Pesadelos
Superoito e a importância das coisas
Eu estava dormindo, talvez no terceiro sono, quando ouvi o telefone tocar. Era um ruído tão nítido e alto – um som tão verossímil – que parecia real. Mas não era. No visor do meu aparelho, nenhuma chamada perdida.
Na noite seguinte, saltei da cama com o zunido robótico. O telefone brilhava, tremia, mas eu não conseguia alcançá-lo. Depois o barulho cessou. Ainda me pergunto se não foi um sonho.
Passei outras madrugadas flutuando em delírios telefônicos. Minha mente, que se entedia facilmente, criou uma jukebox de barulhinhos digitais para me entreter. Tive um pesadelo: um orelhão alaranjado engolia o meu pai (pelas pernas).
Ninguém, anote aí, termina um namoro de seis anos e depois deita a cabeça no travesseiro, conta carneirinhos. Eu sabia disso. Mas era uma semana assombrada.
Resolvi pedir conselhos à minha mãe, que é psicóloga e (mais importante) uma das pessoas mais práticas que conheço.
– Se você está sonhando com telefones e eles te irritam, Tiago, tem coisa aí.
– Sei que tem. Só não sei o que é.
Ela precisou de cinco minutos para refletir sobre o assunto. Enquanto corrigia as provas dos alunos, me ofereceu uma explicação para a crise:
– Vocês terminaram o namoro por telefone, não foi?
– Foi.
– Ela ligava de madrugada? Interrompia o seu sono?
– Isso acontecia.
– Então eureca.
Entramos os dois, mãe e filho, para o livro dos recordes: a consulta mais veloz da história da terapia.
Acontece que a solução para o enigma, ainda que óbvia, não curou a minha síndrome. Foi dolorido – e ainda é – descobrir que o término de um namoro longo deixa resquícios sentimentais que, como latas de alumínio e embalagens de plástico, demoram muito – anos! – para serem absorvidos, integrados ao nosso ecossistema.
Admito que me aborreci quando notei que meu pobre cérebro – tão novo, com um futuro promissor pela frente – havia se transformado num depósito de traumas e frustrações. Havia um monstro de lixo às turras com os meus neurônios, armando castelinhos com a minha massa cinzenta e perturbando o meu sono.
São quase dois meses desde o dia em que, numa demorada chamada de longa distância, nos despedimos e desaparecemos. Fim do filme (e do cinema). Dois meses! Talvez o meu cérebro estivesse tentando me alertar de que havia chegado o momento: eu deveria finalmente enfrentar aquela noite terrível. Antes que ela me engolisse (pelas pernas).
Mas por onde começar? Foi uma ligação tão amarga e tão franca, um adeus tão cheio de afeto e de rancor, um aceno em slow-motion, um trem saindo vagarosamente da estação, saindo e voltando e depois saindo naquela velocidade enervante de tão lenta. Uma rendição. Como nós chegamos lá?
Quando tento reprisar as cenas, minhas memórias bloqueiam certos trechos e criam outros que (tenho certeza) não existiram – não naquela noite, não naquele telefonema. Lembro principalmente dos momentos mais patéticos, que me expuseram ao ridículo (para ela e para mim mesmo). Talvez o tempo me ajude no resgate dos diálogos essenciais.
As falas ridículas – sobretudo elas – ainda me desnorteiam. Ainda me chocam. É como se eu não tivesse dito nada do que eu disse. Nada. A despedida me transtornou de tal forma que, não sei como, me desvendou. Ou, quem sabe, criou uma persona, um ser de ficção. Ou (e admito que essa é a alternativa correta) revelou os grãos ocultos que compõem a minha personalidade.
Em um determinado momento da nossa despedida (e disso lembro com clareza), eu estava chorando, soluçando, eu era um bebê de fraldas sujas, eu era um órfão, eu era um vira-lata sem dono, eu era a imagem de um homem sem músculos e ossos, eu estava totalmente arrasado quando eu disse algo assim:
– Você está indo embora, não está? Está, não está? É definitivo, não é? É para sempre, não é? Então eu prometo a você: em algum momento da minha vida, não sei se cedo ou tarde, não sei quando, eu vou fazer alguma coisa importante!
E só não jurei por deus porque seria uma infantilidade.
Dias depois, me perguntei sobre o sentido daquela promessa. De onde ela havia aparecido? O que ela representava? Qual era o sentido daquilo? Por que eu havia prometido que faria “alguma coisa importante”? Justo eu, que sempre me considerei um sujeito sem grandes ambições, com os pés grudados no chão, um homem que se satisfaz com, digamos, as coisas simples da vida, com os pequenos clichês do universo, com um gesto de carinho, com bons filmes e discos, com batatas fritas! Por que diabos eu estaria empenhado em fazer “alguma coisa importante”?
Mistério.
Até tentei me enganar com aquelas velhas desculpas: você estava nervoso, Tiago, e quem está nervoso fala qualquer bobagem. Ou: você costuma falar bobagens quando está nervoso. Ou: quando nervoso, você é um bobo. E inúmeras combinações de palavras. Bobeira. E nervosismo.
Mas não: se prometi algo tão sério, tão grandioso, talvez era algo que dizia respeito aos meus desejos insondáveis. Eu, Tiago, garanti à minha ex-namorada que faria “alguma coisa importante”! Por que não prometi algo exequível? Por que, por exemplo, não prometi que manteria meu blog até janeiro? Ou que compraria um fogão para o apê? Ou que aprenderia a fazer lasanha?
Imagino o que teria acontecido se ela, minha ex-namorada, tivesse saído com uma promessa tão bombástica: “Tiago, segure-se na poltrona: eu vou fazer alguma coisa importante”. Eu compraria um saco de pipoca (tamanho família) e ficaria esperando.
Lá na dimensão paralela onde ela vive, minha ex-namorada (ainda tenho direito ao pronome possessivo?) estará à espera da coisa importante que eu, num belo dia, farei.
Me pergunto, no entanto, que coisa seria essa. Tai: se meu cérebro é capaz de me surpreender com uma revelação desse tamanho (meu desejo por “coisas importantes”), por que ele não explica o nome dessas coisas? Em sonho, num flash alienígena, num bilhetinho de guardanapo, na borra do café, num programa misterioso de tevê, num torrent contrabandeado, num trailer falso de cinema. Qualquer dica me interessaria.
Quando faço cálculos, percebo que eu já deveria ter começado a realizar “coisas importantes”. Tenho 31 anos e reconheço que perdi décadas e mais décadas metido em atividades desimportantes. Não tive filhos, não abri uma empresa nem comprei um apartamento, não colaborei para organizações não-governamentais, não assaltei bancos, não me candidatei a nada, não fiz parte de uma banda, não escrevi um livro, não ganhei campeonatos esportivos, não fui síndico nem mesário, não venci prêmios de jornalismo, não recebi resposta positiva quando arrisquei um “casa comigo?”.
Fui, e sou, um sujeito mediano. Um fracasso especialmente nesse ramo: o departamento das coisas importantes. Melhor: das coisas que talvez sejam as importantes (esses conceitos ainda me confundem).
Talvez por isto, por ser quem eu sou, eu tenha feito a promessa – para a minha ex-namorada, para mim mesmo. O que eu quero, profundamente, é fazer algo importante. Algo que deixe marcas. Algo que escreva o meu nome no livro do mundo. Algo que sopre aqui nessa peça de argila o vento da imortalidade. Superoito, o mito, o pai, o mestre, o exemplo, o oráculo, presidente da República (seria pedir demais?). Mas não sei se as coisas importantes me querem por perto.
Pior: elas, as mais visíveis entre as coisas importantes, nunca me atraíram. Eu as desdenho. Eu as ironizo. Eu faço pouco caso, como se eu estivesse acima delas. Possivelmente por covardia. Possivelmente por medo de errar. Possivelmente por negar desejos que me parecem ordinários. Talvez por isso, por ser um sujeito que se sabota, eu me doado tanto a um namoro que, desde o início, estava fadado ao fracasso, à irrelevância, a não concretizar nada que importasse a pessoas que se importam com coisas importantes. O que fiz, percebo agora, foi ganhar tempo. Mas para quê?
No mais, não sei nem mesmo o que, entre todas as coisas, é verdadeiramente importante para mim. Não é escrever um livro, não é fazer um filho, talvez tudo isso, talvez nada. Diga, Tiago: para onde vamos agora?
Foi então que, metido nesses pensamentos improdutivos e enlouquecedores, parei de sonhar com telefones. E, vocês sabem, sobrevivi ao fim do mundo. Os escombros que se amontoam nesse meu deserto, no entanto, só revelam o quanto eu continuo perdido.
2 ou 4 parágrafos | A origem
Uma lição que aprendi em muitos anos de sonhos muito bem sonhados: o inconsciente é ilógico, caótico, nos prega peças, nos submete a constrangimentos íntimos, brinca com as nossas certezas, destrincha nossos desejos, nos pega de calças curtas e, cruel, esfrega nos nossos neurônios tudo aquilo que temos medo de conhecer sobre nós mesmos. Os sonhos (pelo menos os meus) às vezes simplesmente não fazem sentido. Frequentemente, são ridículos e provocam risadas na manhã seguinte.
Daí meu espanto ao notar que, em A origem (um filme sobre sonhos, se é que dá para defini-lo assim; e um filme 3/5), os personagens sonham sonhos mais ou menos lineares, quase sob controle, sonhos lógicos (quase lúcidos) que seguem determinadas regras e que podem ser controlados. Eu quero uns desses!, foi o que pensei. Depois de abandonar meus preconceitos (o cinema não tem compromissos com a lógica da vida, que dirá com a falta de lógica dos sonhos), passei a encarar a experiência com alguma curiosidade: Christopher Nolan, um dos cineastas mais pragmáticos que conheço, visita o mundo dos delírios. Veja isso. Que inusitado etc.
Primeiro achei a ideia interessante – não é de hoje que Nolan filma tramas de fantasia com truques do cinema policial (Batman – O cavaleiro das trevas ainda é o exemplo mais bem sucedido dessa imaginação cinzenta). Depois comecei a me cansar. O filme passa mais ou menos 60 minutos explicando um longo manual sobre os conceitos que devem ser aplicados ao próprio filme. Por que não nos entregaram um desses na entrada do cinema? Não é, como eu pensava, um thriller sobre os nossos sonhos. É um thriller sobre o conceito quase matemático de sonho inventado por Nolan para sedimentar este thriller metafísico. Ok (e os diálogos didáticos são nossas apostilas).
Mas aí (e desculpem pelo quarto parágrafo, juro que estou tentando ser sucinto) tem aquela mania do diretor/roteirista de complicar o que já parece complicado. A própria trama romântica começa razoavelmente simples e vai se transformando num buraco de coelho no jardim de Alice. O que mais me incomoda, no entanto, nem é isso, mas como Nolan abre mão de criar um visual (ou uma atmosfera) singular para o longa. Contei duas ou três cenas marcantes, as poucas que exploram as possibilidades surrealistas do tema, e o resto é coisa que se aprende em curso introdutório de cinema de ação e direção de seriados de tevê. Que bizarrice: um filme supostamente tão pessoal, mas que produz imagens tão impessoais. E ainda dizem que é “original”. Esperto, tudo bem. Engenhoso, claro. Ambicioso, absolutamente. Mas original? Perdoem o trocadilho pateta, mas nem sonhando.