O pós-morte
Superoito desaparece lentamente
O que me perturba agora não é tanto a solidão (acredito até que me adaptei a essas noites silenciosas, todas iguais), mas a ausência.
Não a ausência de uma namorada (entendo e aceito o fim do namoro), mas o desaparecimento de uma pessoa com quem vivi por muito tempo. A palavra é esta: desaparecimento.
É, como dizem, uma sensação muito parecida com aquela que nos invade quando um amigo morre. Num momento, a pessoa está lá. Um minuto depois, não está.
Concordo com o lugar-comum, acredito que seja assim, tudo muito simples (e horrível): ela não morreu, mas morreu; ela não mudou de planeta, mas mudou; ela continua na mesma cidade, mas a cidade dissolveu-se.
E não há como ser de outra maneira. Pelo menos não neste momento, nesta primeira temporada no pós-morte. A distância, o silêncio nos ajuda a recriar as nossas vidas, a inventar outras rotinas.
Eu, por exemplo, comprei uma estante de madeira para guardar meus livros. Arrumei a mesa da sala. Escrevi um conto (nanico). Passei a correr trinta minutos todas as manhãs (e, para isso, adquiri tênis especiais). Tentei fazer alguns planos.
Ela deve ter feito algo diferente do que fazia. Não sei. Não posso, tento me convencer de que não quero saber.
(…)
Mas nem é isso que me incomoda hoje (a impossibilidade de acompanhar uma vida que me parecia tão próxima, que eu assistia como que a um filme longuíssimo). O que machuca é uma impressão mais estranha, difícil de definir.
Um mal-estar que não se resolve. A solução, no caso, não seria retomar o namoro (que voltaria a me machucar e a machucá-la de outras formas), não seria dar partida num outro namoro, não seria conquistar novas amizades ou comprar um cachorro ou assistir a filmes e ouvir discos e aprender francês. Nada. Não há como medicar. É uma fenda, um espaço em branco.
Dizem que o tempo resolve.
Acredito que resolva (já passei por situações parecidas e fui melhorando aos poucos). Mas desconfio que essa experiência, por ter sido tão demorada e intensa, vá alterar a forma como vejo todo esse melodrama, essa dança às cegas: o amor. É um pouco como sair do ensino médio e entrar na faculdade. Perdi algo.
Não sei ainda o que deixei para trás. É cedo. Mas vai ser diferente: começar um novo namoro (imagine isto) com a certeza de que, num determinado momento, haverá um desaparecimento. Talvez um desaparecimento inesperado. Um corte na película. Dá um pouco de medo.
Um namoro é uma experiência que exige tanto (um confinamento confortável, mas um confinamento; um sequestro, e entregamos tudo o que temos). Mas que você leva para casa quando ele termina? Uma memória? Uma fotografia? Uma história a ser reproduzida? Uma ideia para uma crônica? As roupas que ela esqueceu no seu armário? Um livro de 800 páginas? Saudade?
Aconteceu quando eu tinha 13 anos. Minha primeira namorada telefonou e disse: vou embora, vou mudar de cidade, o pai foi transferido, acabou. Não tínhamos brigado. Eu a amava e o sentimento era recíproco. Mas como prosseguir dessa forma? A película se rompe. Abre-se a fenda. Passei algum tempo, alguns anos naquele intervalo, naquele fim de ligação, o telefone desligando lentamente, eternamente.
Não sei se, de lá para cá, aprendi alguma coisa. Em matéria de amor, talvez nada. Notei que repeti erros e, em mais de um momento, agi como um menino de 13, 11 anos. Talvez menos.
Agora, quando o namoro longo estava prestes a acabar, preenchi um mapa mental: “vou sofrer”, eu me alertei, “depois vou sentir um pouco de alívio (como quem se livra de uma mochila pesada), depois vou sofrer de novo, depois vou descer a uma tristeza profunda, depois vou sentir a ausência”. E aconteceu exatamente assim. Pontualmente. Achei graça quando percebi que todas as etapas foram cumpridas conforme o previsto. Somos engraçados.
O que sinto, mais do que tudo isso, é cansaço. Exaustão.
Confessei isso a uma amiga: estou cansado. E ela não soube muito bem como me consolar. “Você viveu o que nunca vivi, Tiago. Seis anos!”, e ficamos assim. “Uma experiência que pouca gente teve”, e entendi (eu, um ser exótico; mas entendi). O problema é que não me sinto bem, não me sinto adulto, não consigo ainda calcular minha herança (os lucros imateriais do namoro, se é que existem) porque, antes, estou cansado.
Não sei bem o que quero. Vê-la novamente? Não. Um telefonema? Não. Um e-mail? Não. Notícias dela? Prefiro não saber. Mas quero saber, por exemplo, que ela está bem. Ela está bem? Quero saber se ela também passou pelas mesmas etapas que passei. Em que pé você está? Foi diferente? Quero saber se ela já consegue rir de comédias bobas, se ela acorda com medo, se ela sonha com cavalos, se ela fez planos (e os abandonou), se ela também comprou uma estante de madeira, se ela arrumou a mesa da sala.
Talvez tenha a ver mais com amizade, mais com cumplicidade do que com amor. Mas minha impressão é de que, no mundo, só ela – a pessoa que desapareceu, que precisa desaparecer – entende o que estou vivendo. Numa realidade alternativa, segura, invisível, nos encontraríamos para conversar sobre o nosso drama patético – um filme que só entretém a nós dois – e depois voltaríamos para casa, um pouco menos cansados, menos perdidos. Sozinhos.
Pode ser que eu não queira nada disso. Pode ser que eu queira uma notícia breve e tola: ela vive, esqueça o fantasma. Ou pode ser que essa minha vontade por um contato sobrenatural faça parte de uma etapa que, em pouco tempo, vá passar. E, quando esse momento chegar, não vou perceber a mudança: será só o início de um dia muito comum, mas que finalmente terá começado.