Panda Bear
Mixtape! | Abril, pela manhã
A mixtape de abril é soul. Entende? Soul music, meu filho. Pra rebolar o cérebro e aquecer os ventrículos. Coisa forte, que gruda e (cuidado!) pode machucar.
Portanto, já estou preparado para reações adversas: quem vem a este blog procurando indie rock vai cair do cavalo (apesar de uma ou outra surpresinha); quem curte um country rock vai ficar mordendo cana. Mas só desta vez, ok? É uma coletânea especial.
Especial porque sempre quis gravar um CDzinho temático, puxado mais pro r&b, pro funk, pro hip-hop e adjacências. Eis o rapagão, finalmente vestido para seduzir as minas. Admito que estou muito orgulhoso do moleque.
É, de muito longe (e desta vez não estou forçando a barra), a melhor coletânea de todos os tempos deste blog. É coesa e também um tantinho surpreendente, é dançante e também profundamente triste, é um disco de amor escrito com linhas tortas de melodia, é pesadona e às vezes levinha. Se ela pudesse falar, diria: sou foda!
A ideia apareceu graças à música que abre o disco: The morning, do The Weeknd. É a minha preferida do ano (até abril, é claro) e está num discão: House of balloons. A foto lá em cima, com louvores, é deles. Tudo o que tentei foi criar uma coletânea que estivesse à altura dessa canção e que, de alguma forma, dialogasse com ela. Acho que consegui.
O disco conta uma história com início, meio e fim. Desta vez não vou estragar o surpresa: deixo que vocês tentem adivinhar sobre o que ela trata. Mas a coletânea também pode ser compreendida aos pedaços – e, desta forma, aparecem conotações muito diferentes, que fazem referência a pessoas que conheço e a situações da minha vida.
É um CD, por isso, de muitas dedicatórias. Uma parte do set é dedicada explicitamente à minha namorada (Roll up, You e Street) e trata amor e telefonemas de longa distância. Uma outra parte é para os meus amigos mais próximos (Last night at the Jetty, Ok). E, de uma ponta a outra, é um disco para quem frequenta este blog com mais dedicação e topa embarcar nas minhas loucuras quase diárias. Principalmente pro Pedro Primo, que vai entender direitinho este CD. Esse é teu, rapaz!
Sem querer forçar uma dissertação de mestrado, o disco tenta humildemente mostrar um pouco as variações do hip-hop que me agrada, do mais juvenil (Love is crazy) ao mais sábio (People are strange) ao mais peralta (Ok) ao mais melancólico (The vent). Vai fazer muito sentido, se você prestar atenção.
Além de The Weeknd, o CD tem Wiz Khalifa, TV on the Radio, Childish Gambino, Das Racist, Bibio, Metronomy, Jamie Woon, Panda Bear, Big KRIT e Beastie Boys. Mês que vem, se eu me convencer de que este blog merece a vida, prometo incluir Fleet Foxes (que não combinou muito com o clima deste disco, infelizmente).
É isso, acho. Gravei esta coletânea ainda na primeira metade do mês e fui fazendo pequenas mudanças aqui e ali. A conheço em cada detalhe. Por isso repito: não há outra que me agrade tão completamente. Mesmo que você deteste soul music, dê uma chance a ela. Talvez, quem sabe?, a danada acabe colando em você.
E depois (vamos lá!) deixe um comentário sobre a experiência. A lista de músicas, como de costume, está na caixa de comentários. Até mais e (no caso, bem apropriadamente) boa noite.
Faça o download da mixtape de abril.
(aproveite o embalo e faça também o download das mixtapes de fevereiro e de março)
Tomboy | Panda Bear
Quando eu era mais novo, abandonei os livros para viver só de blogs.
Me transformei em leitor fiel: de blogs.
A obsessão durou mais ou menos um ano. Dos 16 aos 17. Talvez dos 17 aos 18. Não lembro direito. Nos blogs, encontrei aquilo que os livros não me davam: a impressão de que eu lia textos escritos diretamente para mim.
Parágrafos imperfeitos, toscos, ingênuos, sem rigor nem arte, às vezes sem coisa alguma. Mas verdadeiros, secretos. Havia os impublicáveis, os constrangedores. Era como virar páginas de diários.
Depois cansei da exclusividade e voltei aos livros, que me ofereciam muito mais do que espiadas no buraco da fechadura. Foram poucos os romances, no entanto, que conseguiram simular o efeito de um legítimo texto de blog: palavras íntimas, como impressões digitais, marcando a tela.
Já um tanto farto dos blogs, descobri que esse tipo de contato — sem filtros, franco, às vezes desajeitado — existe mais na música pop do que na literatura. O pop permite os desabafos, as confissões, o verso espontâneo, o pensamento mais vago e juvenil. Talvez porque o pop não se leva muito a sério, não quer imortalizar nada.
Há discos que, de tão sinceros, me tomam de cúmplice. Pink moon, do Nick Drake. Plastic Ono Band, do John Lennon. Sea change, do Beck. Os ouço e penso: estou entrando na casa, no quarto, no espírito desses compositores.
É claro que existe, em todos os casos, uma encenação muito bem feita (gravada e regravada em dezenas de takes) daquilo que conhecemos por sinceridade. Mas são discos que, antes de obras de arte, querem ser entendidos como autorretratos. “Essas canções são eu”, é como se os autores dissessem.
O caso de Noah Lennox, o Panda Bear, explica muito sobre essa tradição de songwriters. O Animal Collective, o grupo de que ele participa, é uma banda cujos versos se tornam cada vez mais reflexivos, mundanos. Mas, paralelamente, Noah foi um pouco além: gravou uma série de discos em primeira pessoa, domésticos, que pareciam ter sido escrito apenas para um grupo pequeno de amigos e fãs. Diários sonoros.
O segundo desses álbuns, Young prayer (2004), foi concebido como uma série de cartas para o pai de Noah, que morreu pouco depois de ouvir algumas das canções do filho. As faixas não têm títulos.
O terceiro, Person pitch (2007), também espelha questões cotidianas do músico: casado, pai de um filho, ele se mudou para Portugal e encontrou-se com o mar. Numa torrente de samplers, as faixas criam um fluxo sonoro circular, aquoso. Ondas batendo nas pedras, num dia de sol.
Discos que soavam como ideias muito particulares de prazer.
Noah não contava com o sucesso de Person pitch (na mesma época, o Animal Collective lançou um disco áspero, acimentado, Strawberry jam). Mas, de repente, a plateia cresceu, a crítica o elegeu favorito e o álbum se tornou uma referência para o uso de samplers e referências de psicodelia sessentista no indie rock.
E vocês sabem o que acontece quando um blog pequeno, sem muitas ambições, se agiganta: quanto mais gente lê, maiores são as cobranças e expectativas sobre o pobre sujeito que escreve.
Resumindo: de um dia para o outro, Noah se viu obrigado a tratar o Panda Bear mais como um trabalho do que como um hobby. “Tive que lidar com duas forças: as expectativas das pessoas e os meus sentimentos”, explicou, numa entrevista. Tomboy, o sucessor de Person pitch, é uma resposta a esse tumulto.
Melhor: é um disco sobre esse tumulto. Nas entrelinhas, ele conta a história de um homem que se vê diante de responsabilidades talvez incompatíveis com os próprios desejos. Os álbuns anteriores eram conversas sussurradas, de amigo para amigo, de pai para filho. O novo é um discurso ao microfone: e nós, nas poltronas, estamos em silêncio, esperando ansiosamente. No ar, dá para sentir o quão tenso é o momento.
Aqui, Noah tenta dar conta de se aproximar de dois “públicos”: a plateia numerosa, anônima, e as pessoas mais próximas, que o conhecem. Na primeira canção, You can count on me, ele se dirige ao filho (“Quero colocar uma bolha ao redor de você, como um campo de força, mas eu sei que manter uma criança em segredo é um truque bobo”) e, ao mesmo tempo, aos fãs. “Você sabe que pode contar comigo”, ele avisa, e promete se esforçar.
Musicalmente, no entanto, a faixa é uma das mais acessíveis que ele já gravou, com vocal cristalino sob areia de sintetizadores à Beach Boys. Está feito o pacto: ele não quer dificultar a vida de quem ouviu Person pitch e gostou.
O peso desse acordo chega na segunda faixa, Tomboy, que apresenta a nova aventura musical de Panda Bear: as experiências com riffs de guitarra (inspiradas, segundo ele, em Nirvana e White Stripes), que vão achatando a mixagem numa repetição hipnótica. Logo aí disco trata de criar um cenário diferente do anterior. Um outro capítulo, pois.
É nessa faixa que a angústia aparece pela primeira vez – e chega para ficar. E Tomboy não é um disco de maré baixa. Aos 32 anos, Noah carrega nos ombros mais de uma dezena de questões sobre a idade adulta, os deveres de pai e artista pop: “Como é minha vida? Como é o meu trabalho? Como eu gasto meu tempo?”, ele vai perguntando, sem respostas, enquanto o mantra eletrônico o envolve numa concha.
Em Slow motion, ele duvida da sabedoria popular. “Quando eu diminuo o ritmo, fica claro: o que conta é aquilo que as pessoas não costumam dizer com frequência”, avisa. Cada verso da canção é um dito popular, que logo cria uma massa de som em que a voz do cantor se confunde com os barulhinhos dos sintetizadores. O homem e a música se transformam numa coisa só.
As incertezas seguem em Surfer’s hymn (os versos vêm bronzeados de filosofia e parafina) e ganham um tom pop na faixa mais direta do disco, Last night at the Jetty. “Quem pode dizer que nós não hoje somos da forma como éramos?”, pergunta Noah, ainda em crise. “Não quero esconder as minhas esperanças”, avisa. Soa como um recado aos que cobram mais do que ele pode ou quer oferecer.
O temperamento de Noah, no entanto, não é de confronto. Tomboy, ao contrário até de Person pitch, é um disco que se mostra generoso, de fácil compreensão (até certo ponto, mais a primeira metade que a segunda), com faixas que duram no máximo seis, sete minutos e que, em alguns casos, se aproximam de formatos mais convencionais (é o caso da sublime Alsatian darn). Ele vai tentando agradar aos dois públicos, ora arredio (Drone, Scheherazade), ora mais comunicativo (Friendship bracelet).
Noah comentou que, em Tomboy, a intenção era, ao entrar num território musical por ele desconhecido, provocar tanta surpresa quanto o disco anterior. Se não soa tão extraterrestre (já que a sonoridade de Panda Bear agora nos é familiar), o álbum mostra a dedicação de um artista que, trancado num sótão, sozinho, num “pesadelo diurno” (o quarto era iluminado apenas por uma lâmpada), tenta transformar e amplificar uma arte que nunca disse respeito a muita gente.
“Alguns podem dizer que vencer não é o mais importante. Mas não há nada mais verdadeiro ou natural do que a vontade de vencer”, ele explica, na faixa que encerra o disco, Benfica. “Não lamento as opções que fiz. Algo se ganha, algo se perde”, resume, em Friendship bracelet.
Tomboy não é o Panda Bear que conhecíamos, não é um álbum tão iluminado quanto Person pitch. Algo daquela velha liberdade se perdeu, mas não deixa de ser o registro frontal de um momento: Noah tenta conciliar o disco que esperávamos dele com o disco que ele queria ter feito. Não soa tanto como um blog ou uma confissão, mas como uma negociação: séria, sim, fascinante (é claro) e tão íntegra quanto tudo o que ele gravou.
Quarto disco de Panda Bear. 11 faixas, com produção de Noah Lennox. Lançamento Paw Tracks Records. 8/10
Swim | Caribou
Dan Snaith é PhD em matemática e vive numa família de acadêmicos. Mas, talvez como uma forma de vingança pessoal, grava discos que soam como o avesso de uma equação de física. A soma das melodias dá em resultados imprevistos, que não se repetem e, por isso, rejeitam a definição de um padrão. São o pesadelo de qualquer cientista.
Cada álbum de Snaith — que atendia por Manitoba, depois por Caribou — é uma biosfera instável, uma capítulo muito diferente do anterior. Daí que, para quem espera um novo Andorra, esta nova fase soará frustrante. Aviso logo: a nova aventura deixa para trás toda a atmosfera afável, de psicodelia sessentista (à Zombies, Beach Boys), que transformou aquele belo álbum de 2008 num pequeno rubi que todo mundo queria ter na estante da sala.
Os elogios ao disco foram unânimes. Para os mais pessimistas, o apogeu parecia representar o início de uma temporada mais tranquila para o músico. Ufa, aconteceu o contrário: o (relativo) sucesso inspirou Snaith a fazer as malas, pagar o bilhete e trocar o itinerário. Swim é um álbum de dance music.
Um gênero que, remodelado por um compositor que adora triturar clichês, é assimilado com absoluta liberdade. A transformação começou no planejamento do disco. Em vez de escrever as canções de forma linear (como aconteceu em Andorra), ele preferiu gravar pedacinhos de ruídos e melodias para, mais tarde, montar o quebra-cabeças. Durante o processo, descobriu que gostava das faixas mais dançantes.
Ainda assim, nada em Swim pode ser classificado de acordo com fórmulas de nichos dance. “As canções têm elementos que a dance music não costuma mostrar, ou não pode aceitar. Sempre sigo meus instintos, não me preocupo com gêneros”, disse Snaith. As canções são feitas de instrumentos que não soam como instrumentos, sons do ambiente, variações irregulares de volume, timbres exóticos e vocais que poderiam ter sido gravados de improviso. Não há como rotular essa sonoridade. É o que é.
Mas é, sem dúvidas, uma sonoridade com limites muito bem traçados. A ideia de um disco que soasse líquido, movediço (um conceito que acaba lembrando o formato de Person pitch, do Panda Bear), é praticada da primeira à última música. As faixas se movimentam em ondas baixas, às vezes atingindo ápices que quebram com força na areia (é o caso de Kaili, o clímax prematuro do disco).
Tal como Panda Bear, Snaith usa as técnicas da eletrônica com a sensibilidade de um fã de rock psicodélico. O fundamental, nos dois casos, é simular a sensação de transe, alucinação, sem abandonar alguns valores caros ao rock: os vocais emotivos, a melodia assobiável, a combinação de acordes que provoca amor à primeira audição (ou o efeito revigorante de uma barra de chocolate, caso de Odessa, lindona).
Depois da décima audição, não sei dizer se é um disco melhor ou pior do que o anterior. Snaith criou um ambiente tão trancado em si mesmo — no bom sentido — que as comparações perdem o sentido. Noto, apesar disso, que o compositor vai crescendo a cada disco, ganhando traquejo para criar faixas que duram o tempo necessário para obrigar que voltemos a elas.
E, se ainda não encontrei nenhuma canção tão tocante quanto Irene (a minha favorita de Andorra e uma das preferidas da década), os prazeres aqui são outros: o de flutuar no mar esverdeado de uma ilha virgem, selvagem, bonita de doer (mas impenetrável em certos trechos — nem todos os enigmas são moleza).
Não é uma onda perfeita. Mas duvido muito que Snaith procurava algo redondinho, previsível. Ele quer mais é cair na aventura. E quem quiser que vá seguindo.
Quinto disco de Dan Snaith/Caribou. Nove faixas, com produção de Dan Snaith. Lançamento Merge Records/City Slang. 8/10