Pós-tudo

False priest | Of Montreal

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Kevin Barnes, nosso herói. Nosso Scott Pilgrim (15 anos depois). Nosso Ziggy Stardust (transfigurado por efeitos grotescos de Photoshop). O homem, o mito, o supergeek.

No episódio de hoje, preparem-se: Kevin namora uma colegial, enfrenta o mundo e grava um disco pop. Mais ou menos nessa ordem.

Antes, um rápido flashback: no gibi anterior, Skeletal lamping (de 2008), o intrépido protagonista se transformou em George Fruit, um “homem negro que passou por várias mudanças de sexo”. Agora, pelo menos aparentemente, o band leader do Of Montreal está de volta ao normal.

Skeletal lamping era uma graphic novel proibida para menores de 21 anos, com cenas de sexo, perversidades à rodo, sarcasmo refinado, black music safada, desejos carnais. E um narrador com déficit de atenção. Cada uma das páginas se desdobrava em duas, três ou trezentas. Uma sandice.

(Também era, falando a sério, um disquinho corajoso, que radicalizava o temperamento frenético e bipolar do Of Montreal. As canções se confundiam umas com as outras, se perdiam e não se encontravam, iam da euforia à depressão em questão de segundos).

Mas essa fase passou. False priest é um mangá adolescente, proibido para menores de 14 anos, tão perigoso quanto aquele pônei que sua irmã pequena sonhava em ganhar de presente. Mas falsamente ingênuo. Falsamente infantil. Um gibi pop escrito por um sujeito de 36 anos.

De certa forma, Kevin nos preparou para essa mutação. Apareceu, quase domesticado, no disco da Janelle Monáe (que retribui em duas músicas novas). Lançou um EP com faixas remixadas por Jon Brion, um fã de power pop (que produziu Fiona Apple e Kanye West). E, agora, solta um disco que ele descreve como “ear-candy”. Um doce.

Primeira grande mudança: ao contrário de Skeletal lamping (e até do agoniado Hissing fauna, are you the destroyer?, o melhor disco que ele gravou), Kevin passa a namorar um formato de composição que se aproxima do convencional. As faixas estão quase sob controle: têm verso e refrão, raramente grudam umas nas outras, têm DNA de rhythm & blues e deliram de olhos abertos.

Exemplo: Coquet Coquette começa como um hit do Black Keys, com guitarras de blues-rock e um refrão grudento, e depois, lá no fim, vai se perdendo numa névoa de space-rock, até finalmente congelar no espaço. Dura 3:44.

Outro exemplo: Famine affair começa como guitarras mecânicas à Phoenix (via Strokes), embala no hard rock, tem um interlúdio amalucado (com coros, manhas psicodélicas), e depois volta ao começo, repetindo o refrão. Dura 3:49 (e é a minha preferida do disco).

Essa estrutura se repete em quase todas as faixas, como se Kevin compactasse o estilo do Of Montreal dentro de um pote de geleia de morango. Quem acompanha a banda já conhece quase tudo o que está neste disco, mas nunca de uma forma tão polida, tão imediata, tão calorosa (mais intrumentos, menos sintetizadores!), tão oferecida, tão Jackson Five meets David Bowie. Jon Brion, é possível especular, domou os chiliques de George Fruit.

Seria gratuito, mas o novo visual veste muito bem o Kevin teenager que passeia por essas canções. Ele define o disco como uma obra-prima (não é tudo isso!) talvez por entender que está escrevendo crônicas da juvenília que soam tão ardidas, tão irônicas quanto as de um Damon Albarn, de um Jarvis Cocker. Our riotous defects é talvez a melhor que ele compôs, sobre uma “garota maluca” que testa os nervos do narrador. “Eu até ajudei o seu blogzinho estúpido”, reclama Kevin, mais Scott Pilgrim do que o próprio.

E maravilhas desta estirpe: “Coquete, com você eu só consigo ver constelações de luz negra. E outras merdas que não tenho o vocabulário para descrever.” (em Coquet Coquette).

Isso quando o rapazinho não inventa uma passagem secreta entre a discoteca e o hinduísmo. “Levei séculos para me especializar em você. Na próxima vida, vou precisar aprender mais rapidamente” (em Sex karma, com participação de Solange, irmã da Beyoncé). Ou quando não nos surpreende e, num rompante, se rasga todo. “Se eu tratasse outra pessoa da forma como eu me trato, eu estaria na prisão” (Girl named hello). As crises depressivas vêm no pacote, vide a lindíssima Casualty of you e o desfecho esquizo You do mutilate?.

Para seguidores calejados, False priest pode parecer um passo em falso rumo às paradas de sucesso. Uma distração. Ok, ok, Kevin merece chegar lá e está fazendo o possível. Mas, antes que o crucifiquem, o disco também deve ser lido como um sobrinho de Midnite vultures, do Beck: uma traquinagem pós-moderna, dançante e tola as hell, que se diverte (e, ao mesmo tempo, faz graça) com pedacinhos de hits ultracomerciais dos anos 70 e 80. Uma bobagem seríssima.

Prince acusaria de plágio. Já o Girl Talk daria um sorriso. E Kanye West pediria autógrafo. Temos ou não temos o disco pop mais sem-vergonha do ano?

Nosso herói.

Décimo disco do Of Montreal. 13 faixas, com produção de Kevin Barnes e Jon Brion. Lançamento Polyvinyl Records. 8/10

Compass | Jamie Lidell

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De Jamie Lidell eu espero quase todo tipo de surpresas. Se o sujeito criasse um gênero e decidisse chamá-lo de neo-merengue ou de digisalsa, eu não me assustaria. Mas nada me preparou para um álbum caótico (na mais cruel das análises) e espontâneo (na mais generosa delas) como este Compass. É, numa descrição rápida, um fluxo de consciência em formato de música pop. Soa como uma novidade verdadeiramente inusitada – até para os parâmetros de um artista que sempre se portou como um menino irrequieto de três anos de idade.

Até hoje, Lidell era o nerd britânico, meticuloso, que controlava obsessivamente as próprias criações sonoras. Multiply, de 2005 (o primeiro álbum dele pelo selo Warp Records), ganhou logo o emblema “neo-soul”. Não era um disco conciso, mas todo ele se erguia sobre um conceito muito bem definido: o de contrabandear algumas heranças da black music (soul, funk) para o mundo pós-tudo das colagens eletrônicas. Uma operação quase matemática – para alguns, é um disco que soa frio, congelado em câmara de gás e bits.

Pode ser. Mas o admiro. Desde o início, os gostos de Lidell sempre me pareceram muito sinceros. Ele sabe que nunca será tratado como um autêntico soulman, mas não se contenta com o destino. Consigo imaginar os traumas sofridos por um adolescente de Cambridgeshire, branquelo, míope, que insistia em cantar como Otis Redding.

Mas, contra tudo e todos, no disco seguinte Jamie resolveu prestar uma homenagem até certo ponto sóbria, direta, afetuosa, aos ídolos setentistas: James Brown, Marvie Gaye, Otis e tantos outros. Fácil e polido como um antigo álbum da Motown, Jim (2008) assombrou o fã-clube. Era como se ele dissesse: vocês modernos que se virem com a tradição. Um disco agradabilíssimo, incompreendido, falsamente conservador (já que, de ponta a ponta, desafiava as regras da cartilha indie) e talhado para exibir a voz furiosamente negra de Jamie.

Só havia uma semelhança entre Jim e Multiply: eram discos apolíneos, arquitetados cuidadosamente, discos-experimentos, discos-conceito; mais para Prince e Beck, menos para James Brown e Ray Charles.

Em Compass, Jamie altera exatamente esse padrão: tenta criar um álbum menos planejado, mais “irracional”, mais “humano” (como se os outros não o fossem). As 14 canções foram escritas no período de um mês – e é exatamente assim que o disco soa.

A história do álbum começa quando Beck convidou Lidell para participar do projeto Record Club – uma reunião de amigos famosos cujo objetivo prático é regravar um grande álbum. Com Wilco e Feist, ele colaborou para a versão de Oar, de Alexander Spence. Entusiasmado com o clima da gravação, Jamie convidou a turma para gravar Compass. O disco, produzido por Chris Taylor (do Grizzly Bear), tem convidados como Beck, Feist, Gonzáles e Pat Sansone (do Wilco). Foi gravado em Los Angeles, Nova York e no Canadá.

Esse método mutante de criação está no DNA de Compass. Jamie tenta organizar a “grande bagunça que estava armazenada no laptop” (como ele próprio explica, no site oficial) e, sinceramente, nem sempre consegue. O que vale, no entanto, é o tamanho do empreendimento: desta vez, Jamie soa como o Prince dos anos 90, especificamente o de Chaos and disorder (aliás, ele bem que poderia ter roubado o nome daquele disquinho). Testar um ou outro conceito não é o suficiente: o rapaz quer tudo ao mesmo tempo, de preferência com um punhado de chantilly em cima.

Essa ânsia de multiplicar-se faz de Compass um disco exaustivo (de propósito, parece), confuso, enervante, looongo demais. Cada uma das faixas parece pertencer a a galáxia diferente. Completely exposed, a abertura, lembra um pouco a soul music quebradiça de Multiply, mas Your sweet boom, a seguinte, se aproxima das invencionices psicodélicas do Of Montreal. I wanna be your telephone é Prince dos mais alucinados, compactado nos ritmos mecânicos do Beck fase Modern guilt. The ring = blues-rock. E Gypsy blood é exatamente o que o nome indica: algo exótico.

Descrever cada uma das canções seria tão cansativo quanto ouvir o disco do início ao fim. Melhor pular para as combinações mais felizes: orientalismo chic + vocais emotivos + violões dedilhados por um aluno em fase de iniciação no instrumento + eletrônica hipnótica (a faixa-título, Compass), corinho sessentista + bateria endiabrada + funk rock à Red Hot Chili Peppers (You are waking), lamento doloridíssimo à Pearl Jam + arranjo letárgico (Big drift).

E (tirando algumas baladas até simplórias) a coisa fica ainda mais improvável.

O importante é que, a partir de agora, sabemos o seguinte: Jamie Lidell sabe fazer uma bagunça dos demônios. É corajoso. É um guerreiro. É um exemplo de vida. Faz o que dá na telha. E, em vez de criar um disco planejadinho para agradar aos críticos ranhetas que desprezaram Jim, dobrou o quarteirão e seguiu em frente. Bom para ele. Boa sorte! Agora, eu? Demorei um tempinho para perceber que essa bagunça não me satisfaz e, na maior parte do tempo, me deixa com saudades do músico obsessivo e perfeccionista (e às vezes frio, ok?) de Jim e Multiply. Talvez Compass seja o rascunho para uma nova fase – mais sangue, menos cérebro.

Talvez sim. E vou esperar essa primavera chegar. Por enquanto, o Jamie Lidell impulsivo de Compass me deixa mais frustrado do que desnorteado.

Quarto disco de Jamie Lidell. 14 faixas, com produção de Jamie Lidell e de Chris Taylor. Lançamento Warp Records. 6.5/10