Orhan Pamuk

[orhan pamuk]

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Imaginemos que um autor escreve uma autobiografia na primeira pessoa do singular e o faz com absoluta honestidade, assegurando-se de que todos os detalhes de sua vida, centenas de milhares de detalhes, são fiéis a sua experiência de vida. E imaginemos que um editor esperto lance o livro como um “romance” (existem muitos editores espertos capazes disso). Tão logo esse livro é chamado de romance, passamos a lê-lo de maneira muito diferente da pretendida pelo autor. Começamos a procurar um centro, a perguntar-nos sobre a autenticidade dos detalhes, que parte é real, que parte é imaginada. Assim agimos porque lemos romances para sentir essa alegria, esse prazer de buscar o centro (da narrativa) – assim como para especular sobre o conteúdo real dos detalhes e para nos perguntar quais são fruto da imaginação e quais se baseiam na experiência.

Agora devo dizer que essa grande alegria de escrever e ler romances é dificultada ou ignorada por dois tipos de leitor:

1. O leitor totalmente ingênuo, que sempre lê um texto como uma autobiografia ou como uma espécie de crônica disfarçada de experiência vivida, não importando quantas vezes você diga a ele que está lendo um romance.

2. O leitor totalmente sentimental-reflexivo, que acha que todo texto é constructo e ficção, não importando quantas vezes você diga a ele que está lendo sua mais franca autobiografia.

Devo alertá-los para que mantenham distância dessas pessoas, pois elas são imunes às alegrias de ler romances.

[Trecho do livro O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk]