Pink Floyd
Os discos da minha vida (25)
A saga dos 100 discos que conheço como a palma da minha mão chega a um capítulo especialmente doméstico. Vamos esfriar a cabeça e conversar sobre família? Só por um minuto?
Sei que há temas muito mais urgentes (questões sobre gagueira em O discurso do rei, para ficarmos num tópico muito quente), mas este ranking já é grandinho e anda com as próprias pernas. Deixem o moleque ser feliz, ok?
Voltando ao tema: família. Os discos de hoje se aninharam na minha vida graças às influências da minha mãe e do meu padrasto. Eu disse que seria uma listinha muito pessoal, certo? Sejam bem-vindos à sala de estar.
Também são discos que, durante a infância, eu detestava até a morte. Detestava até debaixo d’água. Detestava até com cobertura de chocolate. Detestava até com geleia de framboesa. Detestava. Detestava.
E detestava porque eles sempre estavam lá. Eles sempre estavam rodando na vitrola. Produziam ruídos familiares. Acredito até que fui um pouco alfabetizado por eles. Primeiro em português, depois em inglês. Quando comecei a crescer, e a rejeitar tudo o que pertencia aos meus pais, esses dois discos sofreram muito, pobrezinhos.
A redenção veio muito depois, quando eu fiz 20, 25 anos, e voltei aos álbuns que soavam como parte do meu organismo. Fui ouvir os discos a sério e descobri que eles eram velhos companheiros. Irmãos briguentos, mas adoráveis. Irmãos que desaparecem e depois voltam. Irmãos que, quando a gente menos espera, começam a fazer falta.
É esta a história. Vamos a eles, esses bastardos cheios de glória.
052 | Construção | Chico Buarque | 1971 | download
Entre os discos do Chico, não é aquele de que minha mãe mais gosta (de longe, o preferido é Almanaque), mas é aquele que gravei numa fita cassete e levei comigo. Com o tempo, quando abandonei os traumas de infância e me familiarizei com a discografia inteira do homem, descobri aquele que talvez seja o mais valente dos discos brasileiros. Destemido em tudo: nos arranjos épicos de Rogério Duprat (que o aproximam de uma sonoridade tropicalista, impensável nos álbuns anteriores, muito comprometidos com a tradição do samba), em versos que confrontam o regime militar com uma proximidade quase suicida, nas canções que descortinam um país tomado por um certo mal estar (mas um Brasil também infinitamente lírico, vasto). Tudo isso e sim, claro: um disco mais moderno do que 90% do que é gravado hoje no país. As mães, acredite, têm razão. Top 3: Deus lhe pague, Valsinha, Construção.
051 | The dark side of the moon | Pink Floyd | 1973 | download
O disco favorito do meu padrasto sempre me pareceu de uma pompa insuportável. Lembro que, aos 12 anos, eu reclamava sempre que os sinos começavam a soar na sala – e isso acontecia praticamente todo fim de semana. Era o álbum que, na época, representava tudo o que eu queria combater: os enormes monumentos erguidos por meus pais. Eu me trancava no quarto e ouvia grunge, punk rock. Foi muito tempo depois, quando até o meu padrasto parecia ter se cansado do tilintar da máquina registradora (e de outros efeitos especiais), encontrei nas canções o lado obscuro da minha adolescência. O som que batia à porta do meu quarto. Foi como voltar àquelas tardes tão banais: meu padrasto encostado na janela, sugado por melodias que irradiavam de outro planeta. Uma parte da vida também foi engolida por este disco, e aí não importa mais se acho uma grande de uma chatice cósmica (mas fiquem tranquilos: não é). Top 3: Breathe, Us and them, The great gig in the sky.
Os discos da minha vida (13)
Bom dia, amiguinhos, cá estamos nós: mais uma segunda-feira, mais um capítulo do enorme folhetim sobre os 100 discos que enevoaram a minha vida, mais um post escrito diretamente de São Paulo, mais um dia nublado.
Por coincidência, no capítulo de hoje, dois discos para manhãs nubladas. E não vou explicar mais nada – vocês sabem como esta máquina funciona, e prometo que ela vai funcionar exatamente deste jeito até o fim.
076 | Deserter’s songs | Mercury Rev | 1998 | download
Em 1998, Deserter’s songs era o álbum de ‘space rock’ que despertava paixões fulminantes e encabeçava listas de melhores do ano. Hoje, até entendo quem o trata apenas como um herdeiro psicodélico da primeira fase do Pink Floyd: tal como Syd Barrett, Jonathan Donahue escreve versos surrealistas para melodias que nos transportam a outras galáxias. O que pode passar despercebido (e seria uma pena se isso acontecesse) é como o Mercury Rev enquadra essas referências num ambiente cinematográfico, em scope, que amplia cada canção até transformá-las em épicos para uma América sonhada, impossível. Ao mesmo tempo, um disco tão franco quanto os trechos finais de Holes, quando Donahue quase que sussurra: “Bandas são planos tão engraçados que nunca funcionam bem”. Top 3: Holes, Tonite it shows, Goddess on a Hiway.
075 | On the beach | Neil Young | 1974 | download
Neil Young tem pelo menos 10 álbuns que entrariam neste ranking, mas On the beach é aquele que, quando tentamos organizar a discografia do homem, não se acomoda em nenhuma classificação: não soa exatamente como um disco de rock (muito menos como um disco de country rock ou de blues), mas como o registro íntimo de uma crise – página rasgada de um diário. A crueza do álbum se aproxima do tom de Tonight’s the night (que, rejeitado pela gravadora, foi lançado um ano depois), mas o que encontramos nestas canções é um Young quase sempre furioso, indomável, socando a parede do showbusiness. “Sou um vampiro, babe”, ele resume, num dos discos mais assombrados que eu ouvi. Top 3: Ambulance blues, Motion pictures, Walk on.
Radiohead em São Paulo
Assim que ouvi Ok computer pela primeira vez, acredito que por volta de agosto de 1997, tomei um susto tão grande que decidi dividir a experiência com meu padrasto. Fã de Kraftwerk e de Pink Floyd (cresci ouvindo sinos em volume máximo), provavelmente ele entenderia aquilo tudo melhor que eu. Lembro até hoje a reação desejeitada daquele homem grisalho, já turrão e (às vezes terrivelmente) cético: depois de um longo período de silêncio, o Mr. Sisudez se deu por satisfeito lá pela quinta ou sexta faixa. “É impressionante”, ele observou, quase cientificamente. “Se eu tivesse a sua idade, ouviria sem cansar.”
Ficamos nisso. Acredito que, depois daquela impressão animadora, meu padrasto nunca voltou a um disco do Radiohead. Como se, incapaz de acompanhar o galope de uma geração por ele desconhecida, preferisse manter distância das estranhas (e talvez maravilhosas) novidades cultuadas por meninos de 14 anos de idade. Como se dissesse: “ok, Tiago, agora você sabe o que sinto quando ouço The dark side of the moon.”
Duvido que me padrasto tenha assistido aos trechos do show de sábado em São Paulo, exibido na tevê por assinatura. Não o interessa. Posso dizer sem margem de erro: foi retrato de uma geração. A minha geração.
Provavelmente ele teria gostado do que vi (que, para mim, não vale menos que 10/10). A sensibilidade musical do meu padrasto, apesar de excessivamente seletiva (cinco ou seis bandas são o suficiente para mapear toda uma existência), foi moldada por um rock inventivo e atmosférico, ambicioso e monumental. Anos antes de Ok computer, mostrei a ele Nevermind e tudo o que recebi em troco foi um “tsc, o ser humano é um projeto que não deu certo”.
O show do Radiohead é ambicioso e monumental como eram os álbuns de rock progressivo dos anos 70. Mas também é catártico, emotivo e atormentado como o pós-punk do final daquela década. Há como identificar essa mão-dupla de referências em cada um dos álbuns da banda. Em Ok computer. Em Kid A (ainda que rarefeita). Em In rainbows (ainda que coberta por um bafo quente de soul music). Mas, no palco, essa equação se faz visível, reluzente, pulsando diante dos nossos olhos (deslumbrados, talvez cansados, talvez incomodados ou frustrados, mas hipnotizados).
É nosso reflexo. A imagem de quem viveu os anos 90 e seguiu se transformando até chegar aqui, no final da primeira década do século 21. Radiohead é, de certa forma, nossa história (minha e dos outros que o adotaram como trilha sonora para a adolescência). E, de outra forma, a história muito precisa de um período de transformações fundamentais para a música pop. Intencionalmente ou não, os ingleses refletiram o furor grunge (no hit Creep), a desilusão do fim de século (em Ok computer) e a fragmentação do pop via web (Kid A foi o primeiro grande filho do Napster) até antecipar a morte da indústria fonográfica (em In rainbows, distribuído de graça, independente de verdade).
A discografia do Radiohead pode sim ser encarada como um tratado para um mundo em transe. Você ouve Ok computer, por exemplo, e entende a crise econômica. Sério.
No palco, a banda tenta resumir essa ópera sem soar didática ou acomodada (a liberdade de criação é a bandeira que eles continuam levantando). Trata-se de um desafio e tanto. Dois dias antes, assisti a um show do Iron Maiden e tudo o que os velhos metaleiros conseguem (dignamente, para os padrões do metal; nada contra) é enfileirar canções conhecidas da forma mais plana possível, com um ou outro cenário engraçadinho – o que 90% das bandas praticam desde os anos 60. O show do Radiohead vai bastante além desse formato-padrão. É um espetáculo mais intrincado.
Assisti ao show com uma amiga que não conhecia nada além de In rainbows. No final da apresentação, virei-me para ela e disse: “Você acabou de ouvir tudo o que precisa saber sobre a banda. Isto é Radiohead.” Pouco depois, ouvi reclamações de fãs que queriam ter cantarolado hits de The bends. Mas faria algum sentido? A jornada do Radiohead não tem volta. Entendi muito bem que Creep, escondida lá no terceiro bis, era uma faixa bônus que, apesar de agradar aos fãs (e foi uma apoteose), destoa bastante da fase em que a banda se encontra.
A banda se jogou tão decididamente na própria aventura que muitos dos fãs ficaram pelo caminho. Natural. Conheço que deteste Kid A. Também sei dos que desprezam hits como High and dry. O show abraçou essas duas facetas, mas resgatadas a partir dos climas quase transcendentais de In rainbows (a iluminação é, por si só, obra-prima: engolida por tubos de luz, a banda toca literalmente dentro de um arco-íris). Uma banda na trilha do sublime.
Mais que isso: uma banda madura. Quem dera se toda maturidade soasse assim. O rigor técnico aliado à interpretação emotiva, a pompa de superprodução afinada à elegância do conceito (até as cores do telão, em meios-tons, impressionavam pelo detalhismo, pela finesse). Os sets que mudam a cada concerto, mas são sempre executados de forma impecável. Improvisos calculados, mas que soam vivos, doídos, frágeis. Thom Yorke é o Kurt Cobain que cresceu, entendeu os mecanismos da música pop e venceu o monstro sem desligar-se da angústia (e viver neste mundo continua difícil, com ou sem maturidade). Hoje, não há band leader que o supere.
O show de São Paulo oscilou do folk mais cru (a emocionante Faust arp, com dois violões e ponto final) à eletrônica mais cerebral (a geleira chamada Idioteque) – e cobriu uma série de etapas intermediárias entre um extremo e outro. As canções menos virulentas acabaram se destacando – com momentos arrasadores como Karma police, Fake plastic trees, Exit music (for a film) e Pyramid song -, interrompidas vez ou outra por espasmos de ruído (Bodysnatchers, The national anthem). Síntese do show e da carreira da banda, Paranoid android foi reconstituída com fidelidade absoluta – e agarrada pelo público, que fez coro, prolongou os versos, não quis soltar. Sete minutos que passaram como sete segundos.
No total, ficamos perplexos por cerca de 2h20. Pareceu pouco. Eu ficaria ali, de pé, apertado pela multidão, talvez de cabeça para baixo, por mais quatro horas (ouvir Lucky e Climbing up the walls assim, no susto, é de provocar parada respiratória). O golpe de misericórdia veio no final do segundo bis, com uma versão acelerada para Everything in its right place: as luzes vomitavam os versos da canção mais surrealista da banda, enquanto Thom Yorke ia desaparecendo lentamente.
Sabemos tudo o que precisamos saber sobre o Radiohead. O resto é mistério.
Em tempo 1: O mundo não acabou, mas a saída da Chácara do Jockey parecia uma cena de Fim dos tempos. Uma massa de gente, empurrada sabe-se lá para onde. “Parece até Eu sou a lenda“, uma amiga comentou. Nesse exato momento, por uma coincidência absurda, quase tropeçamos adivinha em quem? Alice Braga! Bastante simpática, aliás.
Em tempo 2: Os shows de abertura foram prejudicados pelo volume do som (que, no Radiohead, estava excelente). Los Hermanos fez um retorno correto (7/10), privilegiando lados B e faixas do Bloco do eu sozinho. O público estava tão animado que a banda soou mais alegre que de costume (e Rodrigo Amarante, mesmo aparentemente rouco, deu até pulinhos). O Kraftwerk (6/10) penou para se adaptar à arena, com um telão que mal ocupava metade do espaço destinado ao palco do Radiohead. O show é excelente, um dos melhores que vi na minha vida, mas se dá melhor em espaços menores, com som alto. Foi um aperitivo.
Em tempo 3: Depois de duas horas e meia tentando pegar um táxi (quase apelei para a estratégia de deitar no asfalto e me fazer de cadáver), vi a cor de um sanduíche de frango às 3h da matina. Acordei às 7h para pegar o voo e cá estou eu, um zumbi em pessoa. Morto mas feliz.