Otimismo
Superoito express (30)
Tomorrow morning | Eels | 7.5
Oficialmente, Tomorrow morning é o terceiro capítulo de uma trilogia que começou com Hombre lobo (2009) e End times (lançado em janeiro de 2010). Na prática, soa como uma continuação de Blinking lights and other revelations (2005), um dos melhores discos de Mark Oliver Everett. Aquele álbum parecia ter sido escrito e gravado nas primeiras horas do dia, num estado de quase vigília. Era preguiçosamente belo. Já o novo sugere uma manhã quente de verão. Céu azul. Férias. Passarinhos piando. E a sensação de que o pior já passou.
É, portanto, um daqueles discos otimistas e quase alegres, que só soam convincentes quando escritos por sujeitos muito calejados. É o Nashvile skyline de Everett, e um álbum que consegue resolver quase todos os problemas dos anteriores. Em resumo: não tem o peso de um tedioso diário de um ano ruim. Não (ainda que algumas faixas mais aborrecidas deixem vestígios dessa fase). Everett faz um esforço admirável para simular dias felizes e, no processo, acaba redescobrindo o prazer do pop doméstico, lúdico, que nos leva num pulo à estreia dele, Beautiful freak (1996). Juntas, essas canções mais alaranjadas e cheias de surpresas renderiam um disquinho nota 8.5. Então (papel e caneta!) anote aí e faça o seu CDzão do Eels: I’m a hummingbird, Baby loves me, Spectacular girl, This is where it gets good, Oh so lovely (a melhor do disco), The man, Looking up e Mystery of life.
Black city | Matthew Dear | 7.5
Se Tomorrow morning é um disco diurno, Black city é exatamente o oposto disso: noite preta (e é até instigante ouvir um disco após o outro; eu recomendo). Matthew Dear cria um ambiente instável, tenso, todos composto em tons de cinza, com canções que nos seduzem e, depois de alguns minutos, vão se desmontando até se transformar em objetos disformes. É um horror (no bom sentido). A faixa-título me parece um túnel sem fim, iluminado por lâmpadas frias, com curvas que chegam inesperadamente. E o miolo do álbum soa tão encardido quanto um The Contino sessions, do Death in Vegas, e um Pre-millenium tension, do Tricky. Só me incomoda um pouco notar que a atmosfera por vezes sufoca as canções. Felizmente, não é o que acontece com o encerramento, uma lindeza chamada Gem.
The orchard | Ra Ra Riot | 6
O problema de discos que desenvolvem conceitos redondinhos (como Tomorrow morning e Black city) é que eles acabam denunciando a irregularidade de discos mais imaturos – como é o caso deste The orchard. Está claro que o Ra Ra Riot entrou em estúdio para gravar uma versão mais “sofisticada” e “adulta” de The Rhumb line (que já não era um grande disco) e que, para isso, acabou apelando para os recursos mais óbvios: arranjos melodramáticos de cordas e uma ou outra canção que rodaria em rádios mais conservadoras (caso de You and I know). O que é uma pena, já que o disco tem faixas que renderiam maravilhas num esquema lo-fi (a linha de baixo galopante de Boy e os corinhos de Massachusetts são viciantes). Deveriam ter aprendido com os chapas do Vampire Weekend: crescer é preciso, mas um passo de cada vez.
Causers of this | Toro Y Moi | 6
Outro disco com momentos luminosos, só que dispersos num conjunto ainda verde. Consigo notar alguns sinais de Animal Collective (as canções circulares, escoradas mais em ritmos do que em melodias) e do Cut Copy (ares de synthpop), além de um desejo grande de afirmar um estilo (não foi dessa vez). Apesar disso, o disco me agrada por apresentar um compositor de sutilezas: Chazwick Bundick nos obriga a ouvi-lo várias vezes antes de tirarmos alguma conclusão. Talamak e a faixa-título mostram que o rapaz tem muito a ganhar se tiver o despudor de incluir mais elementos pop num estilo que, por enquanto, veste o rótulo ‘chillwave’ confortavelmente. Talvez confortavelmente demais.
Superoito express (27)
American slang | The Gaslight Anthem | 8
O maior pecado que se pode cometer com o Gaslight Anthem é tratá-la como mais uma banda americana que se aventura a cingir as estradas do abertas por Bruce Springsteen. De fato, não são os únicos: como o Hold Steady e o Titus Andronicus, este quarteto de Nova Jersey revisa o ‘rock clássico’ setentista (não só Bruce, mas Stones, Clapton, Greatful Dead) com uma sensibilidade punk e uma escrita realista – crônicas de uma América sem glórias, cotidiana. Mas as comparações logo perdem a importância: quando vai ao microfone, Brian Fallon se torna o porta-voz de todos os roqueiros que abandonaram a juventude, mas não perderam a inquietação. É o homem.
Enquanto o Hold Steady e o Titus ainda conseguem tomar algum distanciamento para narrar a saga dos meninos e meninas da América, Fallon parece contar a própria história (e talvez seja tudo ficção, mas o que importa é o grau de convicção, altíssimo). Mas, em vez de se retrair no canto do quarto, ele combina versos cheios de mágoas e nostalgia com uma sonoridade extrovertida, de cabeça erguida. “Aqueles velhos discos não vão salvar a sua alma”, Fallon avisa, em Stay lucky. Mas American slang, mais conciso e aparadinho do que The 59 sound (2008), soa como um álbum perdido do início dos anos 70: hinos robustos para o sonho que acabou.
Gemini | Wild Nothing | 7.5
Sem querer forçar a barra (mas já forçando), existe pelo menos uma semelhança entre o Gaslight Anthem e o Wild Nothing: ambos soam autênticos mesmo quando seguem todas as regrinhas de certos subgêneros do indie rock. No caso do projeto de Jack Tatum, a matriz é o shoegazing dos anos 80. Mas, se a neblina de Gemini nos transporta imediatamente a um disco do My Bloody Valentine ou do Cocteau Twins, Tatum vai remodelando e atualizando essa sonoridade com a leveza do pop sueco (Summer holidays é bonita de doer) e o noise doce de um Pains of Being Pure at Heart. Em resumo: a delicadeza às vezes exige uma arquitetura complicada.
White magic | ceo | 7.5
E o sol continua a brilhar na Suécia… O projeto solo de Eric Berglund, do Tough Alliance, é cartão-postal para as belezas do pop escandinavo, a ser consumido com cautela por quem se engasga com melodias acolchoadas e arranjos com cheiro de morango. Canções infinitamente otimistas como Illuminata, No mercy e Love and do what you will são quase exercícios de estilo: coros, flautas, ecos, barulhinhos divertidos, sentimentos nobres e sintetizadores gentis. Uma lindeza. Melhor do que isso, só quando caem as chuvas de verão: Oh God, oh dear, uma ode tocante a Brian Wilson, e a eletrônica nebulosa da faixa-título são remédios contra insolação. “Venha comigo para um lugar que eu chamo de realidade”, convida Eric. Por enquanto não, obrigado.
Night work | Scissor Sisters | 7
Nada como um produtor sagaz: no terceiro disco do Scissor Sisters, o parisiense Stuart Price transforma um conjunto de canções apenas medianas num álbum que flui como um DJ-set. Um milagre semelhante ao que ele operou em Confessions on a dance floor, da Madonna, e Day and age, do Killers. No caso de Night work, o espírito é o de uma festança para trintões, com doses de dance music safada, new wave e pop dos anos 1970 e 1980. Os nova-iorquinos ainda pilham os hits alheios com humor debochado, camp – mas, desta vez, ganham massa muscular graças aos esteróides roubados de discos antigos do Prince ou de um Midnite vultures, do Beck. De Bee Gees (Any which way) a Talking Heads (Running out), o DJ não falha. No calor da pista, sobra até para os mais românticos: Fire with fire é o tipo de baladona épica que venceria o Oscar de melhor canção em 1986. O suficiente para nunca mais confundirmos Scissor Sisters com Mika.
Logos | Atlas Sound
Quem acompanha obsessivamente a programação dos cinemas sabe o quão importante é topar num novo Tarantino. Ou num James Gray. Ou até numa animação da Pixar. São filmes que, de uma forma ou de outra, nos mostram que estamos certos: apesar dos inúmeros indícios de que estamos jogando boa parte da nossa existência no depósito de lixo das comédias românticas, as exceções nos garantem que sim, nós escolhemos a obsessão correta.
(E aposto: pescar, praticar tiro ao alvo e caçar alces são hobbies que podem se revelar tão frustrantes quanto)
Acontece algo parecido com quem ouve música compulsivamente, e estou aqui como testemunha de que, nesse caso, também é necessário perseverança. A estrada é sinuosa, meu irmão. Não são poucas as decepções que assombram o caminho de quem persegue a batida perfeita. Apesar da alta média de acidentes, a experiência deixa claro que, depois do centésimo lançamento do ano, fica fácil separar os Tarantinos dos Guy Ritchies.
Na música pop (e incluo aí o indie rock), os clichês também nos soterram, tiram nosso fôlego, arruínam nossos dias, nos condenam ao tédio abissal e quase nos convencem de que seria melhor virar o disco das nossas vidas e optar pela pesca, pelo tiro ao alvo ou por caçar alces (nem que por vingança).
Claro, há as exceções. E, como no cinema, elas nos revigoram. Tudo isso parece muito óbvio, mas é uma introdução necessária para explicar por que este disco irregular do Atlas Sound soa tão especial. É que a voz e as ideias de Bradford Cox soam genuínas. Funcionam, por isso, como um tipo de conforto. Depois de duas ou três audições, estamos prontos para enfrentar a Lady Gaga.
Afirmo sem medo de cometer um exagero: Cox é um dos maiores nomes do novo rock americano – um dos poucos que transitam por diferentes nichos sem deixar que essas mutações corrompam sua identidade. No Deerhunter, ele vai do shoegazing ao pós-punk com a naturalidade de quem não conhece as linhas que separariam uma denominação da outra (e, no fim das contas, as fronteiras não existem). Daí que, inevitavelmente (e felizmente), o Atlas Sound soa como uma filial do Deerhunter – por enquanto, Bradford Cox não consegue ser alguém diferente dele mesmo.
Mas tenta. O Atlas Sound foi criado para abrigar toda e qualquer produção de Cox que não coubesse no formato de uma típica “banda de rock”. O primeiro álbum, o ótimo Let the blind lead those who can see but cannot feel (2008), criava climas de pesadelo com elementos de ambient rock e de eletrônica minimalista. Era um álbum que soava coeso, quase claustrofóbico, com versos que pareciam desenrolados num fluxo contínuo de consciência e evocavam imagens de uma infância perdida. Trilha de filme de horror. O novo disco conta uma história diferente.
Com o tempo, o Deerhunter mostrou um interesse cada vez maior por estruturas convencionais de canção pop – e essa guinada, além de ampliar o público do grupo, deu em Microcastle, o melhor disco da banda (e uma névoa de ruídos rosados na linha de Loveless, do My Bloody Valentine). Seria natural esperar do novo disco do Atlas Sound, por isso mesmo, uma pose mais experimental. No entanto, acontece o oposto disso: Logos é o momento mais acessível e sortido de Cox – ainda que seja um projeto assumidamente errático.
Ao contrário da estreia do Atlas Sound, este leva ao pé da letra o formato de um “livro de rascunhos” (e o próprio Cox definiu o projeto como um sketchbook), com um apanhado disforme de canções órfãs que, num ponto de vista otimista, acabam revelando que Cox é um consumidor fominha de lançamentos musicais – um tipo como eu e você.
Logos é um disco mais permeável e indeciso que o anterior – ainda que, curiosamente, acabe soando até mais saboroso. Dá prazer de ouvir (e, muito francamente, é um disco que ouço com mais gosto que o recente do Flaming Lips). Como eu dizia antes, um Bradford Cox em modo despretensioso é o suficiente para nos curar de dezenas de sub-Animal Collective.
O álbum começa como se abandonasse lentamente a estação do disco anterior. The light that failed é um mantra psicodélico com violões, efeitos de eco e vozes repetitivas. A segunda faixa, An orchid, acrescenta uma melodia mais crua e simples a esse formato. Até aí, nada de novo. É na terceira música que o barco é engolido pela primeira onda: Walkabout pode ser encarada como uma versão remix de uma canção do Animal Collective. As marcas da banda são replicadas de forma tão cristalina que notei o parentesco antes mesmo de ter percebido que Panda Bear colaborava na faixa. O disco começa a se deixar transfigurar.
A partir daí, é uma surpresa atrás da outra: Criminals tem um quê de folk rock (ainda que pela lente embaçada de Cox, que vive sempre no mundo da lua), Attic lights soa como um lamento à PJ Harvey e Sheila, a revelação mais chocante do pacote, é uma cantiga de roda quase pueril, ainda que com tema dark (é como se um menino de seis anos jurasse amor eterno a uma menininha. “Vamos ser enterrados juntos para não morrermos sozinhos”, ele diz).
A segunda parte abre com um outro dueto, desta vez com Laetitia Sadier. Com oito minutos, Quick canal convida a vocalista do Stereolab para um transe à krautrock que pouco combina com o resto do disco. Mas o efeito é hipnótico. Depois, Cox volta lânguido em My halo e vai preparando o terreno para o ápice da viagem: Kid klimax parece sintetizar todas as experiências do álbum, bem no meio do caminho entre o pop eletrônico e a fixação psicodélica de Cox. É uma pedra lapidada. Sublime de verdade – e eu ficaria muito feliz se o vocalista decidisse levar o Deerhunter nessa direção.
Depois do clímax, o disco vai esmaecendo até chegar à faixa-título, outra que surpreende pela crueza. Se o álbum anterior do Atlas Sound mostrava o quanto Bradford Cox valorizava uma certa tradição da música pop – os discos “conceituais” -, desta vez ele se desprende das amarras e abre o ateliê para que o fã dê uma espiada. Logos é o retrato de um processo criativo caótico. E que vale por um documentário franco sobre as filmagens de um longa do Tarantino.
Do que estou reclamando mesmo?
Segundo disco do Atlas Sound. 11 faixas, com produção de Bradford Cox. Lançamento Kranky/4AD. 7.5/10
Humbug | Arctic Monkeys
Choque de gerações. Aprendi o significado da expressão quando comecei a trabalhar ao lado de um jornalista pra lá dos 60 anos (ele não revela a idade, mas fiz as contas) que foi convidado para a cerimônia de batismo da Tropicália e muito possivelmente entrevistou Renato Russo quando o vocalista da Legião Urbana ainda comia papinha de maçã e usava fraldas descartáveis. Um repórter admirável, aliás.
Há uns três meses, dividimos a mesma estação de trabalho (a forma elegante como chamamos a bancada fina e acinzentada que ampara os computadores e toda a nossa tralha). Honestamente: não é a convivência mais tranquila que o Ocidente conheceu, mas nos esforçamos para manter um clima de compreensão mútua e solidariedade, na medida do possível. Ele tem manias que me incomodam – exige, por exemplo, que meus fones de ouvido sejam mantidos a pelo menos 50 centímetros do teclado que ele usa. Eu não posso reclamar: tenho tiques que não sei exatamente o quão irritantes soam.
O que nos une, de certa forma, é o amor obsessivo pela música. Ainda assim, mesmo quando é esse o tema em pauta, o diálogo trava. É impossível. Ele se esforça para entender as novidades que aparecem e desaparecem a cada 15 dias. Eu sou curioso, quero conhecer o passado e tenho uma tendência a colocar as experiências dos outros em perspectiva histórica. Sou tolerante, compreensivo, um bom filho e um amigo fiel. Sou quase um labrador. Mas, volta e meia, perco o ânimo quando ele deixa escapar uma daquelas perguntas que, para um repórter de música que nasceu ainda na primeira metade do século 20, são incontornáveis.
– Não consigo entender. Este mundo, as coisas, música, tudo… Tudo anda tão… Veloz.
Eu sempre argumento com alguma reflexão zen do tipo:
– Tente encarar as coisas de uma forma mais desarmada. Elas são como são. É melhor entendê-las antes de tomar partido. Depois de entender o que acontece, aí sim.
– É, mas eu sei é que não gosto, não gosto mesmo disso, das coisas como elas estão.
E ponto. Não vejo como avançar na conversa.
Hoje o assunto voltou à baila. Eu estava escrevendo uma longa matéria sobre discos que foram lançados em 1969 e viraram clássicos. Ele aproveitou a deixa para voltar à tese de que, na música pop, nada, nada será comparável ao passado – que é belo, reluz e continua vivo, apesar de tudo.
– Fico até pensando: será que acabou?
Me esforço para mostrar que estamos numa época diferente, tão nova e estranha que às vezes, por uma questão de segurança, obriga que a tratemos de uma forma despreocupada. 1969 acabou. O sonho acabou, etc. E que há novos parâmetros em jogo. A velocidade como as novidades hoje se desdobram é um desses fatores. Tentei teorizar sobre o papel das gravadoras, que desabam aos poucos. E, finalmente, procurei sugerir que, num cenário de fragmentação total, a própria ideia de longevidade parou de fazer tanto sentido. O que importa, verdadeiramente, se uma banda de rock vai durar 30 anos e gravar 15 discos?
– Eu até entendo, Tiago, mas sou de uma época em que as boas bandas de rock eram as que duravam. Beatles e Rolling Stones ainda são Beatles e Rolling Stones. E fico com elas.
Acredito que foi aí, exatamente nesse ponto da conversa, que puxei da cartola o novo disco do Arctic Monkeys. Era um bom exemplo a ser usado, já que o repórter havia visto um show da banda (como eu disse, ele se interessa pelas novidades mais comentadas, e admiro essa disposição).
– O terceiro disco do Arctic Monkeys ainda não chegou às lojas. Na verdade, esse fato é irrelevante. Ele está na internet e por isso as pessoas já ouviram, comentaram, avaliaram. Gostaram ou odiaram, tanto faz. Acontece que esse evento, o lançamento do terceiro disco do Arctic Monkeys, já aconteceu. Já passou. Estamos prontos para o quarto disco do Arctic Monkeys, ainda que isso não nos preocupe tanto assim. Você entende a lógica da coisa?
– Entendo. Mas não tem graça.
Voltei para casa pensando nisso, nessa última frase do diálogo. Qual é a graça? Explicar um procedimento que me parece tão simples (baixar música, ouvir, opinar e seguir adiante baixando, ouvindo e opinando) virou uma tarefa complicadíssima. Sou dos que acreditam que a cultura pop vive um momento de transição, ainda dividida entre hábitos antigos e novíssimos. Todas as bandas de rock, por exemplo, entendem que a velocidade hoje se impõe – que não há mais tempo para que passemos seis meses diante de um disco novo, analisando cada acorde e formando opinião. Mas, simultaneamente, grande parte dessas bandas continua gravando álbuns à moda antiga – peças de arte concebidas para serem “lidas” como uma história com começo, meio e fim.
É aí que o Arctic Monkeys me parece um exemplo bastante interessante – mais até do que eu imaginava. Uma banda muito nova, de garotos que mal entraram na idade adulta. E um quarteto que é um símbolo forte desta época por alternar velhas e novas estratégias de criação e marketing. Trata-se de uma novíssima velha banda de rock (e há muitas outras; na verdade, essa ainda é a regra). Eles sabem lidar com a velocidade do tempo em que vivem (até de uma forma instintiva, já que cresceram metidos nesse turbilhão) e criam álbuns com uma lógica que vem dos anos 60 ou 70 – e que, por isso, fisgará o “antiquado” fã de rock.
Muitas das bandas da geração do Arctic Monkeys gravam álbuns que soam como compilações de singles. E não podemos acusá-las de nada, já que o mercado hoje pede que o negócio seja organizado dessa forma. O disco mais recente do Franz Ferdinand é um caso típico: um conceito rarefeito pontuado por duas ou três canções fortes. Talvez esse seja o futuro do pop (ainda não dá para saber), e talvez isso tudo nos deixe frustrados (nós, no meio do caminho entre os velhos e os novos hábitos, órfãos de tudo). Mas o Arctic Monkeys não se abala: e daí este Humbug, um álbum tão redondinho, tão íntegro e tão, de certa forma, ultrapassado.
E digo isso sem juízo de valor: ainda não cheguei aos 60, mas, nesse ponto, me sinto velho. Amo os álbuns à antiga. Eles me dão prazer. Ele fazem com que eu me lembre dos meus discos favoritos, dos vinis que formaram a minha personalidade, das “obras de arte” que eu tentaria criar se eu soubesse tocar guitarra decentemente. Sou um oldie.
Com toda segurança, afirmo que o Arctic Monkeys teria se saído muito bem no início dos anos 90. Ou no início dos 80. Ou em meados dos 70. Final de 60? A concorrência seria dura, mas eles dariam um jeito. Os ingleses insistem em colocá-los no trono do século 21, mas ainda não consigo encontrar o século 21 dentro do Arctic Monkeys. Quatro garotos que gravam álbuns tão corretos, tão econômicos e agradáveis… O que eles dizem sobre o mundo em que vivemos? Não ouço nada. As bandas-símbolo do século 21 teriam que soar, ao menos, esquizofrênicas, paranoicas, desnorteadas, cegas no tiroteio, incertas, quebradiças. Não são tempos confortáveis, vocês sabem.
Então esqueça: não compro o hype. Nunca comprei. Ainda assim, não me envergonho de encarar esta bandinha adorável da forma como ela sempre se apresentou para mim: como uma bandinha adorável. Os singles são eficientes, o vocalista é um letrista às vezes formidável, eles têm boas referências (e soam mais como Smiths que como Oasis) e seguem uma cartilha confiável (Beatles, alô?) que manda as bandas pop evoluírem de disco a disco. Humbug é uma evolução e, por enquanto, o álbum deles de que mais gosto.
Para gravar o disco, os rapazes britânicos tentam captar o som do deserto norte-americano com o aconselhamento espiritual de Josh Homme, do Queens of the Stone Age (e agora, algumas horas depois de ter escrito este texto, concluo que esse trânsito suave e despreocupado por diferentes culturas, cenários e referências conta como um traço contemporâneo da banda). Aposto que eles gravaram tudo num estúdio nada charmoso, mas me encanta a ideia de um Deserto Norte-Americano engolindo as sessões de gravação. As canções batem assim: rodeadas de fantasmas, chapadas de sedativo, com ecos e ruídos que só não soam exatamente sombrios porque esta não é uma banda sombria (eles soam como sempre soaram: estão se divertindo a valer, a vida é boa e o rock não vai morrer).
Em síntese: exatamente o que eu esperaria de um disco do Arctic Monkeys produzido pelo Josh Homme. Os versos, doidos de dar dó, cheiram a mescalina. As duas primeiras faixas, aliás, me deixam com um sorriso de orelha a orelha. Crying lightning é um belíssimo single, que vai crescendo até explodir em guitarras repetitivas e enfezadas, que deve agradar principalmente a quem adora Queens of the Stone Age (e rock britânico psicodélico do fim dos anos 60, lembram do segundo volume do box Nuggets?). Seria um hit estrondoso em 1998. Outras faixas são um pouco menos luminosas, mas o álbum só tem 10 delas, passa rápido e, logo ali, repare na balada que confirma Alex Turner como o novo Morrissey, doa a quem doer (Cornerstone, linda toda vida).
É um bom disco que será tratado, pelo menos por algumas semanas, como o melhor dos mundos. Talvez essa seja a grande diferença, se compararmos o nosso tempo com 1969 ou 1979 ou 1989 ou 1999. Antes, engolíamos uma massa industrial de incríveis novidades até o fundo da garganta, por longos períodos (passei um ano inteiro decifrando Be here now!). Hoje, podemos digerir rapidamente o hype, cair de cansaço e experimentar outras extraordinárias novidades, e daí em diante, até descobrir algo que nos acerte na barriga e nos deixe zonzos. Algo forte. Algo que, para nós, soará verdadeiramente fascinante (nem que, vá lá, por algumas semanas).
Somos uns sortudos, não? Estou começando a acreditar.
Terceiro disco do Arctic Monkeys. 10 faixas, com produção de Josh Homme e James Ford. Lançamento Domino Records, Warner Bros e EMI. 7/10
I’m going away | The Fiery Furnaces
Eu não estou otimista.
Tudo bem, admito: eu não sou um sujeito otimista. Naturalmente vejo problemas onde deveria encontrar soluções, complico o que poderia ser simples e caço motivos para me sentir miserável. Talvez eu goste de me ver como uma pulga infeliz, desprezível, para sempre abandonada num mundo cruel. Agora mesmo, reparem, estou ouvindo Elliott Smith, trancado no meu apartamento friorento, me sentindo melancólico por alguma razão obscura. “Going nowhere”, o defunto canta. E eu não posso fazer nada além de concordar com ele.
É isso aí, chapa. A vida é dura.
Encontro as pessoas na rua e elas dizem que eu deveria me sentir bem. Tenho um emprego. Tenho a melhor namorada do planeta. Ganho um salário que paga o aluguel do apê e o pão e o suco de laranja e detergente e os outros produtos de limpeza. Não estou quebrado (por enquanto). Não fui demitido (por enquanto). Não estou totalmente sozinho (e taí uma perspectiva que arrepia minha nuca). Minha existência faz perfeito sentido nos momentos em que não penso na minha existência.
Mas deixemos esse papo sombrio de lado. Já que, oba!, o Fiery Furnaces, uma das bandas que moram no meu coração de papelão (e deixo isso bem claro, antes que me acusem de bajulação explícita, babação de ovo e outros crimes afins), está com disco novo.
E eles estão otimistas.
Aparentemente, pelo menos. Quando penso em Matthew e Eleanor Friedberger, prefiro sempre desconfiar de tudo. Sabemos que os irmãos dividem o gene da ironia e da dissimulação. Será que eles falam sério? Será que eles já falaram sério alguma vez na vida? Ouvi este I’m going away pela primeira vez e, tomado pelo susto (explico o motivo daqui a pouco, calma), fui procurar alguma dica no site deles. Encontrei um textinho que vai mais ou menos assim:
“Toda canção de rock é mais ou menos dramática. E, como os tempos estão difíceis, faz sentido transformar esse ‘drama’ em algo mais parecido com uma versão de Taxi que de Titanic. Gostamos mais de Taxi que de Titanic, de qualquer forma. Então esperamos que as canções deste disco possam ser usadas para que os chapas criem suas versões particulares de Taxi”
(E, depois de supor que eles falavam daquela comédia bobinha com a Gisele Bündchen, descobri que Taxi é uma série que foi transmitida na ABC entre 1978 e 1982, sobre o cotidiano de taxistas nova-iorquinos. Ganhou 18 Emmys e foi inspirada numa reportagem)
Eles continuam: “Idealmente, o cenário dramático de uma música é construído pela vida das pessoas que a ouvem. Esta é a promessa e o problema – e talvez o perigo – da música pop. Sim, estamos otimistas”
Está tudo explicado, não? Se eu fosse uma pessoa mais alegre e positiva, talvez as canções do Elliott Smith soariam como sambinhas divertidos e engraçados, daqueles que achamos em parques aquáticos ou aulas de lambaeróbica. E talvez por isso I’m going away me pareça um disco tão lindamente triste. A vida é dura. Os tempos são difíceis. E o Fiery Furnaces continua um ombro onde podemos chorar nossas pitangas.
Começando do começo: para os fãs, o sétimo álbum da banda é uma ruptura perversa numa carreira que, até agora, parecia narrar a história de dois nova-iorquinos que decidiram virar o tal “indie rock” pelo avesso. Isso, repito, para os fãs. Aos que não a conhecem, o disco é qualquer coisa (nessa altura, quem os detratores continuarão observando tudo de longe, meio desconfiados).
Depois de lançar um álbum ao vivo que, creio eu, deve ser ouvido com a disposição e entrega de quem compra ingresso para um show (e acho que foi por isso que tentei Remember só uma vez), o Fiery Furnaces preparou uma surpresa assustadora, impressionante, acachapante: virou uma banda de rock quase “normal”. Não sei o que aconteceu quando você ficou sabendo disso, mas eu quase caí da cadeira.
Sim, já que, para mim, sempre foi um prazer decifrar os enigmas de Matthew e Eleanor. Existe um humor fino e cruel em cada um dos álbuns, um radicalismo quase fora de moda, uma mania de narrar longas histórias, conceitos impenetráveis que nos desafiam a desvendá-los ou abandoná-los de vez (e aposto que muitos preferem essa segunda opção). Lembram do disco que eles gravaram com a avó? E daquele que soa como um álbum tocado de trás para frente? Ah. Bons tempos.
Trocadilhos infames à parte, a partir de Blueberry boat (2004) eles tomaram o barquinho rumo aos confins misteriosos do rock e seguiram em frente. Uma banda à parte. Ame ou deteste, nenhum disco do Fiery Furnaces parece qualquer disco.
Em I’m going away, o barquinho faz um desvio inesperado, depois de ser engolido por uma dimensão paralela, vai parar em algum ponto dos anos 1950. Alguns encontrarão o “disco pop do Fiery Furnaces” que tanto procuravam. Mas ouça com cuidado: a referência aqui é o pré-rock, o folk antiquado, as canções tradicionais (a faixa título é uma antiguidade de domínio público). Tentei ouvir o álbum junto com Together through life, do Dylan, e tudo se iluminou.
Num primeiro momento, soa como uma decepção. Confiem em mim: se o mundo afiar as garras como sempre faz, o destino do disco será semelhante ao do fabuloso Jim, de Jamie Lidell: será tratado como uma “obra menor”, uma espécie de Sky blue sky do Fiery Furnaces. Um projeto convencional e, por isso, pequeno. Não caiam nesse erro, meus irmãos e irmãs! Não. O disco está entre os melhores que a banda gravou – e, se você despir expectativas, encontrará nada menos que quatro obra-primas (dou os nomes: Drive to Dallas, The end is near, Cut the cake e Lost at sea) e um punhado de canções que explicitam o talento para a melodia que sempre se escondeu nas camadas mais profundas dos discos da banda (mas eu sei, eu sei: para o fã, isso não chega a ser uma novidade).
De forma planejada (já que, para os Friedberger, nada existe por acaso), tudo aqui é cristalino: das letras às melodias, dos refrãos aos rompantes econômicos de free jazz que quebram algumas das canções. A história narrada flui graciosamente. A voz de Eleanor atinge ápices inéditos de doçura, a produção parece tão serena quanto a de álbuns como The greatest, da Cat Power, e a falta de modernices faz parte da brincadeira. Uma das canções conta a história de uma mulher que “canta as músicas mais quadradas da jukebox”. O desafio para a banda (e um baita desafio) é soar inventiva dentro de um formato com limitações bem claras e específicas.
E é como eles soam. Seja quando repetem uma mesma ladainha em duas melodias diferentes (Charmaine champagne e Cups and punches) ou quando roubam uma linha de baixo de Black Sabbath (Staring at the steeple), eles interpretam as tradições do rock americano com um misto irresistível de elegância e atrevimento. É uma jornada sutil. Um filme de aventura para adultos sérios e maduros.
Se é assim, de onde vem a tristeza do disco? Surpreendentemente (mais uma vez!), o álbum me emociona em baladas supostamente óbvias que, para uma alma pessimista como a minha, soam francamente desiludidas. Em Drive do Dallas, Eleanor narra a história de uma mulher apaixonada que decide nunca mais dirigir para Dallas com os olhos embaçados. “Se eu vir você amanhã, não sei o que vou fazer”, ela repete e repete, sem fôlego ou conforto. Lost at sea é a confissão didática de uma vida que perdeu o norte. E ficamos sem saber se, em The end is near, ela canta o apocalipse ou o fim de um romance. De uma forma ou de outra, dói feito uma facada no peito (“The worst part is almost over”, canta Elliott, aqui no meu ouvido).
As melodias que embalam essas crônicas de passageiros solitários são arejadas o suficiente para não permitir que caiamos em depressão profunda. Talvez seja isso o que eles queiram dizer com um disco “otimista”. O momento mais luminoso (e meu favorito, de longe) é uma canção sobre uma mulher (sempre ela) que acorda num dia estranho e descobre que virou um sucesso. Está no noticiário local. Está nos jornais. E fica imensamente feliz com a novidade. “Quando ouvi a notícia, quase perdi o fôlego. Como isso pode ter acontecido de verdade?”, ela se espanta, acompanhado por um corinho jazzy de Matthew. “O caminho mais longo é o caminho mais doce para a casa”, ela afirma, naquela lógica estranha que conhecemos bem, na saltitante Take me round again.
Está tudo bem, então?
Para quem enxerga um mundo cinza (e eu enxergo!), uma canção tão alegre quanto essa pode soar dolorida em cada verso. I’m going away é um disco que permite a dupla interpretação. Um veneno agridoce. Eis o perigo da música pop.
Sétimo album do Fiery Furnaces. 12 faixas, com produção de Matthew Friedberger. Thrill Jockey. 8/10