Punk
Os discos da minha vida (31)
A saga dos 100 discos que estilhaçaram a minha vida chega a um episódio particularmente descontrolado. Um dos discos aqui listados é a obra-prima do punk rock – sem mais. O outro tem uma capa bucólica, árvores e tudo, mas soa mais furioso que qualquer hardcore.
Cuidado que o cão ladra e morde!
Aos que tropeçaram e caíram de barriga neste blog, aqui vai um guia relâmpago para este ranking: isto aqui, caro visitante, é a lista sentimental dos discos que eu vou levar para o shopping center deserto quando o mundo for tomado por uma epidemia zumbi. Um lance muito pessoal, entende? Portanto, aqui você não encontra (ainda que coincidências às vezes ocorram): 1. os álbuns mais relevantes, mais elogiados, mais queridos da música pop; 2. os álbuns que mais fizeram amigos e influenciaram pessoas; 3. os 1001 álbuns para ouvir antes de morrer; 4. ou algo do gênero.
Aos visitantes mais experientes, toda essa ladainha é antiga e enfadonha. A novidade é a seguinte: hoje entramos no maravilhoso, inesquecível, fundamental, fascinante top 40!
Não que isso represente algo muito importante (esta lista, convenhamos, é uma bela bobagem). Mas pelo menos você tem mais dois discões para fazer o download e ir recheando a sua coleção. É bom, né não?
040 | London calling | The Clash | 1979 | download
Lançado dois anos antes, Never mind the bollocks, do Sex Pistols, é o emblema do punk britânico: urgente, ruidoso e irônico/suicida o suficiente para se destruir em pedacinhos. Mas London calling, ainda que exiba quase todas as características da onda de 77 (muita gente boa o considera, e não por pouco, o maior entre os álbuns punk), é tudo menos efêmero. A estrutura é a de um álbum de rock “convencional”, com um mostruário bem amplo de sons e temas que, no fim das contas, parece criar o mapa afetivo para uma Inglaterra que se transformou para sempre. Talvez nenhum outro disco tenha conseguido mostrar simultaneamente um olhar combativo para a vida (as faixas enfrentam temas como desemprego, racismo, rebeldia juvenil) e para a música (do punk faz-se ska, jazz, rockabilly, reggae). Daí que ele acabou se transformando no modelo de perfeição para muitos dos álbuns que viríamos a amar. Um template inatingível, digamos, mas que ainda nos guia. Top 3: Train in vain, London calling, Spanish bombs.
039 | Plastic Ono Band | John Lennon | 1970 | download
É o avesso de um disco dos Beatles: se as canções de Lennon/McCartney nos espantam pela forma como são cuidadosamente projetadas (suor + arte), os espasmos de Lennon em Plastic Ono Band tiram o nosso ar quando deixam a impressão de que não poderiam ter sido gravados de modo mais cru, mais verdadeiro. Toda a história que cerca este registro – as sessões de terapia de Lennon, o acerto de contas com o ‘fab four’, etc – rendem reportagens muito interessantes, mas o que nos sobra, sempre, é a voz de um homem adulto confrontando incertezas. É uma briga sangrenta, levada aos trancos, mas que nos revela um artista que não conhecíamos: frágil e imaturo, desconfortável e ainda incapaz de compreender a liberdade que exigiu para si. Os outros discos de Lennon são mais profissionais, mais apresentáveis. Este aqui é um grito no escuro, desesperado, incompleto, quebrado e único. Top 3: Isolation, Mother, Hold on.
Root for ruin | Les Savy Fav
Qual disco do Pixies é o seu favorito? O meu é Doolittle, de 1989, que pede bênção a Buñuel e inventa Smells like teen spirit. O preferido do Les Savy Fav, aposto, é Trompe le monde, de 1991. O capítulo em que nossos heróis perdem a cabeça (de vez).
Tensão. Eis a palavra. Poucos álbuns de ruptura soam tão atordoados, como que flagrados em pleno ataque de nervos. Frank Black queria gravar um disco pontiagudo e nervoso, o avesso de Bossanova (1990). E o resto da banda queria ir para casa. Resultado da guerra: um artefato que explode a cada cinco segundos, desmonta, volta a se erguer e, entre uma metralhada e outra, encontra um ou outro acorde agradável – só que nos momentos errados.
É uma obra-prima. Mas uma obra-prima quase acidental, marcada pela tragédia (e o charme, o mistério todo talvez esteja aí).
Pois bem: fico com a impressão de que, desde 1997 (quando lançou o ótimo Let’s stay friends), o nova-iorquino Les Savy Fav tenta simular esse contraste entre guitarras desesperadas e lapsos de candura. Tenta gravar um Trompe le monde.
E o pior é que eles são candidatos seríssimos a esse tipo de reprise. Tim Harrington, o vocalista, talvez seja o mais digno sucessor de Black. Ele entende que o elemento perigoso (e que nos desconcerta, nos perturba) dos Pixies era a disposição da banda se entregar a atos de loucura. Ao vivo, o barbudão parece interpretar o narrador de Debaser – o sujeito que, aos berros, tenta (e não consegue) descrever a excitação que sentiu diante das cenas surrealistas de Um cão andaluz.
Um pirado.
O desafio do Les Savy Fav é transportar essa persona psicótica de Harrington para os discos. Acredito que ainda não conseguiram. Let’s stay friends é um competentíssimo álbum de indie rock que poderia ter sido gravado pelo Modest Mouse. Nota 8+. Mas desconfio que Harrington não está aqui para agradar ninguém (era mais ou menos a angústia de Frank Black, não era? Daí Trompe le monde e uma carreira solo orgulhosamente ‘demodé’).
Root for ruin também não é esse terremoto todo. Mas a banda continua tentando encontrar o formato exato para provocar aquela sensação de que o apocalipse varreu o mundo (não sem ter deixado alguns cacos de melodia). Talvez o culpado (fica a dica!) seja o produtor Chris Zane, que cisma em adaptar o som do quinteto a um modelo-padrão de indie/hardcore, talvez polido demais para traduzir imagens febris, cenas surreais. Ainda não combina com o que eles têm a dizer.
O que devia soar como um contraste chocante acaba por parecer mera contradição. O disco abre com duas faixas violentas (dois golpes, quase nocaute!) que citam Dead Kennedys, At The Drive-In e outros atentados – uma delas fala em apetite, apetite, apetite (é um filme de zumbis, quase), e nos prepara para uma matança.
Mas aí chegam duas canções (isso aí: canções) que vão aplacando essa fúria e domesticando o lobo: Sleepless in Silverlake e Let’s get out of here (essa última, talvez o maior decalque de Pixes que eles já fizeram, com acordes roubados de Velouria, de Bossanova) dariam ótimos singles, mas soam um tanto oportunistas. De qualquer forma, ótimos singles. E quero muito ver a reação de quem acusou o Wolf Parade de, em Expo 86, ter se adaptado a um esquema confortável de indie rock.
O disco vai oscilando entre a celebração (Lips n’ stuff é uma delícia) e o horror (Clear spirits é uma confusão só, mas que deixa a sensação de que, finalmente, as peças estão todas fora dos lugares) – e confirma o Les Savy Fav como uma banda mais típica, mais convencional do que ela própria talvez queira ser.
Talvez o erro deles esteja num detalhe: Trompe le monde era um disco que nos pegava despreparados, que nos enfrentava. Root for ruin é um álbum que cumpre requisitos para agradar a quem já se adaptou a esse tipo de confronto. Um tapa, mas com luvas macias.
Quinto álbum do Les Savy Fav. 11 faixas, com produção de Chris Zane. Lançamento Wichita Recordings. 6.5/10