Rock canadense

Kaputt | Destroyer

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No espelho, não me reconheço. Estou mais velho, me sinto mais velho, mas a imagem é de uma pessoa cada vez mais nova.

Meu apartamento também virou outro ambiente: ele está mais vazio, ainda que eu não tenha me livrado de móvel algum.

Até os textos que escrevo – e escrevo todos os dias! – deixaram de sair dos meus dedos. Como que escritos por outra pessoa.

Algo mudou.

Há alguns dias, uma amiga enviou uma confissão via e-mail. Ela estava estudando para uma série de provas e, depois de passar por três ou quatro etapas, começou a se sentir confiante de que conseguiria uma vaga. Quanto mais recebia sinais positivos, mais criava planos, explorando mentalmente um futuro novo que se abria, se desdobrava. Chegou o resultado e ela não passou. “Agora não sei o que fazer. Me sinto perdida”, ela escreveu, no e-mail.

Eu a consolei, garanti que aquela fase ruim passaria. Disse também que entendia o que ela estava sentindo; e, desta vez, não precisei mentir. É tudo o que sinto desde que meu namoro acabou. Quando os meus planos foram interrompidos (e planos cuja existência eu nem mesmo conhecia), sobrou uma vida antiga que não parecia mais pertencer a mim.

Subitamente, me vi de volta aos meus 24, 25 anos de idade. Antigos medos, a insegurança de volta. E aí tudo começou a parecer dissonante: minha imagem no espelho, o apartamento (um espaço provisório berrando para ser tratado como definitivo), meu cotidiano, meus amigos, minha família, a forma como falo e escrevo, o jeito como levo a minha vida.

Algo mudou. E foi uma mudança principalmente de percepção. Comecei a me notar de uma forma diferente.

Foi até um pouco irônico, por tudo isso, ouvir o disco novo do Destroyer com esse estado de espírito. É um disco também de mudança. Sobre o momento em que Dan Bejar, o bandleader, começa a perceber a própria banda de uma forma diferente.

E um disco que também mostra desconforto com a imagem que o espelho reflete. Dan Bejar tenta mudar, precisa mudar, mas ao mesmo tempo hesita, e essa hesitação foi registrada, essa hesitação está no disco. E é essa hesitação, eu digo, que talvez me faça voltar tantas vezes ao álbum.

Nem sei se gosto tanto dele, do disco. São poucas as músicas que eu lembro depois que ele termina. Mas não é uma questão de gostar ou não gostar. Existe algo aqui, neste disco, que me diz respeito. Estamos, eu e Dan Bejar, entre um passado que pesa nos nossos ombros e um futuro totalmente indefinido, às vezes assustador. Não temos a mínima ideia de onde vamos chegar.

Discos (e momentos) de ruptura são sempre complicados, principalmente quando a banda (e o sujeito) tem um estilo (um dia a dia) já muito bem definido. E principalmente quando não se tem por que mudar.

Eu ficaria satisfeito se o Destroyer se contentasse em ser sempre a banda de Rubies, aquele grande disco de 2006. Ele concentra a personalidade musical de Bejar: o fã de Dylan que tropeça nas próprias palavras, o vocalista hiperativo que não consegue amarrar dois versos sem balbuciar frases sem sentido, o compositor surrealista, o trovador que esnoba a métrica do pop. O Bejar do Destroyer é o homem livre e louco que se esconde no hitmaker blasé do New Pornographers.

Por que mudar?

Em Kaputt, no entanto, a impressão é de que o Bejar que conhecíamos, bem… ele não está mais aqui. Ou que aquele Bejar se diluiu em outro, com novas roupas e novos sonhos. O anterior, Trouble in dreams (2008), soava como capítulo de história antiga (e a voz e os maneirismos de Bejar eram todos inconfundíveis). Já este é o primeiro dia num emprego novo (ou, para os mais novinhos: o primeiro dia no ensino médio).

Cada um dos discos anteriores tem uma atmosfera bem definida, que vai interligando as canções (em Rubies, posso apertar o play em qualquer faixa que me sinto imediatamente feliz, transportado para aquele mundo, aquelas sessões de gravação). Mas era como se, antes, a atmosfera de um disco apontasse para o passo seguinte. Não mais.

Desta vez, numa transformação anunciada desde o EP Bay of pigs (2009), Bejar experimenta criar uma mise-em-scene a partir do zero, mais Stanley Kubrick que Woody Allen. O que encobre as músicas é uma neblina cinzenta, com uma chuva de sintetizadores démodé, oitentistas, com relâmpagos de saxofones, flautas e solos de guitarra. Quase chillwave, quase ambient, quase Bowie vs Eno, quase um delírio numa noite de inverno. “Miles Davis dos anos 80… O último tango em Paris”, explica Bejar, no estranhíssimo texto de divulgação.

Acontece que, sob essa cenografia que define todos os limites do disco, existe a voz, o temperamento de Bejar. Nós a conhecemos. E, talvez para se adaptar ao novo figurino, ela parece um pouco mais arredia, um tanto mais desiludida do que de costume, ainda que ainda fale pelos cotovelos. A euforia que se ouvia em faixas como Watercolours into the ocean agora cede lugar para um olhar que já viu tudo e está anestesiado – um ponto de vista que nos leva aos momentos mais cabisbaixos da dance music de um New Order ou dos discos mais recentes de Leonard Cohen.

A eletrônica, aliás, não é um elemento que Bejar profana em vão. O disco é todo habitado por personagens que habitam a noite, que “perseguem cocaína nas portas de fundos do mundo” (na faixa-título), que vivem “noites selvagens na ópera, noites selvagens no club” (na ótima Savage night at the opera) e relembram histórias de amor tortuosas (e as guitarras cheias de ecos de Poor in love poderiam estar em Joshua tree, reparem). O narrador observa o mundo da sacada de um castelo decadente, com um pôster de Morrissey pendurado na parede.

Um disco sobre a “falta de sentido que existe no projeto de fazer música para os dias de hoje”, Bejar avisa.

Num dos trechos mais pungentes, Suicide demo for Kara Walker, o homem leva oito minutos para divagar sobre uma menina que entendeu “tudo errado, tudo de trás para frente”. O que segue é agonia. “Garota tola, você nunca vai conseguir chegar lá. Toda Nova York apenas quer te ver nua”, avisa. “Negociações brancas e translúcidas passam por amor nos dias de hoje”, lamenta.

As letras de Bejar seguem se equilibrando para não tombar no abismo, entre o realismo e o absurdo. Mas o conteúdo dos versos me parece mais claro, mais preciso do que nunca. O que Kaputt ressalta são as notícias tristes de um narrador que, decepcionado com o que vê, procura uma sonoridade capaz de dar conta de tanta melancolia. E por isso ele muda.

Talvez seja o disco mais difícil do Destroyer, já que totalmente desconectado do que acontece no indie rock americano e canadense (ele tem mais parentesco, digamos, com o pop espanhol de um Delorean, ou com os suecos). Mas também um dos mais fáceis, já que Bejar abandona quase todos os tiques antigos para interpretar esse novo papel. Ainda ele, mas totalmente diferente. E um pouco perdido. O que sobra do homem que conhecíamos?

Não sei. Ouço este disquinho sinuoso (mistério sem fim) enquanto tento me acertar com a imagem que aparece no meu espelho.

Décimo disco do Destroyer. Nove faixas, com produção de JC/DC. Lançamento Merge Records. 8/10

Forgiveness rock record | Broken Social Scene

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Se o dia durasse 42 horas, eu seria capaz de escrever um livro inteiro — de 500 páginas, não menos — sobre aqueles discos que, goste deles ou não, são pontos de referência para a história recente da música pop. Por que eles se tornaram tão relevantes? Eles fizeram por merecer tanto prestígio? Ou teriam apenas se beneficiado de uma conjunção muito feliz de eventos aleatórios?

Capítulo 34: You forgot it in people, Broken Social Scene.

Não vou arriscar uma explicação demorada sobre o “fenômeno” (isto é um blog, não é um livro de 500 páginas), mas trata-se um desses discos: de uma forma ou de outra, ele simboliza uma das cenas mais importantes dos anos 00. Quando se fala em rock independente do Canadá, é inevitável lembrar de You forgot it in people. Mesmo que você considere o som da banda um tanto irritante, esnobe e caótico. Mesmo que você prefira Wolf Parade.

E isso acontece por que, muito além de ter criado ótimas canções, o Broken Social Scene cristaliza o espírito de uma geração de músicos. No pôster do rock canadense, o que vemos não é um gênero musical específico, mas um mutirão de amigos talentosos que colaboram uns com os outros. You forgot it in people é um disco sobre essa imagem. Superpovoado, oversized. Em algumas canções, tenho a certeza de que ouço toda a população de Vancouver cantando e tocando em uníssono.

No auge do coleguismo, o Broken Social Scene reuniu 15, 16, 17 músicos no palco. Oficialmente, Keven Drew e Brendan Canning tomavam as rédeas da superbanda, mas sempre pareceu complicado, nesse caso, definir hierarquias. Feist, Jason Collett, Stars e Metric usaram o laboratório para aquecer embriões musicais. No disco homônimo, de 2005, a formação mutante e alucinada voltou à ação. Mas já soava como uma polaróide descolorida: timing é um dos principais méritos de You forgot it in people.

No fim da década, a própria banda começou a perceber que o impacto do Broken Social Scene estava atrelado a um período muito específico da música pop. E que aquele tempo havia passado. Brendan Canning e Kevin Drew lançaram discos solo e poucos agregados conquistaram uma carreira estável (Fiest, Metric e quem mais?). O novo disco, Forgiveness rock record, flutua nesse mar manso. Carrega os destroços daquela banda (ou melhor, daquela ideia) que marcou 2002.

Não é um álbum que mereceria um capítulo no meu livro de 500 páginas. Provavelmente, ele não terá importância nenhuma para 2010. Mas, para a trajetória da banda (e, especificamente, para Canning e Drew), soa como um senhor desafio. Os ventos mudaram. Antes, a ordem era fazer-se notar, criar o ruído, ferir nossos ouvidos, demarcar o território, organizar o movimento. Agora, o objetivos são outros, mais complicados: foco e longevidade.

Para nosso espanto, o Broken Social Scene retorna como uma banda quase comum: um septeto que prefere à arte da canção à composição de atmosferas. Produzido por John McEntire (de Tortoise e The Sea and Cake), é um álbum que deve chocar os antigos fãs do grupo: o que eles miram é uma sonoridade límpida, cristalina até nos momentos mais expansivos (caso mais explícito: Ungrateful little father), talvez “adulta”, sóbria. É essa a tela que delimita o disco.

O que emerge dessa transformação é uma reviravolta que, para quem nunca se interessou pela banda, soará como uma revelação muito positiva. É como se eles tivessem se “endireitado”. Admito que esse comodismo me incomoda um pouco (é como se o Wolf Parade tivesse decidido gravar um disco de soft rock, digamos), mas é interessante notar que esta não é uma guinada tão fácil quanto parece.

Desprotegida, longa de muralha de sons que criou para si, a banda poderia muito bem parecer fragilizada, desesperada, ingênua. Não é o que acontece. Forgiveness rock record se revela um disco muito seguro de si, que não sente o peso de uma longa duração (63 minutos) nem parece monótono, aborrecido. O que se nota é um esforço de destacar cada um dos elementos sonoros do grupo, como se fosse possível isolá-los uns dos outros. Daí resulta um álbum que navega do pós-punk ao power pop, que arrisca elegantemente e que ousa trair o movimento criado pelo próprio grupo.

Ouça mais vezes e ele soará até corajoso. O Broken Social Scene que surge aqui é uma banda muito igual a tantas outras. Mas com uma diferença: poucas aceitam a aventura de implodir o próprio mundinho. Eles aceitaram. E, quem diria, são bonitos os cacos que sobraram.

Quarto álbum do Broken Social Scene. 14 faixas, com produção de John McEntire. Lançamento Arts and Crafts. 8/10