas aí ele vai ficando um pouco estranho, um pouco torto, talvez você note climas cinematográficos, e (se você me conhece) talvez encontre nos versos e melodias muitas referências aos fatos que vivi, pessoas que conheci, sensações e incertezas… É, como sempre, uma mixtape muito pessoal.
Se existe uma palavra que define as minhas férias, ela tem quatro letras: fuga. Uma corrida louca, uma necessidade desesperada de ocupar o tempo (com filmes, palavras, discos, qualquer coisa) para que eu não corra o risco de ficar completamente sozinho, em silêncio, diante de mim mesmo. Não é simples.
Ainda assim, apesar de ser tudo ainda sobre mim, dedico esta coletânea aos meus amigos mais próximos, que me ajudam mais do que eles próprios percebem. Principalmente ao Diego Maia, o bróder de São Paulo que, apesar de muito mais novo, é um exemplo pra mim: um dos sujeitos mais inteligentes que eu conheço, e não apenas por preferir músicas alegres às tristes.
Então esta é uma mixtape de músicas alegres. Ou quase. O disco preferido do mês foi The age of adz, do Sufjan Stevens. Mas, como ele acabou entrando na coletânea tortuosa de setembro, quem ilustra este post é o El Guincho, que gravou um dos discos mais vibrantes do ano. E um dos que me acompanharam durante estas férias estranhas.
É uma mixtape com sabor de mate leão: tem, além de El Guincho, Delorean, Thurston Moore (interpretando Burt Bacharach), uma faixa emocionante do Clientele, Avey Tare, Manic Street Preachers, The Walkmen… A lista de músicas está logo ali na caixa de comentários.
Então faça o seguinte: tire a poeira da prancha, compre um bom protetor solar e faça o download da mixtape de outubro aqui ou aqui.
(E, depois, para alegrar o meu dia, não custa nada deixar um comentariozinho esperto sobre a coletânea. Não custa, custa? Não custa).
Diário de SP | Superoito no Planeta Terra
Com lamentável atraso, aí vão meus comentários (incrivelmente curtos) sobre os shows do festival Planeta Terra, que rolou sábado passado no Playcenter, em São Paulo. Os shows não me tiraram do chão, mas admito que fechei os olhos no looping da montanha-russa.

Móveis Colonais de Acaju | 7 | Como sempre, incansáveis (e o André está cantando cada vez melhor). A abertura do show foi, como diria Herbert Vianna, acima das palavras. Um pouco menos criativos no palco, no entanto.
Maxïmo Park | 4 | Não tão vergonhoso quanto The Rakes, mas quase lá. No palco, o pior acontece: tudo o que a banda fez de decente está concentrado no disco de estreia. Infelizmente, eles parecem curtir muito os outros dois discos. Serviria como show de abertura do Franz Ferdinand (ok, talvez nem isso).
EX! | 4.5 | Vi um pedacinho de nada, mas me pareceu uma paródia de todas as bandas moderninhas de Nova York (com uma vocalista que me deixou com saudades do La Roux). Era?
Primal Scream | 5 | As lembranças do show ruidoso, violentíssimo que eles fizeram no Tim Festival há alguns anos pesaram contra este (morno) retorno. E, para piorar, soou desconjuntado: começou como uma colagem das referências punk da banda, terminou com hits fáceis e sensação de psicodelia requentada. Pouco.
Sonic Youth | 7 | O primeiro show do Sonic Youth a gente nunca esquece (e o Metronomy que espere). Tudo bem: não há como descrever a força estranha que move Kim Gordon no palco (num determinado momento, acho até que ela virou Monga, a indie selvagem). Também tenho que admitir que é intelectualmente muito excitante assistir a uma banda que vive no presente e não dá bola para os próprios hits. Mas é um show que deve ter deslumbrado especialmente os fãs do disco mais recente deles. Sei que seria pedir muito, mas eu preferiria ter curtido o repertório de Murray Street ou de Washing machine.
The Ting Tings e Iggy and the Stooges | Vi um pouco dos dois shows (a organização do festival, sádica, marcou as duas atrações para o mesmo horário), nem dá para avaliar direito. Ting Tings rendeu mais do que eu esperava: eles conseguem segurar o público por quase 60 minutos com apenas três hits e clima de programa de auditório (eu daria um 7, vai). Do Iggy vi só três músicas e me arrependi de não ter ficado mais tempo no palco principal.
N.A.S.A. | 4 | Picaretagem muito da vagabunda.
Etienne de Crecy | 8 | Surpresa: quem procurava espetáculo visual encontrou um parque de diversão inteiro no show hipnótico do DJ francês. Dançando no cubo mágico. Fantástico.
Diário de SP | Superoito na Mostra
Diário da viagem de Tiago Superoito a São Paulo. Em cerca de 20 dias, ele pretende acompanhar a Mostra de SP e, entre uma sessão e outra, ouvir alguns discos.
Os filmes vão em azul. Os discos e shows em vermelho.

5/11
Os famosos e os duendes da morte | Esmir Filho | 6 | Sei que estou em minoria, mas gostei da estreia de Esmir Filho. A ambição de fazer uma espécie de Paranoid Park para fãs de Mallu Magalhães quase nunca se resolve maravilhosamente bem, mas o diretor banca o risco de retratar (com naturalidade e lirismo) uma geração maltratada e/ou desdenhada pelo cinema brasileiro.
Ninguém sabe dos gatos persas | Bahman Ghobadi | 7 | Apesar de não ter me convencido tanto assim nas tentativas de ficção, trata-se de um ótimo, vibrante doc sobre a música underground de Teerã (acredite: no Irã, bandas de indie rock são caso de polícia) .
A ilha de Bergman | Marie Nyreröd | 6 | Documentário televisivo (com jeitão de Biography Channel), mas Bergman é Bergman.
Brilho de uma paixão | Bright star | Jane Campion | 5.5 | Este conto romântico talvez seja o filme mais solene de Campion. Muito bem realizado (e com um elenco excelente), mas engessado por um formato de filme de época preciosista que não me impressiona (ou comove) em nada.
Lebanon | Samuel Moaz | 7 | Um action movie de guerra que me lembrou em alguns momentos The hurt locker (talvez por retratar experiências muito específicas num combate). Mas não dá para esperar complexidade deste aqui: Moaz não apenas confina os personagens dentro de uma máquina como parece simular, na narrativa, o movimento agressivo, violento de um tanque de guerra. Sem sutilezas, portanto, mas muito preciso naquilo que quer mostrar.
Meu top 5 da Mostra:
1. Polícia, adjetivo 2. Vício frenético 3. A família Wolberg 4. Ervas daninhas 5. 35 doses de rum4/11
Samson & Delilah | Warwick Thornton | 5 | Os aborígines também amam (e se estrepam). Eu não me surpreenderia se recebesse uma indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Miserê soft.
Maradona | Emir Kusturica | 5 | Um filme sobre o personagem Maradona, que Diego interpreta razoavelmente bem. Kusturica, de quatro, não consegue mais que se deslumbrar com ele. Daria um curta. A Igreja Maradoniana, no entanto, é um achado.
Todos os outros | Alle anderen | Maren Ade | 7 | Todo filme sobre as oscilações de um caso amoroso tem que soar pelo menos um pouco enervante, e este não é diferente. Sentimentos contraditórios, rompantes de ódio, momentos de felicidade e êxtase… As atores levam a ideia a ferro e fogo e resultado é um drama intenso, que exige cumplicidade do público. Demorei a digerir.
Shirin | Abbas Kiarostami | qualquer nota | Mentira, é 6. Uma experiência inclassificável, mas fiquei com a impressão de ter visto um filme tão enigmático quanto matemático (e por isso frio). O conceito é ótimo: Kiarostami filma rostos de atrizes enquanto elas assistem a um filme inspirado numa fábula persa. Essa ideia, por si só, rende inúmeras discussões sobre cinema, representação, o papel do espectador… Todas elas, aposto, mais envolventes que o filme em si.
3/11
O amor segundo B. Schianberg | Beto Brant | 4.5 | Um filme coerente com o projeto que Brant desenvolve desde Crime delicado: a narrativa se abre ao acaso, às experiências de vida dos atores, a referências de outras obras (a peça Navalha na carne e o filme A concepção) e à sensação de improviso. Mas, ao contrário dos longas anteriores dele, esse aposta tudo numa estrutura muito frágil, que dependeria de atores extraordinários (e, mais que isso, interessantes) para se justificar. Não é o caso.
Soul kitchen | Fatih Akin | 7 | Esta comédia não tem nada de nouvelle cousine, e melhor assim: um Akin bem-humorado vale por dezenas de diretores europeus socialmente engajados. Personagens muito vivos, gags de primeira e um herói adorável: taí a receita de um crowd-pleaser improvável.
Making plans for Lena | Non ma Fille, tu n’iras pas Danser | Christophe Honoré | 5.5 | Nada é estável (ou verdadeiramente confortável) na família de Honoré. O francês tem bom olho para a crise doméstica, mas este drama choroso está mais para Lelouch que para Truffaut. Ajudaria se Lena não fosse uma chata de galochas – e aí não há Antony and the Johnsons que nos convença das fragilidades da protagonista.
2/11
Ontem este blog completou dois anos de vida (curiosamente, num dia de Finados). Parabéns pra ele.
Viajo porque preciso, volto porque te amo | Marcelo Gomes e Karim Aïnouz | 6 | O documentário atropela a ficção, mas também patina em lugares-comuns (a trilha sonora brega, as cenas com prostitutas). Ainda assim, um diário de viagem com trechos muito bonitos.
London River | Rachid Bouchareb | 5 | De novo, o blablabla sobre intolerância, diferenças culturais e solidariedade numa Europa pós-11 de setembro. Brenda Blethyn imitando um jumento é um dos momentos-vergonha-alheia da Mostra.
Alga doce | Tatarak | Andrzej Wajda | 7 | Um drama clássico dentro de um filme moderno. Wajda deixa que a realidade rasgue a ficção de uma forma tão violenta que a tristeza das últimas cenas fica quase insuportável.
I love you Phillip Morris | Glenn Ficarra e John Requa | 5 | Tá na cara: os diretores se impressionaram tanto com a história real do trapaceiro gay que esqueceram de fazer cinema. Tosco, ainda que mais sacana que a média (em 2009 já é permitido fazer piada com AIDS?).
1/11
off-Mostra
500 dias com ela | 500 days of summer | Marc Webb | 5.5 | Tem momentos simpáticos (e é bacana notar que a “moral da história” tem mais a ver com os poderes da autoestima que com a ladainha do amor eterno), mas a love story indie soa como decalque ralo de Nick Hornby.
This is it | Kenny Ortega | 5 | Celebração além-túmulo – um tanto mórbida, portanto. Mas, além de valer como registro, o trabalho de edição é primoroso: Ortega quase me fez acreditar que, pouquíssimo tempo antes de morrer, Michael Jackson se portava como um touro no palco. Poderes do cinema.
31/10
Dente canino | Kynodontas/Dogtooth | Yorgos Lanthimos | 4.5 | A ideia é interessante, mas o modo impassível como Lanthimos trata os personagens (são cobaias de uma encenação) vai fazer você repensar Anticristo.
30/10
O filho do caçador de águias | The eagle hunter’s son | René Bo Hansen | 4.5 | Exotismo pueril. Poderia estar na grade do Discovery Kids.
>> A família Wolberg | La famille Wolberg | Axelle Ropert | 8 | Provoca as emoções de um velho disco arranhado de soul music. Melancolia aveludada. Um dos melhores da Mostra (e, assim que chegam os créditos finais, já dá vontade de rever).
Quase Elvis | Almost Elvis/Karaokekungen | Petra Revenue | 4 | Humor desafinado, premissa bocó.
O fantástico Sr. Raposo | Fantastic Mr. Fox | Wes Anderson | 7 | Anderson pode até não ter encontrado uma forma de se livrar da camisa de força criativa onde está metido (o longa anterior dele já soava redundante), mas é um dos filmes mais fluentes que já dirigiu. Uma animação para crianças de muito bom gosto, digamos assim. E qualquer filme que abre com Heroes and villains merece minha consideração.
29/10
Seguindo em frente | Still walking | Hirokazu Kore-eda | 6 | Com meia hora a menos e sem algumas das frases-de-biscoito-chinês (tipo “os amigos que morrem nunca nos abandonam verdadeiramente”), acho até que o Kore-eda conseguiria ter feito mais que uma delicada crônica familiar. 35 doses de rum é uma homenagem menos óbvia a Ozu.
O solista | The soloist | Joe Wright | 5.5 | Wright tenta dar alguma dignidade ao bromance piegas. Jamie Foxx interpreta um carro alegórico (e muito provavelmente será recompensado pela proeza com uma indicação ao Oscar).
Insolação | Felipe Hirsch e Daniela Thomas | 5 | Hirsch é um dos poucos que me tiram de casa para ir ao teatro, daí o tamanho da decepção. Um cinepoema desapaixonado sobre o amor. Era essa a intenção? Mas ok: sem a tentativa de ficção (que pelamordedeus…), daria um documentário até bem razoável sobre a arquitetura de Brasília. O próximo filme dele será melhor que este.
28/10
Como ser Mr. Kotschie | Mensch Kotschie | Norbert Baumgarten | 5 | O cidadão-alemão-modelo, certinho, polido e bem casado, chega aos 50 anos de idade e esbarra numa crise existencial que… certeza de que não tem o dedo do Alexander Payne nisso aí? Alan Ball?
Singularidades de uma rapariga loura | Manoel de Oliveira | 7 | Um país solto no tempo, a cegueira do amor, uma bela homenagem a Eça de Queiroz. O começo é perfeito, só que… Raramente reclamo disso, mas taí um filme que me incomodou por ser curto demais.
O que resta do tempo | The time that remains | Elia Suleiman | 7.5 | Num tom ainda mais particular que o de Intervenção divina (sem a mesma verve, mas com gags tão ácidas e bizarras quanto), Suleiman olha com perplexidade para a própria história. Encontra uma vida cercada de horror por todos os lados.
Vencer | Vincere | Marco Bellocchio | 6.5 | Um melodrama febril, mas quase soterrado pelo próprio peso (eu não recomendaria uma sessão dupla com A fita branca).
26/10 e 27/10
>> 35 doses de rum | 35 rhums | Claire Denis | 8 | Sensibilidade incomum (e uma trilha sonora de arrepiar).
À procura de Elly | Darbareye Elly | Asghar Farhadi | 5.5 | Melhora um pouco quando um personagem-surpresa entra em cena, mas este thriller iraniano (com um subtexto político, como de praxe) não escapa muito do trivial.
Abraços partidos | Los abrazos rotos | Pedro Almodóvar | 7 | Quase uma sequência de A má educação: acerto de contas com o cinema. Há cenas extraordinárias (como aquela em que o cineasta cego tenta sentir as imagens tocando o monitor da televisão) e momentos em que o diretor parece ter ativado o piloto automático (toda a sequência final, do filme-dentro-do-filme). Ainda assim, Almodóvar vai do melodrama à esculhambação com aquela naturalidade que conhecemos bem.
Tyson | James Toback | 6 | Autorretrato franco (mas dirigido sem a menor inspiração).
Tokyo! | Michel Gondry, Leos Carax e Bong Joon-ho | 5, 7, 6.5 | Carax destoa do tom preciosista, à Amélie Poulain, dos episódios de Gondry e Joon-ho. De qualquer forma, eu não me incomodaria se o filme do Joon-ho tivesse 135 minutos de duração.
Independencia | Raya Martin | 7 | Vida e morte numa floresta impressionista.
>> Vício frenético | Bad lieutenant: port of call New Orleans | Werner Herzog | 8 | Harvey Keitel ainda reina, mas Nicolas Cage sua a camisa (e está tão bem quanto em Despedida em Las Vegas e A outra face). Mas as comparações com o filme de Abel Ferrara são inadequadas: Herzog desloca a trama para New Orleans, lima as crises religiosas, reforça o humor negro (o que são aquelas iguanas psicodélicas?) e vê a América contemporânea pela lente do absurdo. Um outro tempo, um outro filme – e tão poderoso quanto o original.
24/10 e 25/10
Distante nós vamos | Away we go | Sam Mendes | 5 | Mendes tenta se livrar da pompa, mas tudo o que consegue é um road movie fofo e fake. A trilha sonora, que dilui Nick Drake de 1001 maneiras, soa apropriada.
>> Polícia, adjetivo | Politist, adjectiv | Corneliu Porumboiu | 8 | Porumboiu sai à procura das palavras e imagens exatas. O melhor romeno que vi.
Mother | Madeo | Bong Joon-ho | 7 | Outro que sabota elegantemente as regras do “filme policial”. Joon-ho é um talento e a cena final, belíssima. Uma ressalva, no entanto: sei que isto não vai incomodar quase ninguém, mas a estrategia que ele encontra para resolver o mistério central da trama me pareceu uma solução fácil demais.
Sedução | An education | Lone Scherfig | 4.5 | Cumpre rigorosamente as exigências do Oscar: ameno, inofensivo, agradável e, por fim, vazio.
Aconteceu em Woodstock | Taking Woodstock | Ang Lee | 5.5 | O tom sugere uma crônica, mas a aparência é de charge em tom pastel. Raso em absolutamente tudo (e não melhora o livro, que é uma bobagem).
23/10
Ricky | François Ozon | 7.5 | Fantasia (na real).
A mulher do anarquista | Marie Noëlle e Peter Sehr | 3.5 | Uma minissérie escrita por Maria Adelaide Amaral. E dirigida por Jayme Monjardim.
>> Ervas daninhas | Alain Resnais | 8 | É uma heresia escrever apressadamente sobre este filme, mas adianto que o novo Resnais revê o tom afetuoso e elegante de longas como Medos privados em lugares públicos e Amores parisienses, mas, simultanemente, quebra nossas expectativas com uma narrativa livre, enigmática e bem-humorada, que me lembrou alguns filmes dirigidos por ele nos anos 80 (A vida é um romance, Amor à morte). Talvez não seja um grande Resnais (pode ser uma obra de transição, e espero que seja), mas é o filme mais aventureiro dele desde Quero ir pra casa.
A fita branca | Michael Haneke | 6 | Rigoroso e pedante (como esperávamos de Haneke), mas me parece um retrocesso em relação a Caché. O típico “filme de arte” que enche os olhos de jurados de festivais. É um deleite visual, e um drama mais bergmaniano que qualquer Bergman (imagine aí o sueco filmando o roteiro de Dogville). Mas a parábola sobre o nascimento do nazismo soa frágil (já que toda sustentada em relações de causa-efeito e didatismo sociológico) e Haneke insiste em carregar cada cena com um peso de auto-importância que entendo como excessivo. Não é muito a minha praia, mas vai ter gente defendendo com entusiasmo.
Sede de sangue | Park Chan-wook | 6.5 | No humor ou no horror, não tem estribeiras – o que, para um filme de vampiros, vejo como uma qualidade. Mas não sabe quando ou como acabar.
22/10
(…)
21/10
Novidades no amor | The rebound | Bart Freundlich | 4.5 | Nenhuma novidade (mas taí: nunca vi tanta criança vomitando dentro de uma comédia romântica).
Unmap | Volcano Choir | 6.5 | Soa menos como um novo projeto de Bon Iver e mais como uma participação dele num álbum do Collection of Colonies of Bees. Dito isso, o “convidado especial” faz com que prestemos atenção à arte sutil de uma boa banda de pós-rock, do tipo raro que cria atmosferas à serviço de melodias.
20/10
À procura de Eric | Looking for Eric | Ken Loach | 6.5 | Um Loach mais fluente que o de Ventos da liberdade (e menos efêmero que o de Apenas um beijo). Pode ser visto como uma comédia leve, um feelgood movie (e, com uma boa campanha, poderia entrar facilmente na lista dos indicados ao Oscar), mas também como um conto urbano muito coerente com antigas preocupações do cineasta, ainda um working class hero. Faz algumas jogadas ensaiadas (o roteiro de Paul Laverty é golpe baixo), mas não perde a doçura. A interpretação de Steve Evets, o carteiro que “conversa” com o ídolo de futebol, é das melhores do ano.
Quanto dura o amor? | Roberto Moreira | 4 | O filme felizmente dura 83 minutos (na maior parte da sessão, não consegui tirar da cabeça aquela canção do Blur que vai mais ou menos assim: They’re stereotypes/There must be more to life).
O caçador | Chaser/Chugyeogja | Na Hong-jin | 6 | A trama é literatura pulp tratada a ferro e fogo (talvez isso explique as comparações, nem sempre justas, com Park Chan-wook e Bong Joon-ho). Mas o cineasta não tem pulso, pilota no automático – daí a flacidez da narrativa.
19/10
Anticristo | Lars von Trier | 7 | O pesadelo de Trier talvez seja mesmo controlado demais (qualquer delírio de David Lynch soa mais caloroso), mas não consigo desprezar um filme tão obcecado por imagens de culpa, dor e luto. Tenho que ser franco: tirando um ou outro momento mais desajeitado (o diretor trata o gênero horror com tanto estranhamento que o efeito fica até interessante), Trier conseguiu me perturbar com este pesseio na floresta. Um detalhe curioso: quase todas as resenhas que li reclamam do prólogo (slow-motion em p&b aparentemente virou crime), por isso só posso supor que quase ninguém tenha visto O espelho, do Tarkóvski. Vejam. É um dos meus favoritos. E, ainda que não do modo mais óbvio, tem muito a ver com este Anticristo.
Bonfires on the heath | The Clientele | 7.5 | O Clientele é daquelas bandas que não fazem estardalhaço e que, por isso, sempre correm o risco de serem subestimadas. O novo disco deles é quase tão bom quanto Strange geometry (e quem conhece aquele álbum entendeu o peso do meu elogio) e prova que o grupo não vai descansar enquanto não encontrar a canção irretocável, uma criação capaz de cristalizar toda a tradição do pop barroco britânico (repare nos sopros à mariachi, discretos e precisos). A jornada do Clientele é às vezes enervante (e a polidez ainda incomoda), mas quase sempre rende melodias elegantes – e, nos melhores momentos, também emocionantes, como a faixa-título e I know I will see your face.
New moon – Original motion picture soundtrack | Vários | 6 | Daria um ótimo EP, com Thom Yorke (e Hearing damage não é lá extraordinária), Grizzly Bear (Slow life), Bon Iver & St. Vincent (Rosyln) e Death Cab for Cutie (Meet me on the Equinox). Nada muito diferente de um dos CDs do The O.C. (os indies vão aos teens), mas poderia ter sido pior.
Diário de SP | Na Mostra (2)
1 | Por enquanto, quase um marasmo.
2 | E, sem brincadeira, se Gomorra e Il divo representam um renascimento do cinema italiano, fico com o morto.
3 | A vida moderna | Raymond Depardon | **
Um documentário que estampa em cada plano o amor do cineasta pelo tema (a vida rural na França) e os personagens (agricultores praticamente em extinção) – mas é um universo tão específico, e retratado de forma às vezes de forma tão casual, que talvez só comova com tamanha intensidade o próprio Depardon. É, acima de tudo, o registro de um reencontro – na narração em off, o diretor avisa que costuma retornar àquela região regularmente -, de uma certa luz que bate no outono e, não tão sutilmente, das rápidas transformações no cotidiano do campo. O melhor está nos créditos finais: lá, Depardon apenas filma os rostos e gestos dessa gente, antes que o tempo a leve.
4 | Música na noite | Ingmar Bergman | **
Um Bergman romântico, melodramático, às vezes siderado (uma das primeiras cenas é um transe surrealista), antes do furacão (e de Monika e o desejo). As legendas eletrônicas desencontradas transformaram parte da sessão num enigma.
5 | Il divo | Paolo Sorrentino | **
A cinebiografia do primeiro-ministro italiano Giulio Andreotti, que sobreviveu aos piores terremotos políticos, é uma charge com taquicardia. Para desenhar o perfil de um homem indecifrável, e as relações do todo-poderoso com a máfia, Sorrentino usa recursos de fitas de gângster, de comédias de humor negro e, em alguns momentos mais histéricos, parece mais infuenciado por Guy Ritchie que por Francis Ford Coppola. A interpretação de Toni Servillo é daquelas que não esqueceremos facilmente – ainda que o roteiro se contente em manipular um protagonista-boneco (é o homem solitário, experiente, meticuloso, frio, invariavelmente sarcástico). A sátira, que começa poderosa, vai perdendo o fôlego até cansar e, finalmente, abraçar o vazio.
6 | Gomorra | Matteo Garrone | *
Se este é o “novo cinema italiano”, então estamos na frente: de Cidade de Deus a Tropa de Elite, já nos mostramos craques em empacotar nossa crise social em formatos de cinema de gênero. O filme-mosaico de Garrone denuncia a máfia do sul da Itália como quem pega emprestado o molde de thrillers norte-americanos como Syriana e Traffic – as histórias entrelaçadas formam um painel ambicioso, “importante”, de um tema perigoso (o autor do livro que inspirou a trama foi ameaçado de morte) e digno de manchetes no noticiário. Mas, além de não acrescentar nada a um modelo de narrativa bastante desgastado, o cineasta trata personagens como elementos para a defesa de uma tese que, no fim das contas, peca pela pobreza dos argumentos. No caso, prefira o produto brasileiro.
Diário de SP | Liberdade
1 | Garanto que nada foi programado, mas esta viagem a São Paulo virou uma espécie de greatest hits, de compacto dos melhores momentos, de compilação sentimental, de reencontro forçado e desesperado com os cantos favoritos de uma cidade que, apesar de conhecer como o dedão do meu pé (não tão bem, mas o identificaria num close), passei a rejeitar talvez por uma questão de orgulho ferido. São Paulo não me quer, vocês sabem, mas cá estou, camuflado na multidão. Passei quatro dias em uma missão de reconhecimento. Que termina agora.
2 | Última estação: Liberdade.
3 | Lembro que há mais ou menos cinco anos, quando eu era um adulto que se sentia recém-nascido, vim de férias a São Paulo. Sozinho, depois de passar uma temporada curta no Rio de Janeiro. Os dias na casa do meu pai foram, no mínimo, cansativos (como sempre são). Imaginei que meu descanso começaria de verdade quando eu desembarcasse em São Paulo. Acabei esmagado no mesmo hotel-duas-estrelas onde estou neste exato momento, entre putas e marombados, mendigos e a banca Princesinha. Onde a Rua Augusta faz a curva.
Me restava uma semana de viagem e, lançado numa cidade desconhecida e aparentemente hostil, me descobri numa situação inédita: eu me sentia imóvel, paralisado no quarto, sem coragem de fazer o percurso entre a cama e o banheiro. Da janela eu via apenas uma série de outras janelas, linhas verticais e horizontais de janelas e outras janelas. Quando cometi a ousadia de enfrentar a portaria, quase fui atropelado por um motoboy. O primeiro dia passou assim, nessa síndrome de não sei que nome.
Decidi que trocaria minha passagem no dia seguinte. Eu estava numa fase complicada da vida, desastradamente apaixonado por uma mulher que não queria saber tanto assim de mim (pelo menos não naquele momento já que, segundo ela, sofríamos da crise de timing, habitávamos mundos diferentes etc), e tudo o que eu queria era voltar para casa. As férias tinham perdido a graça. Eu queria voltar para casa. Estava tudo perdido quando uma amiga que morava na Aclimação me convidou para um passeio num bairro ‘fantástico, você vai ver’. No meio da tarde, lá estava eu na Liberdade.
Conheci as ruas estreitas de decoração avermelhada, os restaurantes de teto baixo, a varanda temática do McDonald’s e todos os detalhes a que os turistas têm direito. A partir dali, minha relação com a cidade sofreria uma transformação. Era como se, com alguma noção das linhas de metrô, eu estivesse apto a dominar o ambiente. A sair da caverna com meu tacape. A explorar. Curioso que esse estalo tenha ocorrido exatamente num lugar chamado Liberdade. Mais curioso ainda que eu tenha parado lá hoje, no início da tarde, pronto a refazer aquele percurso de cinco anos atrás.
Foi o que fiz. Comprei até um saco de balas de lichia e um picolé de melão – e tomei um sundae no McDonald’s (um batalhão inimigo que costuma bombardear cruelmente meu intestino). Terminei a tarde livre de algumas lembranças que me afastam desta cidade e pronto para encontrá-la novamente, do zero. Antes de entrar na estação de metrô, caiu uma chuva fina que (coincidentemente) talvez tenha sido a mesma que caiu naquela tarde de um outro dia do mês de outubro. Ninguém viu, ninguém quis saber. Quando passei pela ponte onde se aglomeram os vendedores de DVDs pirata, fiz as pazes com São Paulo.
4 | Mas isso não é nada importante.
5 | Ao que interessa: a Mostra de SP começa amanhã. Será um dia corrido. Provavelmente só conseguirei atualizar o blog sábado, e mesmo assim com notas mais curtas que estas aqui. O detalhe é que, pelo menos para mim, a mostra já começou. E meu segundo filme foi…
Um homem bom | Vicente Amorim | *
O primeiro projeto internacional do diretor de O caminho das nuvens é um drama de época falado em inglês sobre um professor íntegro e responsável que, ao sabor das circunstâncias, é promovido a oficial nazista. Nas quase duas horas de filme, o que vemos é um herói desnorteado, sem a noção do tamanho da tragédia em que está metido. É um perfil psicológico sobre alienação e responsabilidade moral que depende muito da perfornamance de Viggo Mortensen (correta, não mais que isso). Só que isso é o que está no papel – na prática, o filme demonstra um esforço colossal para justificar a ignorância de um protagonista, no mínimo, inconsistente.
Quero muito saber como o filme será recebido na Alemanha, onde nazismo ainda é tratado com o devido maniqueísmo. O que mais me incomodou foi o formato da narrativa – polido, conservador. Como conversei com o Diego ao fim da sessão, filmes quadradinhos me entediam em quase tudo (prefiro assistir a um longa desastrado, mas corajoso, que esse tipo de produção by-the-numbers – e, nesse ponto, a culpa é mais minha que dos filmes). Difícil negar que Amorim tenha feito um trabalho competente. Mas é uma competência definida a partir de alguns padrões que pertencem mais ao universo dos telefilmes que ao de filmes que ousam fugir do riscado.
6 | Daí que, agorinha mesmo, revi Canções de amor e o musical melhorou incrivelmente. É quase como comparar tomates com batatas, é com as arestas do filme de Honoré que eu fico. Até a trilha, que soou raquítica numa primeira sessão, ganhou corpo e saltou da tela. Sabe-se lá como, mas a quadrilha de Drummond foi evocada e traduzida à perfeição por um DJ francês dos nossos tempos. Prometo rever Em Paris assim que eu tiver algum tempo.
7 | Cinéfilos se olham com desconfiança. O que há de errado com eles?
8 | (Atualização, sexta pela manhã) E chega de frescurada. No show do Mudhoney ontem à noite, na Clash, bati cabeça, entrei na roda de pogo e quase fui hospitalizado depois de partir para a porrada (saudável) com uns moleques vestidos com camisa de flanela. Me senti com 13 anos de idade num porão em Seattle (e essa foto toda retorcida aí em cima explica meu estado de espírito).
Mas, apesar do clima de clube dos cafajestes, não foi um showzão. Não foi uma tempestade de emoções. Não foi uma farra no túnel do tempo. Não. Foi até um tanto decepcionante, já que o som baixo (um problema que não assola apenas as casas de Brasília) limou mais ou menos 60% da potência da performance. Para vocês terem uma idéia, a passagem da banda na arena do Porão do Rock, ano passado, foi bem mais barulhenta e virulenta (e eles costumam render mais em espaços pequenos e fechados). As músicas do disco novo não me entusiasmaram, mas prometo ouvi-lo com carinho. Emocionante mesmo foi ver o MQN tocando uma cover do Mudhoney diante da própria banda, que assistia ao espetáculo ao lado do palco. Pagou o ingresso.
Diário de SP | No metrô
1 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
2 | O metrô de São Paulo às vezes dá nos nervos, não?
3 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
4 | Mas aí ele pára na Estação da Luz e…
…a cidade muda. Dá gosto. O paraíso é aqui. Para este forasteiro, o melhor de São Paulo está nesta foto borrada de telefone celular. Na estação de trem, que me lembra das cinematográficas viagens que eu fazia quando pequeno, no vagão-leito, com pai e mãe, saindo da Central do Brasil. E no contraste entre essa catedral e aqueles prédios mais decadentes, que desabam no fundo da paisagem.
5 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
6 | Mas a síntese perfeita da cidade está sob a terra, nos corredores largos do metrô. A cidade treme. Um passo menor que o outro. Para me convencer de que eu estou de férias, experimentei parar diante de uma pilastra e perder o trem. É. Perder o trem. Taí uma ousadia que nenhum paulistano perdoaria. Eu seria excluído do sistema de venda de bilhetes – para sempre, sem retorno, sem perdão. O trem passou e eu fiquei lá, estático, pensando na vida, no leite derramado, nos grilos do quintal, nos galos que cacarejam no prédio ao lado (onde será que eles ficam, na cobertura?).
7 | – alô, quem fala? – é o tiago – ai, desculpa, liguei pro quarto errado.
8 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
9 | No Museu da Língua Portuguesa, dois meninos skatistas de cabelos verdes e correntes e botas assistiam à exposição sobre Machado de Assis. Nos filmes de Gus Van Sant, chamariam essa imagem de licença poética.
10 | Por que toda homenagem a Machado de Assis tem que ser forçadamente bem-humorada?
11 | “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote e adeus” (mas abrir a mostra com esse trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas é um achado – meio óbvio, mas um achado).
12 | Vi o meu primeiro filme da Mostra de SP. Que é…
Mil anos de orações | Wayne Wang | *
Um filmezinho singelo sobre um simpáico velhinho chinês de férias num daqueles bairros-maquete dos Estados Unidos. As estruturas das casas são tão frágeis quanto a do longa-metragem, um conto de contrastes culturais e conflitos familiares que já vimos, já conhecemos e que investe numa narrativa adoravelzinha, simplezinha, quase anêmica. “Estados Unidos é igual a água fria”, filosofa nosso querido ancião. “Machuca o estômago”, conclui. E é o máximo que consegue Wang, muito adaptado aos humores do governo chinês, em matéria de comentário social.
13 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
14 | Mas comparado a As duas faces da lei, trata-se de uma pérola do cinema oriental. O filme-evento promovido por Robert de Niro e Al Pacino nem merece uma foto – é um thriller tão ordinário e tosco quanto aquelas pequeninas academias de ginástica da Rua Augusta. É um espetáculo tão macho e descerebrado que, se pudesse, arrotaria e coçaria os bagos de cinco em cinco minutos. Imagino o que Antônio Abujamra, que assistiu ao filme na mesma sessão, teria a dizer sobre a bagaceira. Deixa um comentário aí, Abu!
15 | No dia mais quente do ano, a bolsa não pára de cair e o Festival de Brasília me apareceu com uma escalação mal-assombrada, de tirar o sono. Só espero que o PCC não se manifeste.
16 | Atenção. Não segure as portas. Setenta por cento dos atrasos do metrô são provocados por pessoas que seguram as portas.
17 | Sinto saudades da minha namorada – mas talvez a recíproca não seja verdadeira.
18 | “Minha mãe me parecia horrendamente conformista e irrecuperavelmente obcecada com o dinheiro e as aparências; meu pai me parecia alérgico a qualquer tipo de diversão. Eu não queria as mesmas coisas que eles. Eu não dava valor ao que eles valorizavam. E estávamos todos igualmente infelizes naquele carrossel, e éramos todos igualmente incapazes de explicar o que acontecera conosco” (A zona do desconforto, Jonathan Franzen, página 35).
19 | E aqui, por hoje, seguro a porta.
Diário de SP | Um dia, um encosto
1 | Aconteceu, meus amigos. Dois dias em São Paulo e tropecei nos dois seres mais exóticos (talvez bizarros, mas não sejamos politicamente incorretos) da cidade.
Meet Tony, um personagem que você não encontra em seriados da HBO (para preservar a identidade dessa turma e evitar um processo por danos morais, todos os nomes desta crônica doentia são fictícios, exceto o meu). Tony, um quarentão rechonchudo que poderia ter interpretado Truman Capote no lugar de Philip Seymour Hoffman. Tony, um homem muito simpático, de agudos mui extravagantes, que caminha por São Paulo amparado por uma muleta de madeira. Tony, em busca de novas amizades.
Meet Hilda, uma personagem que você talvez encontre em um episódio de Weeds. Aérea, deslocada no tempo e no espaço, Hilda faz movimentos vagarosos com a cabeça como quem vive uma cena em slow motion. Hilda, a mulher que deixa sentenças pela metade à espera de uma boa alma que as completem enquanto caminha por São Paulo amparada pelo amigo Tony. Hilda, em marcha lenta.
Meet Tiago Superoito, o forasteiro.
Era fim de tarde. A terça-feira ainda fervia em 32 graus. Depois de bater perna pela cidade em um dia dedicado a exposições de arte (duas delas inexistentes, mas errar é humano) e excessos gastronômicos, eu, Tiago Superoito, decidi me esconder do mundo abraçado pela névoa fria de uma sala de cinema. Comprei um ingresso para Acidente, exibido no Cinesesc. Sentei-me na poltrona azul do hall, tirei a edição especial da Piaui da mochila e, faltando quinze minutos para o início da sessão, comecei a lê-la. A paz…
… não durou muito tempo, entretanto.
Como o vulto apressado de um Teletubbie obeso, Tony quicou no foyer do cinema e, em não menos que dez segundos, a muleta de madeira quase perfurou minha coxa.
– Posso sentar aqui?, ele perguntou, e era o caso óbvio em que não havia como dizer não. A sala de espera estava completamente vazia, mas, sabe-se lá por que razão, ele queria a poltrona exatamente ao meu lado.
A especialidade de Tony, eu descobriria mais tarde, é provocar situações constrangedoras que evocam um misto de tentativa-de-forçar-amizade com falta-absoluta-de-noção. E nos deixam sem respostas.
– Pode, claro, a poltrona tá vazia, eu disse, e continuei a ler a minha revista com a formalidade, a educação distanciada e a frieza que uma cidade grande exige. Cada um no seu quadrado, já dizia o refrão.
– Você sabe qual é a sinopse do filme?, ele perguntou. Eu estava prestes a pedir que ele levantasse a bunda branca da poltrona e lesse o papel afixado no mural próximo à bilheteria. Mas observei a muleta de madeira, pensei na minha disposição para fazer novas amizades e preferi um tom mais amigável que combina com a minha origem. Sou carioca e cariocas, por definição, puxam papo.
– É sobre vinte cidadezinhas de Minas Gerais. Os nomes das cidades formam um poema e o filme é sobre a criação desse poema. Entende?
Talvez eu tenha sido atencioso demais, já que a simples descrição da premissa do filme fez com que Tony passasse a me tratar como um melhor amigo. Ou, mais perigosamente, como alguém ainda mais próximo que um melhor amigo.
– Nossa, que história mais criativa, intrigante, ele exclamou, e a palavra ‘intrigante’ pronunciada com aquela voz finíssima poderia estar num filme sobre a era vitoriana.
– É.
– Quem é o diretor, hein?
– É o Cao Guimarães.
– Ah, sim, sim, sim (foram cinco ou seis ‘sim’), conheço. Ele às vezes acerta e às vezes é subjetivo demais, demais, demais.
A amiga Hilda, que finalmente acordou do sono profundo e passou a participar da conversa, perguntou ‘mas o que é ser subjetivo, Tony?’
– Essa é a Hilda. Ela é uma antiga amiga. Somos artistas plásticos. Qual é o seu nome mesmo?
(Longa pausa em que eu, Tiago Superoito, pensei se deveria dizer Jonas ou Bruno. A muleta continuava a apertar minha coxa)
– É Tiago.
Pularei o longo interrogatório que seguiu minha resposta. De onde você vem? O que você faz? Mas parece tão novo! Onde trabalha? Um jornal respeitado! Toma aqui meu cartão, será que rende reportagem? Por que está em São Paulo? Mas a mostra não começa só sexta-feira? Ah, claro, sim, oh, você é tão precavido.
Hilda participava dos assuntos com acenos de cabeça. Do questionário, Tony passou a um tipo mais íntimo de conversa. O tempo que levamos para chegar até lá? Uns cinco minutos.
– No meu cartão, aqui embaixo, tem meu telefone. Nós vamos sair depois do filme.
– Não! – eu reagi, mas depois imaginei que eu poderia ser rotulado de grosseiro e optei por uma negativa mais amena – Tenho compromisso.
– E amanhã?
– Outro compromisso.
– E depois?
– Compromisso todo dia.
Abri a revista como quem hasteia uma bandeira branca. Ele continuou com a guerra.
– Você tá sozinho? Num hotel?
– Não. Na casa de amigos.
– Hilda, Hilda, ele não é tão tranqüilo?, e aí já comecei a suspeitar que a dupla atraía viajantes incautos para um porão na Bela Cintra, onde os submetiam a infilmáveis sessões de tortura. Também lembrei de contos de fadas macabros do estilo João e Maria.
– Sou. Tranqüilo. Muito tranqüilo. A sessão tá pra começar.
– Eu e a Hilda andamos juntos toda hora. É tanto que as pessoas pensam que somos casados. Mas nós não somos casados não, viu?
– Claro.
– Tiago, olha: eu sou sagitariano e a Hilda é de Áries. Qual é o seu signo?
– Leão.
– Hmm. Leoninos são tão enigmáticos. São sempre uma surpresa.
– Não acredito nessas coisas – e voltei à revista.
Fiquei imaginando por que raios o tiozinho havia me tirado para presa. Está certo que um sujeito que passa a terça-feira em exposições de arte, almoça no restaurante do Masp e aguarda o início de um filme de Cao Guimarães lendo a Piaui envergonha o mundo hétero, mas nenhum desses detalhes deveria significar que eu estaria louco para cair no colo de um macho. Depois de adiar a intervenção cirúrgica, finalmente apelei quando ele pediu novamente, assim, na cara dura, com consentimento da Hilda, para sair comigo:
– Minha namorada tá chegando. Ela vem logo, daqui a uns dias. (eu não estava mentindo, mas sublinhei a palavra namorada).
– Mas e hoje à noite?
Foi quando, a dois minutos para o início do filme, levantei-me, apertei a mão do meu amigo atirado, acenei para Hilda e avisei que estava na hora, o filme ia comecar, até mais, prazer em conhecer, vou levar o cartão pra Brasília e entregar para a repórter que cobre artes plásticas, quem sabe, vai que ela emplaca alguma coisa. Tchau, boa sorte.
– Liga, tá?, ele ainda tentou, escorregadio feito uma enguia.
Vi o filme na terceira fila, atento a qualquer barulho suspeito. No fim da sessão, como eu me portaria? Pensei em me esconder sob as poltronas do cinema, mas seria ridículo. Pensei em abandonar a sessão pela metade, mas o filme não era ruim. Pensei em pedir socorro, mas Tony e Hilda eram serial killers frágeis demais para despertar alguma aflição. Pensei em um ataque ríspido, mas me acusariam de homofobia e, naquele ambiente, eu provavelmente sairia perdendo. Assim que os letreiros finais subiram na tela, agarrei minha mochila e disparei na velocidade da luz.
Sobrevivi, mas não retorno ao Cinesesc antes da mostra.
2 | Antes dessa sessão acidentada, vi Caos calmo, um filme italiano com Nanni Moretti que aparenta ser um prolongamento de O quarto do filho (desta vez o protagonista perde a mulher repentinamente), mas provoca o efeito contrário. Em vez da simplicidade comovente, o que temos é uma aparência de simplicidade arrancada a fórceps. O diretor Antonio Grimaldi é um assombro, desajeitado em quase tudo – as inserções truncadas de música pop na trama (Rufus Wainwright, Radiohead) sintetizam os problemas do filme.
3 | Pela manhã tentei ir a uma exposição no Ibirapuera. Tentei, já que a exposição não existia. Passei trinta minutos andando na pista, entre ciclistas, patinadores e alunos de escolas públicas. Num delírio meu, uma daquelas criancinhas me perguntava: ‘tio, o que você está fazendo aqui?’.
4 | Pela janela do meu quarto ouço cães latindo e galos cacarejando. Me sinto em casa.
Diário de SP | Superoito e a cidade
1 | Primeiro dia de férias em São Paulo. E a cidade está tranqüila.
2 | Quer dizer: parece tranqüila. Assim que saí do hotel, tirei meu relógio e guardei na mochila. Por via das dúvidas.
3 | E seria seguro caminhar à noite até o hotel-duas-estrelas? Sinceramente, não faço idéia. Hoje fiz o teste. Passei por um posto de gasolina, um beco sem iluminação, duas academias de ginástica (bastante suspeitas), doze botecos, três puteiros e quatro ou cinco lan houses. Não sei no que estou me metendo.
4 | Como sempre, a cidade parece maior, mais crescida, desgovernada, um mundo. Há mais pessoas nas ruas? Por uma questão de adaptação ao ambiente, ainda não tentei o metrô.
5 | Encontrei o Diego. Que, como de costume entre os moradores de São Paulo, corria esbaforidamente para resolver problemas urgentes que não ficarão para amanhã. Me dêem dois dias: prometo entrar no ritmo.
6 | Na credencial da Mostra de São Paulo, saí com aquele meu típico olhar de espanto. ‘O que estou fazendo aqui?’, gritava a foto. Nem eu sei.
7 | Meu jet lag emocional: ‘Taí seu sanduíche’, disse a atendente. ‘Mas é de frango?’, perguntei. ‘Não. É de carne’. ‘Mas é de frango?’ ‘Não, meu senhor, é de carne.’ ‘Mas é de frango?’ ‘Não. Carne.’ ‘Então não é de frango?’
8 | Fatal | Isabel Coixet | **
E um filme, pra variar. Ainda não estamos diante de uma grande adaptação de Philip Roth (talvez para ressaltar o texto original, a cineasta se ausenta, se esconde). Mas, apesar de cometer o sacrilégio de transformar um livro tão amargo num melodrama choroso, soa igualmente duro na forma como olha para a velhice – não sai pela tangente, e deixa que Ben Kingsley cuide do resto.
9 | Desatento, descobri ontem que encaixotei todos os meus livros. Todos. De última hora, comprei dois para ler durante a viagem: A zona do desconforto, de Jonathan Franzen, e Em Brasília, 19 horas, de Eugênio Bucci. Estou começando, mas recomendo. Os dois.
10 | E comecei a ouvir o novo do Metallica. Só pra (me) contrariar.
São Paulo me diz não
Quando conheci São Paulo, a cidade parecia até uma antiga lembrança. Era como se eu a conhecesse de algum lugar. De algum filme. De um programa de tevê. De uma peça publicitária. De um canto aí.
E era uma daquelas memórias amareladas (que, na prática, não existem).
Depois de um tempo, feliz com essa estranha sensação de familiaridade, comecei a tratar a cidade como se ela também fosse um pouco minha. Um pouco. 0,001%, o que fosse. Sem ataques de ciúmes, eu. Eu, o carioca da gema debochado inconveniente exilado; eu, o sujeitinho que não sabia mais a que lugar pertencia; eu, órfão de cidade-natal e talvez também de pai. Eu tentei buscar naqueles cruzamentos irregulares alguma espécie de porto seguro. Acinzentado, como manda o clichê, mas agradável.
Não sei se por um momento me senti em casa. Mas aí voltei. Pronto a trocar alianças. E a cidade decidiu, num rompante, colocar nossa relação em pratos limpos: ‘não é bem isso’, ela me disse. Fiz que não ouvi.
Fiquei por aqui, crente de que ela me queria de volta. Ou me quereria de volta, vá saber. Será que quis? Desembarquei com a esperança de reatar o caso antigo, mas ela já me olhava com um certo desdém. Me isolava em quartos de hotel. Me deixava perdido nas ruas tortas. Me soltava no gelo dos quartos sem sistema de aquecimento. Uma rejeição lenta que preferi tomar como um mal-entendido. ‘Você sabe o que está fazendo?’, perguntei. A resposta: silêncio. ‘Você tem absoluta certeza de que vamos terminar tudo? Tão cedo? Não nos conhecemos direito. Foram três ou quatro noites tão intensas, tão felizes-pra-sempre’, ainda tentei, com a persistência que tenho para dar e vender.
Avancei novamente. Repeti um flerte meio envergonhado. Mas depois, nada. A cidade não me quer perto. Prefira que eu não a visite. Não tem tempo. Muito trabalho, afazeres, fazer o quê? Está enrolada, há contas a pagar, louças pra lavar, roupas sujas e essa poeira e o frio que faz nesta época do ano. Está presa no engarrafamento. Está cheia de conhecer gente nova. Precisa de um tempo. Quer folga. ‘Mereço novos ares!’. Está farta. Prefere outro estrangeiro.
Só que eu, eu aqui, eu não cansei. Taí a minha teimosia (uma arma pra te conquistar?). Tento um novo aceno. Que, novamente, esbarra na parede do meu quarto e desaba morto no chão.
Hoje em dia, São Paulo só me diz não.