Pequeno Superoito

Superoito e o amor

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Minha primeira namorada era branca e magra, tinha cabelos curtos e pretos, sorria de um jeito que me fazia rir, ouvia Janis Joplin, andava com calças de hippies e comia papinha de nenê com o ar provocativo e subversivo de quem estava muito doida para destravar uma granada.

Era 1992 e, naquela época, não havia nada de muito rebelde ou surpreendente a ser feito no mundo. Nada. Estava tudo acabado. The end was near. Mas, claro, havia as papinhas de nenê. As pessoas nos olhavam de uma forma estranha quando comíamos aquelas nojeiras e daí que nos sentíamos vingados, já que éramos jovens e ingênuos e (um pouquinho) estúpidos.

Vocês entenderam.

O namoro durou mais ou menos três meses. Talvez quatro, mas não mais que isso. Eu, que era um tapado, não fazia a menor ideia do que eu deveria fazer com ela, a minha namorada. E era cabeça-dura demais para reconhecer que eu precisava de duas ou três dicas. Meus amigos me encaravam respeitosamente (eu era o menino com namorada!), mas mal sabiam que eu não conseguia ir muito além de uma preliminar vergonhosa: no cinema, eu arrastava timidamente meu braço em direção ao braço dela. Quando os dois finalmente se encontravam, o filme já estava terminando. Já disse que eu era um tapado?

Mais: eu era desengonçado. Só que ela era mais desengonçada que eu e, de tropeço em tropeço,  até que fazíamos um belo par. Algum tempo depois, descobri que eu e ela não aproveitamos absolutamente nada do nosso namoro – que certamente era muito mais excitante dentro das fantasias que nossos amigos criavam sobre nós. Ainda assim, o romance adolescente provocou algum tufão: eu estava completamente apaixonado por ela (e naquela altura já andávamos de mãos dadas) quando recebi um telefonema que durou mais ou menos um minuto:

ELA: Tiago, vou pra São Paulo.

EU: São Paulo?

ELA: Isso. São Paulo.

EU: Mas quando? Daqui a uma semana? Um mês?

ELA: Vou amanhã.

EU (que devia ter ficado quieto, mas já era muito dramático): Que coisa, hem? Amanhã? Já a-manhã? Amanhã? Quinta-feira? Amanhã mesmo? Sério? Isso quer dizer que, depois de ter perdido todos os meus amigos quando me mudei pra essa cidade, depois de ter quase morrido, depois de quase ter pulado da janela do meu quarto, depois de tudo o que aconteceu, então quer dizer que vou perder a pessoa que eu mais…

ELA: E acho bom isso acabar logo aqui. É o que tem que ser.

Eu juro que, naquela despedida surpreendente, senti alguma hesitação na voz da minha namorada. Mas talvez eu tenha criado a ilusão como uma espécie de conforto. Caso contrário, eu passaria os três anos seguintes batendo a cabeça na parede do meu quarto e me perguntando sobre o verdadeiro sentido da vida e do amor. Nada disso aconteceu, felizmente. Entrei para o ensino médio, me diverti com discos e os filmes, fiz novos amigos, namorei outras meninas, estudei como um monge e cresci. Minha vida foi isto aí: uma linha no fim de um parágrafo curto. Mas, em questões do coração, uma linha intensa, sublinhada e em negrito.

É que, para mim, o amor nunca foi simples. Nunca. Talvez o desfecho abrupto daquela minha primeira experiência amorosa tenha me moldado da cabeça aos pés. Formou um adolescente exagerado, excessivamente romântico, um galã kitsch de novela venezuelana, um ser démodé que acreditava na paixão sublime, nas duas metades da laranja, em almas gêmeas e que, por tudo isso, idealizava terrivelmente as mulheres. As melhores eram as impossíveis. E as impossíveis eram as melhores.

Fiquei nesse martírio até o início da idade adulta. Nenhum namoro era totalmente satisfatório, já que os únicos namoros totalmente satisfatórios eram os namoros que não existiam nem nunca existiriam. Eram os impossíveis. Os inviáveis. Os da mitologia grega. As da revista. As donas do meu coração eram as mulheres que me tratavam como, no máximo, um irmão simpático que trazia balas de menta no recreio.

Depois descobri que minha filosofia estava errada. Que não funcionava. Que era furada Que iria fazer de mim um sujeito infeliz e solitário. Mais que isso: descobri que aquele meu amor por amores platônicos era apenas e tão somente o gatilho da minha solidão. Da minha vontade de ser solitário. Do meu medo de arriscar-me. Era um tipo de álibi que eu havia criado para mim mesmo. Era a barreira que eu ergui para impedir que eu me decepcionasse novamente (e cá estamos de volta a meu primeiro namoro).

Foi, acima de tudo, uma opção. Isso aí. Ninguém me obrigou a ser daquele jeito. Aquele sujeito amargo. Mas eu era. Quando resolvi me aventurar na savana do amor real, logo percebi que não entendia nada sobre o assunto. Nada. Passei até a desconfiar que meu primeiro namoro tinha sido uma invenção mental – e que aquela minha namorada, tão distante, pertencia a uma casta de fantasmas que devoravam papinhas de nenê (ou por que então ela seria tão branca?). Minha hipótese foi desmontada quando encontrei com ela, ao vivo, quase dez anos depois, e a mocinha continuava exatamente igual. Branca, cabelos curtos e pretos. A única diferença (importante, pelo menos para mim) era que eu não sentia mais nada por ela.

Fiquei feliz com a minha reação. Orgulhoso de mim mesmo. Imediatamente, acho até que num soluço, minha vida amorosa mudou. Consegui tomar as rédeas do meu romantismo infantil, perdi alguns quilos (pergunte-me como) e, depois de dezenas de encontros e desencontros (alguns deles, especialmente ridículos, renderam conflitos e intrigas para dois ou três blogs), encontrei a namorada que amo e com quem vivo até hoje, sete anos depois.

Conheço gente que rejeita essa história de viver um namoro longo. Para mim, é um tipo de aventura. Um tipo de aventura épica, meio Apocalypse now, sangue e tripas e glória, mas um tipo de aventura. É impossível comentar esse tipo de situação sem cair num discurso derramado de autoajuda ou comentar lembranças que só parecem emocionantes para mim, que as experimentei. Namoros são fofos. São mágicos. E tudo que é fofo e mágico também pode soar irritante. Por isso paro aqui. Digo apenas que uma relação longa pode ser tão interessante quanto um daqueles bons romances de mil páginas, que ainda nos surpreendem e nos fazem chorar lá pelo vigésimo capítulo.

Tai uma lição importante: com minha namorada, aprendi a chorar. De ódio, nos nossos desentendimentos. Mas principalmente de saudade.

Aconteceu quando ela viajou e passou um mês inteiro longe. Aconteceu quando ela decidiu que precisávamos de um tempo. Aconteceu há duas semanas, quando ela trancou as malas e se mudou de vez. Para São Paulo.

É o que se vê em Brasília. As pessoas dizem adeus. As pessoas vão embora. As pessoas desaparecem. E, depois, as pessoas fazem ligação de longa distância. As pessoas mandam longos e-mails. As pessoas partem para novas amizades. As pessoas aprendem a reconstruir as relações. E há, sim, as pessoas que sobrevivem à sensação de que tudo está sempre por um fio. E, sortudas, levam a vida com alegria.

Quando souberam da notícia de que ela iria embora e de que eu ficaria, nossos amigos chegaram à conclusão de que o namoro havia chegado ao fim. De algum modo, todos eles têm certeza de que namoros à distância não funcionam, e talvez aprenderam essa regra em filmes europeus (não nas comédias românticas mais aguadas, por favor) e revistas para mulheres maduras e independentes. Namoro à distância é o túmulo da paixão, dizem. Não os condeno. Eu mesmo, menos romântico do que era aos 16, reconheço que, de um ponto de vista muito otimista, à Gaspar Noé, a distância corrói tudo. O tempo é cruel. Por essas e outras, eu já devia me considerar um viúvo melancólico.

É como me tratam. Olham para mim e abaixam a cabeça. Viram o rosto. Ou fazem comentários tristes do estilo “mas Tiago, então quer dizer que tudo acabou?”. Eu fico sem respostas. “O que vai ser de vocês, Tiago?”, e faço que não estou ouvindo. O clima é de velório por um amor que não acabou. De final de Big Brother. De clímax de Shakespeare. Não é inusitado? Tenho a certeza de que, em duas semanas, vou abrir minha caixa de correio e encontrar flores brancas. E cartas de apoio, compreensivas.Vou me sentir um Elvis. E um Michael Jackson.

Acontece que o amor não acabou. O filme pode ter acabado (e a plateia se despede), mas o amor continua. E duvido que acabe. De forma tão instantânea, não. Não é mais possível. Quando encontro minha namorada, por dois ou três dias (infelizmente, existe um componente dramático que faz parte de qualquer namoro à distância), é como se quase nada tivesse mudado. Eu mesmo fico surpreso. Essa sensação, simplezinha assim, provocou uma verdadeira revolução na ideia que eu fazia de amor. Já que, se amor não é só dependência emocional, se amor não é simplesmente uma forma de matar a solidão, se amor não é mero capricho, se amor não é só posse, se amor não é feito e cultivado exclusivamente na nossa cabeça, então o que mantém tudo isso vivo?

Não sei. Mas é algo mágico e fofo. E irritante. E, mais que tudo, ainda misterioso.

Superoito e a turma de 92

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Não me considero um sujeito saudosista, apesar de tremer quando ouço qualquer hit rasteiro de 92. Até os hediondos. How do you do, do Roxette, por exemplo. O efeito é quase sempre devastador: a enxurrada sentimental me atinge com a fúria de um velho álbum de fotografias.

Por isso me incomodei com a notícia de que a turma de 92 finalmente se reencontraria. Depois de quase 20 anos, os amigos perdidos de uma época perdida se reuniriam num sábado calorento para uma feijoada. Não seria bonito? Depois de uma intensa troca de e-mails, entramos em acordo sobre o horário (por volta das duas da tarde) e o local (um clube no início do Lago Sul). Nos dois dias seguintes, cerca de 20 pessoas confirmaram presença. Todos pareciam muito ansiosos e animados – queriam compartilhar fotografias e conversar sobre os bons tempos que não voltam mais.

Num primeiro momento, tentei escapar da obrigação. Fiz que não era comigo. Esse tipo de encontro, para mim, sugere um punhado de telefilmes chorosos dos anos 80. E nunca fui dos grandes fãs de John Hughes, after all.

Em 92 eu era um garoto de 12 para 13 anos de idade. Sem qualidades. Mas eu sobrevivia, obrigado. Não lembro como, mas fazia amigos e influenciava duas ou três pessoas. Eu era desajeitado e tímido. Eu era sentimental e ingênuo. Eu acreditava em Stephen King e Pedro Bandeira. Em resumo: num mundo de meninos invisíveis, eu era também invisível. Um serzinho ordinário – um detalhe no papel de parede do ambiente onde eu vivia.

Em muitos aspectos (quase todos), eu presumia que aquele Tiago não existisse mais. O menino inocente havia se transformado num homem feito, de 30 anos, calejado pela vida e tolerante feito um mestre tibetano. Pensei logo que não valeria a pena buscar conforto na imagem atualizadas de amigos que provavelmente se esqueceram de mim da mesma forma como me esqueci deles. A ideia soava falsa e despropositada – reencontrar para quê? Não seria melhor deixar as coisas como elas estão?

Ao mesmo tempo, havia um tipo quase mórbido de curiosidade que me empurrava de encontro à turma de 92. Não foi um período triste da minha vida, pelo contrário. Logo que cheguei a Brasília, eu era feliz quando cercado pelas grades de uma escola pequena e obscura, que se orgulhava de ensinar os alunos sobre as maravilhas da arte (aprendíamos teatro, literatura, um pouco de música e artes plásticas) e que afagava delicadamente o ego de cada estudante, sem exceções. Não à toa, todos nos traumatizamos quando demos o salto para o segundo grau, trancados em colégios que nos tratavam como números frios numa longa lista de chamada.

Daí que sábado, mesmo metido num semestre infernal (minha namorada estava a poucos dias de se mudar definitivamente para São Paulo, uma notícia que ainda me deixa desconcertado), resolvi arriscar o mergulho nesse lodo nostálgico. Não sei o que eu procurava (talvez um contato realista com uma infância que idealizo, não sei). Saí inteiro, mas não sem alguns hematomas.

Em tese, toda esta história parece muito simples: você vai ao clube, encontra os amigos de infância, conversa sobre assuntos que interessam à humanidade como um todo (trabalho, família, amores, vá saber), come um pouco da gororoba, vê as malditas fotografias e volta para casa com o espírito renovado, mais ou menos como um virgem de 30 anos. É isso, não é?

É. E não é.

E explico por que não é. Exatamente como eu e você, os velhos amigos crescem e se transformaram em pessoas diferentes. Mas continuam a revelar traços de personalidade que existiam desde a infância. Esse descompasso provoca uma sensação curiosa: ao rever um desses mortos-vivos, é como se você topasse numa pessoa que te lembra fortemente um amigo que ficou para trás. O detalhe aterrorizante é que essa nova pessoa, na verdade, é exatamente aquele amigo do passado.

Parece confuso, eu sei, mas foi o que aconteceu comigo. No grupo de 20 convidados, cinco deles eram mais ou menos familiares. De alguma forma, nos encontramos durante a adolescência ou no período da faculdade. Por isso, e mesmo com alguma remodelagem no layout (um deles estava quase careca), não nos estranhamos. O choque veio quando me encontrei com pessoas que foram extremamente importantes para mim, mas que haviam desaparecido da minha memória.

Logo que entrei no clube, um sujeito sorridente, baixinho e parrudo me recebeu:

– Tiago!

Eu o encarei com os olhos espremidos, como quem faz todo o esforço do mundo para encontrar um sinal, uma marca, um traço de fisionomia… Mas nada. Alguns segundos depois, quando consegui descobrir quem ele era, a imagem completa se formou com velocidade na minha cabeça. E notei que estava diante de um amigo que ainda se lembrava de fatos mínimos da minha vida – e que de certa forma sempre esteve lá, no avesso do meu cotidiano.

– É você! – eu disse, enfim

– Sou eu.

– É você.

E ficamos nisso por alguns minutos. Não havia o que dizer, mesmo quando sabíamos que havia muito a ser dito. Tomados por um transe, todos os antigos amigos se reconheciam e se abraçavam, gaguejavam algumas palavras entusiasmadas e lembravam de cenas irrelevantes e choravam enquanto trocavam fotografias amareladas. E tiravam fotografias digitais, para garantir que nada daquilo era apenas delírio. Fizemos poses para a câmera, trocamos telefones e combinamos que nunca perderíamos contato. Aposto que, num canto discreto do clube, duas amigas renovaram o pacto de sangue – dedinho com dedinho.

O lado patético da história é que ninguém saberia explicar o motivo daquela reunião. O que era? Queríamos de volta o gosto da nossa infância, que nos roubaram para sempre? Nosso desejo era pela certeza de que não estávamos sozinhos no mundo-cão? Ou tudo era apenas uma forma de renovar o compromisso com um período da vida que deixa saudades doloridas? Queremos provar para nós mesmos que estivemos lá, que experimentamos da infância doce?

Nós éramos, de certa forma, testemunhas uns dos outros. Ou quase. Uma das amigas, ausente, decidiu seguir o chamado e virar freira.

Eu não esperava por tantos momentos tocantes numa tarde de sábado, mas reconheço que me deixei levar pelo furacão. Quando a noite chegou, algo inusitado aconteceu: os amigos começaram a reviver literalmente os momentos da infância. O engenheiro civil e a psicóloga contavam piadas debochadas, o advogado mijava na latinha de cerveja do agrônomo e a professora de violino se contorcia no chão imitando uma minhoca com dores de barriga. Eu mesmo sorria como o menino imaturo que ainda sou. Por alguns momentos, me imaginei dentro de um episódio de True blood dirigido por David Lynch.

Mas foi divertido. De um jeito doentio, quase. O auge da comoção coletiva se deu quando o anfitrião disse ter uma confissão a fazer (a feijoada, nessa altura, era uma papa gelada e indigesta).

– Isso aqui… Isso aqui, minha gente… Isso aqui… Estou emocionado, gente.

Na terceira tentativa, o discurso decolou.

– Isso é um momento histórico. Histórico. Encontro em vocês tanto carinho, minha gente. Tanto carinho. Que é como… Nem sei. Não sei se vocês sabem, mas eu quero sair de Brasília. Quero sair pra sempre. Passei parte da minha vida longe da cidade, casei, separei e tive um filhotinho lindo. E agora, voltar para a cidade… É difícil. É que essa cidade vai devorando e maltratando. É tudo muito solitário e vocês sabem disso. É tudo fechado, e sou daquelas pessoas que deixam a porta de casa aberta. E os amigos entram. Sei que, de hoje em diante, vou poder contar com vocês, meus amigos. Vocês são mesmo… mesmo… Vocês são incríveis.

Depois dos aplausos e das conversas bêbadas e inconseqüentes, marcamos outro encontro e combinamos que aquele elo resistiria. Intimamente, sabíamos que era tudo mentira. Mas vivemos a mentira intensamente. Voltamos para as nossas casas. Sei de gente que não conseguiu dormir direito. No dia seguinte, chegaram as fotos. No outro, os comentários sobre o encontro (‘inesquecível’, alguém avaliou). No terceiro, os e-mails sentidos das pessoas que não puderam comparecer.

Mais tarde, as mensagens começaram a rarear. A onda bateu na areia e ficamos novamente em silêncio, seguramente a alguns quilômetros de distância uns dos outros.

Como se nada tivesse acontecido. Mas imagino que, de alguma forma, ficamos orgulhosos do que fizemos, do nosso pequeno ato de rebeldia. De verdade. Vá lá, conte esse como um final feliz. Já que, sem sentido ou explicação, algo aconteceu.