Roberto Bolaño

[roberto bolaño]

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Minha rotina consistia em levantar cedo, tomar o café da manhã com minha mãe, meu pai e meu irmão, fingir que ia para o colégio e pegar um ônibus que me deixava no centro, onde dedicava a primeira parte da manhã aos livros e a passear e a segunda a ir ao cinema e, de uma maneira menos explícita, ao sexo.

Os livros, costumava comprar na Librería de Cristal e na Librería del Sótano. Se tinha pouco dinheiro, na primeira, onde sempre havia uma mesa de saldos, se tinha dinheiro bastante, na última, que era a que tinha novidades. Se não tinha dinheiro, como acontecia com frequência, costumava roubá-los indistintamente numa ou noutra. Fosse como fosse, no entanto, minha passagem pela Librería de Cristal e pela Librería del Sótano era obrigatória. Às vezes chegava antes do comércio abrir e então o que fazia era procurar um ambulante, comprar um sanduíche de presunto e um suco de manga e esperar. Às vezes sentava num banco da Alameda, um que fica escondido no meio da vegetação, e escrevia. Isso tudo durava aproximadamente até as dez da manhã, hora em que começavam em alguns cinemas do centro as primeiras sessões matinais. Procurava filmes europeus, mas em algumas manhãs de inspiração não discriminava o novo cinema erótico mexicano ou o novo cinema de terror mexicano, o que no caso era a mesma coisa.

[Trecho do conto O verme, em Chamadas Telefônicas, de Roberto Bolaño]

Trecho | Os combates de verdade

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“Um dos balconistas era um farmacêutico quase adolescente, extremamente magro e de olhos grandes, que de noite, quando a farmácia estava de plantão, sempre lia um livro. Uma noite Amalfitano perguntou a ele, para dizer alguma coisa enquanto o jovem procurava nas prateleiras, de que livros gostava e que livro era o que estava lendo naquele momento. O farmacêutico respondeu, sem se virar, que gostava de livros do tipo A metamorfose, Bartleby, Um coração simples, Um conto de Natal. Depois disse que estava lendo Bonequinha de luxo, de Capote. Sem considerar que Um coração simples e Um conto de Natal eram, como o nome deste último indicava, contos e não livros, era revelador o gosto daquele jovem farmacêutico ilustrado, que preferia claramente, sem discussão, a obra menor à obra maior. Escolhia A metamorfose em vez de O processo, escolhia Bartleby em vez de Moby Dick, escolhia Um coração simples em vez de Bouvard e Pécuchet, e Um conto de Natal em vez de Um conto de duas cidades ou de As aventuras do sr. Pickwick. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Nem mais os farmacêuticos ilustrados se atrevem a grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminhos no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas não querem saber dos combates de verdade, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que atemoriza a todos nós, esse aquilo que acovarda e põe na defensiva, e há sangue e ferimentos mortais e fetidez.”

Trecho de 2666, de Roberto Bolaño.

Trecho | O medo

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De que Ivánov tinha medo?, Ansky se perguntava em seus cadernos. Não do perigo físico, já que como ex-bolchevique muitas vezes esteve perto da detenção, da prisão e da deportação, e embora não se pudesse dizer que fosse um tipo valente, também não se podia afirmar, sem faltar com a verdade, que fosse uma pessoa covarde e sem peito. O medo de Ivánov era de índole literária. Isto é, seu medo era o medo que sente a maioria daqueles cidadãos que um belo (ou horrendo) dia decidem transformar o exercício das letras e, sobretudo, o exercício da ficção em parte integrante das suas vidas. Medo de serem ruins. Também, medo de não serem reconhecidos. Mas, sobretudo, medo de serem ruins. Medo de que seus esforços e seus labores caiam no esquecimento. Medo da pisada que não deixa marca. Medo dos elementos do acaso e da natureza que apagam as marcas pouco profundas. Medo de jantarem sozinhos e de que ninguém repare na sua presença. Medo de não serem apreciados. Medo do fracasso e do ridículo. Mas sobretudo medo de serem ruins. Medo de habitar, por todo o sempre, o inferno dos escritores ruins. Medos irracionais, pensava Ansky, sobretudo se os medrosos contrabalançavam seus medos com aparências. O que vinha a ser a mesma coisa que dizer que o paraíso dos bons escritores, segundo os ruins, era habitado por aparências. E que o bom (ou a excelência) de uma obra girava em torno de uma aparência. Uma aparência que variava, claro, de acordo com a época e os países, mas que sempre se mantinha como tal, aparência, coisa que parece e não é, superfície e não fundo, pura pose, e a pose era inclusive confundida com a vontade, cabelos e olhos e lábios de Tolstói e verstas percorridas a cavalo por Tolstói e mulheres defloradas por Tolstói num tapete queimado pelo fogo da aparência.

Trecho de 2666, de Roberto Bolaño.

The sparrow looks up at the machine | Flaming Lips

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Reparem o aviso, logo no início do clipe: “Atenção: o vídeo a seguir contém imagens inadequadas para crianças e adultos sensíveis”. Leram? Então cuidado. Esta louca sessão de tortura dirigida por Wayne Coyne e George Salisbury me lembrou os delírios do cineasta chileno Alejandro Jodorowski. Mas poderiam ser imagens captadas de sonhos dos personagens de 2666, o maravilhoso, arrepiante livro de Roberto Bolaño que estou lendo neste momento. Eis o Flaming Lips fase-Embryonic: se é para ser extremo, que seja até o fim.

Trecho | A parte dos críticos

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“Ela se perguntava (e de passagem perguntava a eles) até que ponto alguém pode conhecer a obra de outro.

– Eu, por exemplo, adoro a obra de Grosz – disse indicando os desenhos de Grosz pendurados na parede -, mas conheço realmente sua obra? Suas histórias me fazem rir, em certos momentos creio que Grosz desenhou para que eu risse, por vezes o riso se transforma em gargalhada, e a gargalhada num ataque de hilaridade, mas uma vez conheci um crítico de arte que gostava de Grosz, é claro, mas que ficara deprimidíssimo quando via uma retrospectiva da sua obra ou por motivos profissionais tinha de estudar alguma tela ou desenho dele. E essas depressões ou esses períodos de tristeza costumavam durar semanas. Esse crítico de arte era amigo meu, mas nunca havíamos tocado no tema Grosz. Uma vez, porém, lhe contei o que acontecia comigo. No início ele não podia acreditar. Depois pôs-se a sacudir a cabeça de um lado para o outro. Depois olhou para mim de alto a baixo, como se não me conhecesse. Pensei que ele tinha enlouquecido. Rompeu sua amizade comigo para sempre. Faz pouco me contaram que ele ainda diz que eu não sei nada de Grosz e que meu gosto estético é igual ao de uma vaca. Bem, por mim pode dizer o que quiser. Eu rio com Grosz, ele se deprime com Grosz, mas quem realmente conhece Grosz?

– Suponhamos – continuou a senhora Bubis – que neste momento batam na porta e apareça meu velho amigo, o crítico de arte. Ele senta aqui, no sofá, a meu lado, e um de vocês saca um desenho sem assinatura e nos garante que é de Grosz e que deseja vendê-lo. Olho o desenho, sorrio, tiro o meu talão de cheques e compro. O crítico de arte examina o desenho, não se deprime e tenta me fazer mudar de ideia. Para ele não é um desenho de Grosz. Para mim é um desenho de Grosz. Qual dos dois tem a razão?

– Ou formulemos a história de outro modo. O senhor – disse a senhora Bubis apontando para Espinoza – saca um desenho sem assinatura e diz que é de Grosz e tenta vendê-lo. Eu não rio, observo-o friamente, aprecio o traço, o pulso, a sátira, mas nada no desenho estimula meu deleite. O crítico de arte o observa cuidadosamente e, como é natural dele, fica deprimido e ato contínuo faz uma oferta, uma oferta que supera suas economias e que, se aceita, o mergulhará em longas tardes de melancolia. Tento dissuadi-lo. Digo que o desenho me parece suspeito porque não me provoca o riso. O crítico me responde que já era hora de eu enxergar a obra de Grosz com olhos de adulto e me felicita. Qual dos dois tem a razão?”

Trecho de 2666, de Roberto Bolaño.