Risco

All delighted people EP | Sufjan Stevens

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No dia 12 de outubro, Sufjan Stevens lança um disco novo. Por enquanto, sabemos duas ou três coisas sobre ele: que se chama The age of adz, que não tenta decifrar nenhum estado norte-americano, que faz uso pesado de efeitos eletrônicos e orquestra, que não é um “álbum conceitual”.

Mas, ao mesmo tempo, não temos certeza de coisa alguma. Uma das manias de Sufjan Stevens, lembre-se, é sabotar as nossas expectativas. Talvez seja isto o que mais queremos dele: o inesperado.

Stevens é o compositor de melodias tenras, pessoais. Também é o sujeito das ambições loucas, dos grandes planos, das ideias impraticáveis (um disco para cada um dos 50 estados americanos, por exemplo). Mas, além de tudo, é o songwriter autoirônico, que olha no espelho e ri da imagem que vê. O indie rock tem um quê patético (talvez por se levar excessivamente a sério, como um culto excêntrico disseminado em rituais on-line), e Sufjan entende a graça.

Daí que, antes de The age of adz, ele lançou um EP de oito faixas chamado All delighted people. Parece um aperitivo, uma distração, um brinde. Mas, quando você ouve o disquinho, descobre que se trata de um álbum completo, de quase 60 minutos de duração, robusto e cheio de si.   

Talvez Stevens queira que tratemos o disco com a leveza como tratamos EPs. Mas não dá. All delighted people pode até ser uma obra “menor” se comparada a álbuns como Illinois (2005) e Seven swans (2004). No entanto, é mais atrevido do que a maior parte dos discos lançados por qualquer outra pessoa em 2010.

As faixas do álbum foram construídas em torno da canção-título. Que é, segundo Stevens, uma homenagem “ao Apocalipse, ao tédio existencial e a Sounds of silence, de Paul Simon”. Cada um desses temas inspiraria um grande disco – o impressionante é que, na faixa, eles são explorados com a grandiosidade de uma ópera-prog, que vai do folk sessentista a Beatles e, é claro, Simon & Garfunkel. Stevens não quer pouca coisa: com cordas fulminantes, coros e solos de guitarra à space-rock, ele vai à lua e volta. Talvez não seja a melhor canção que gravou. Certamente é a maior.

É tão desregrada que se desdobra em duas. A primeira, de 11 minutos, vai se desdobrando feito um réquiem para o fim do mundo. Stevens resume toda uma longa trajetória em cenas curtas, enquanto o mundo explode. Já a segunda, de oito minutos (e apelidada muito marotamente de Classic rock version), parece celebrar a destruição com sopros e atmosferas roubadas de um disco do Pink Floyd. É como se Elliott Smith tivesse ouvido menos #1 Record, do Big Star, e mais Wish you were here

Uma canção FEROZ que provavelmente devoraria qualquer disco em que fosse incluída – o EP, portanto, é uma forma de enjaulá-la com o devido respeito.        

Mas o disco não é apenas isso (se fosse, já seria grande). Para equilibrar os excessos desse turbilhão pop, Stevens cria algumas das canções mais delicadas da carreira – com violão, voz, ecos e quase nada mais. A começar por Enchanting ghost, que cita explicitamente um arranjo de Elliott Smith como para simular uma sensação de intimidade, de confissão sussurrada. É comovente. Tanto quanto Heirloom, com violões dedilhados e uma voz que parece transmitida do fundo de um beco, e From the mouth of Gabriel, triste como poucas.

Como de costume, Stevens nos engana, nos atira no olho de um paradoxo: apesar do título, All delighted people fala sobre pessoas desencantadas, tateando um mundo que perdeu o sentido. Corações quebrados, medo disso e daquilo, incertezas, Paul Simon. E melodias tão assustadoramente macias.

Parece pop. Mas isto é hardcore.

EP de Sufjan Stevens. Oito faixas, com produção de Sufjan Stevens. Lançamento on-line da Asthmatic Kitty. 8/10  

Transference | Spoon

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Havia um tempo em que um das maiores metas de toda banda de rock independente era entrar nas paradas de sucesso, assinar com uma megacorporação, levar prêmios no MTV Vídeo Music Awards, aparecer em trilhas de seriados e se espremer na lista de melhores do ano da revista Rolling Stone. Lembram dessa época? O Spoon faz questão de esquecer.

O quarteto de Britt Daniel cumpriu quase todos os requisitos que – numa temporada distante – transformavam promessas do rock alternativo em novidade do mainstream (e notem como essa palavra, mainstream, cheira a mofo). Foi contratado (e expulso) de uma grande gravadora, entrou no top 10 da Billboard (com Ga ga ga ga ga, o mais perto que eles chegaram do pop) e, ainda que eu não lembre de algum clipe deles que tenha sido premiado no VMA, mal tiveram a oportunidade de concorrer. Sim, a Rolling Stone os trata como sujeitos até bem decentes.

O que essa incrível escalada-para-o-sucesso representou para o Spoon? Para minha sorte, para sua sorte, quase nada. A banda tem 16 anos de vida (nem parece!) e sobreviveu graças à forma mui inteligente como sacou que, de 2000 para cá, deixou de fazer sentido o desejo de aderir ao lado dourado da força. A ideia de mainstream, hoje, (ou pelo menos a ideia de um mainstream saudável) veste à perfeição grupos que, como o Spoon, sabem mirar um público mais ou menos amplo sem menosprezar as qualidades mais prezadas do indie rock: em primeiro lugar, a disposição para o risco.

Transference, o sétimo disco dos texanos mais simpáticos do planeta, é uma declaração de que eles não estão nem aí.

Um disco doméstico, gravado aceleradamente (mas não com desleixo) no porão da casa de Daniel. Projetado para soar como uma coleção de fitas demo, com guitarras dissonantes e interrupções abruptas entre uma canção e outra. Um álbum ríspido que, no mínimo, sugere uma reação à polidez de Ga ga ga ga ga. Não que a banda rejeite aquele disco (e quem rejeitaria? É irresistível). Mas talvez tenha se incomodado com as cobranças de quem esperava por um trabalho ainda mais luminoso, acessível e elaborado que aquele. Transference é o oposto de tudo isso.

Um disco que, nas primeiras audições, soa tinhoso. Mas sugiro que você passe um tempo na companhia dele – talvez uns três dias – para entender a definição que a própria banda dá para o álbum. De que é uma espécie de resumo da obra, colcha de trademarks, “the spooniest”. Talvez seja isso mesmo: ao tomar as rédeas da produção pela primeira vez, o Spoon encontra uma sonoridade “crua” e uma atitude (calculadamente) espontânea que aquece as composições matemáticas de Daniel. No single Written in reverse, com gritinhos de euforia afundados na mixagem, a impressão é de que eles improvisam numa tarde divertida de sábado. Não devem nada a ninguém.

Depois que nos acostumamos aos farrapos do álbum, chegamos ao coração do Spoon: a estrutura das canções. Sempre foi o mais importante, não? Daniel só encontrou o caminho para um estilo quando despiu-se dos ornamentos e encarou a melodia – em Kill the moonlight, a obra-prima dele. Os discos seguintes acrescentam, cuidadosamente, elementos chamativos a essa célula-mãe. Gimme fiction tinha momentos épicos. Ga ga ga ga ga ia ao ska, à soul music de branco. Nessa trajetória (não necessariamente uma linha evolutiva), Transference não chega a soar como uma ruptura nem como um avanço. A banda tenta adaptar as canções dos dois discos anteriores (mais ambiciosas, digamos) a um formato que restaura a pose caseira dos primeiros trabalhos.

O ar despreocupado que sai das canções, por isso, é falso. “Não tenho nada a perder além de escuridão e sombras”, diz Daniel em Got nuffin’. O disco o contradiz, já que descreve um círculo em torno da história do Spoon. É o primeiro álbum totalmente autorreferencial que eles gravaram – um disco que, apesar de dois ou três momentos de verdadeira ousadia (Who makes your money aprofunda as experiências com soul do disco anterior, e soa como se tivesse caído de outro planeta; a balada Goodnight Laura, apesar de derramada, é uma surpresa), apenas confirma a fórmula-Spoon: os arranjos tensos, a performance aflitiva de Daniel, a habilidade para composições precisas (e deve ser mesmo complicado soar tão simples).

Novamente, eles acertaram: Transference é um disco muito eficiente, cheio de recompensas aos mais fãs mais dedicados, mas que me deixa uma estranha impressão de imobilidade. O Spoon parece, enfim, satisfeito com o próprio som (apaixonado pelo próprio som, possivelmente). Talvez seja essa sensação de excessiva familiaridade que tenha me frustrado um pouco. Depois de ter mirado estrelas, o Spoon volta ao porão de casa. Belo porão. O porão: um lugar que, em 2010, parecerá cada vez mais seguro e confortável ao rock independente.

Sétimo disco do Spoon. 11 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Merge e ANTI Records. 7/10