Rei da comédia

Superoito, o rei da comédia

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Não sou um homem engraçado.

Mas sempre achei que sim. Sempre acreditei que esse fosse o caso. Desde muito cedo, ainda bem pequeno, quando aprendi a fazer barulhos estridentes com os beiços, encher minhas bochechas de ar até que quase explodissem, esticar a língua até o queixo e dançar feito um macaco dopado, com braços de fantoche. Minha mãe sorria. Minha avó rendia-se a elogios. “Esse menino é uma graça!”. Minhas tias obesas, que me apelidaram de Guigo, exclamavam bobagens superlativas. “Guigo é o máximo”. “Guigo é um menino muito esperto”. E aposto que, em segredo, admitiram: “Guigo é o novo Jerry Lewis!”.

Não tenho lembranças muito precisas daquela época – dois anos de idade! -, mas sei bem (como se fosse hoje) que eu sentia um tipo muito caloroso de satisfação quando as pessoas gostavam das minhas piadas. Meu troféu eram as risadas soltas, francas, demoradas. Eu me enchia de vaidade mesmo quando recebia sorriso com os truques mais tolos – e, nos meus primeiros anos de vida, quase todas as minhas gozações envolviam barulhos escatológicos.

Talvez minhas tias tenham encenado tudo com muito talento (ou simplesmente me mimado, já que Guigo era o homenzinho da casa), mas elas me convenceram de que eu era o rei da comédia. Aos cinco anos, eu contava anedotas com alguma habilidade. Era inaflível: eu sabia como criar uma atmosfera cruel de suspense e, depois, ir torturando as minhas vítimas até a frase final, hilariante e inesperada. Meu saquinho de gags não tinha fundo quando, no colégio, eu camuflava minha timidez na hora do recreio, contando histórias quilométricas, enervantes, que terminavam num golpe genial de humor barato, sujo, desaconselhável para menores.

Isso até os dez anos de idade, quando me entediei com as gracinhas de salão e decidi investir pesado no sarcasmo. Eu era o horror da ironia, das alfinetadas, dos comentários ácidos, das fofoquinhas malvadas. Acredito até que exorcizei toda a minha rebeldia adolescente nesses atos explícitos de escárnio. O poder de soltar a última gargalhada cínica fazia com que eu me sentisse um rapazinho muito inteligente, mas era um dom incompreendido. Mais tarde, notei que minha vocação era interpretada como arrogância.

Pior: notei que, ilusões à parte, não sou, nunca fui um homem engraçado.

Talvez todos os meus traumas de juventude tenham brotado aí, no dia em que encarei o espelho imaginário e percebi que nunca fui um bom palhaço. E que, para que crescesse como um adulto mais ou menos apresentável, eu não deveria me esforçar tanto para soar como um comediante decadente trancado num reality show de fiascos da stand-up comedy.

Toda a minha disposição para a sobriedade, porém, nunca vingou. O meu “eu palhaço” já havia devorado o meu “eu sisudo” e não havia nada que eu pudesse fazer para alterar esse placar. Uma guerra perdida. Daí que segui com esse jeito meio torto e vergonhoso, rindo das minhas próprias piadas e aproveitando todas as brechas do cotidiano para bolar trocadilhos e paródias que nunca sobreviveriam aos rascunhos de uma sitcom vagabunda.

Um humorista amador compulsivo, é claro, incomoda muita gente. Minha namorada detesta meu humor, que ela chama de “amargo e sacana”. Meus colegas de trabalho riem por educação. Meus amigos pedem para eu maneirar. Minha mãe é minha mãe. Minha irmã, como de costume, está pouco se lixando. Minhas tias escafederam-se no universo. E não converso com meu pai há uns seis meses.

O único que parece compreender essa compulsão é, curiosamente, meu padrasto. Digo curiosamente porque meu padrasto foi o homem que me ensinou a grande lição: bom mesmo é ser sério. Minha meta sempre foi simular o temperamento do sujeito. A ranzinzice elegante, a sobriedade à prova de deslizes morais, as risadas selecionadas com rigor. Um adulto feito. Esse era meu plano: vestir os sapatos muito bem engraxados do meu padrasto.

Daí o aspecto curioso dessa trama: desde que começou a perder a memória, consumido lentamente por uma das doenças mais terríveis do planeta, meu padrasto deixou de vestir os próprios sapatos. É um senhor de 55 anos que, a cada mês, regride algumas estações. Os momentos mais doloridos são aqueles em que ele próprio percebe que perdeu o controle das próprias ações. Não sabe (porque não consegue) mais tomar as decisões que, há alguns meses, pareciam automáticas. Quando percebe os sinais da própria doença, tranca o rosto e embranquece, depois fica quase amarelado, se recolhe no canto do sofá e (ele não diz, mas eu sei) se sente estúpido.

Tento passar muito tempo perto do meu padrasto porque sei que, nos dias mais desesperadores, ele precisa das pessoas que o amam naturalmente, sem esforço ou pena. Nos últimos meses, entendi que a melhor forma de lidar com a situação é tratá-la sem muita cerimônia. Conhecemos a doença intimamente: ela se instalou na nossa sala, ela sabe o caminho do quarto, ela brinca com nossos cachorros e, por isso, é inevitável que a encaremos como uma visitante desagradável, mas que chegou para ficar.

Quando encontro meu padrasto, o que nos une é (notem a ironia da coisa!) exatamente aquilo que nos afastava: o humor débil, ingênuo, paspalhão. Contar piadas nos distrai. Fazer graça de tudo (dos filmes que passam na tevê, das notícias narradas pelos jornais, nas trapalhadas dos nossos cachorros) nos aproxima de tal forma que começo a acreditar numa inversão de papéis que me parece bizarra: eu, o palhaço, virei exemplo para meu padrasto, o homem seríssimo.

Admito que, num primeiro momento, minha reação diante dessa nova mise-en-scene foi de total desconforto. Quando alguém repara que eu sou capaz de rir das minhas próprias piadas, fico envergonhado e peço desculpas. “Perdão, não consigo evitar.” Ver meu padrasto sorrindo com meu besteirol raquítico me deixa encabulado – mas, em segredo, também orgulhoso. É como se eu tivesse recuperado o narcisismo infantil que invadia a minha alma quando as minhas tias batiam palmas todas as vezes em que eu poluía a sala de estar e, logo depois, gritava babacamente: “Minha mão não está amarela!”

Com meu padrasto, eu volto a ser o rei da comédia. Um reizinho, vá lá. Um papel que aceito integralmente já que, nesse caso, é quase tudo o que posso oferecer a ele. A doença terrível nos deixa fracos, tensos, sem norte, sem chão, atados uns nos outros à espera de um futuro vazio. As esperanças existem, mas são traiçoeiras – preferimos não nos apegar a elas.

Daí que as risadas nos ajudam, estão na nossa torcida. A casa fica cheia quando gargalhamos. Sofremos com as luzes apagadas e sorrimos quando elas estão acesas. São os holofotes do palco. Até revezamos: eu sou o ator e meu padrasto está na plateia; meu padrasto é o ator e eu estou na plateia.

A risada do meu padrasto – e eu ainda não a conhecia! – hoje é meu ganha-pão e meu modelo. É meu remédio. O homem sorri de um jeito meio patético, engasgando, com os olhos fechados e os ombros girando freneticamente. É uma reação sem maldade ou culpa. Um riso sem destino, sem futuro, sem cobranças, arregaçado, soltinho na atmosfera.

É bonito de ver. E são nesses momentos ainda tão estranhos que eu – um homem nada engraçado – faço força para não chorar.