O passado
Helplessness blues | Fleet Foxes
Era a terceira vez que minha namorada vinha à cidade e eu sabia que, naquele fim de semana, acabaria acontecendo. Minha mãe nos reuniria na sala para abrir, um a um, todos os meus álbuns de fotografias.
Confesso que ainda me sentia despreparado para o ritual sangrento. As fotografias me levam a lugares para onde prefiro não voltar. Mas fiz que estava tudo bem. Para simular macheza, puxei o coro: “as fotos, mãe!”
Elas, é claro, estavam todas lá. Empilhadas no armário do corredor, no alto, à esquerda. Os álbuns zoneados, socados de qualquer jeito naquele espaço minúsculo, naquele sarcófago retangular. Estavam vivos, por um triz.
O mais lógico seria adotarmos a ordem cronológica. Começaríamos pela infância (flashes serenos), depois seguiríamos adolescência adentro (meu pântano) até chegar aos meus 20 anos (raras aparições para as lentes).
As fotos recentes praticamente não existiam, graças a deus e, principalmente, à tecnologia digital.
Aquele espetáculo não era novo. Assisti a ele tantas vezes que o roteiro me parece previsível mesmo quando as cenas são embaralhadas e narradas de forma aleatória. Como eu dizia, seria útil adotarmos a ordem cronológica.
Seria, mas não parece ser o método mais prazeroso. Minha mãe prefere tirar os álbuns na sorte, abrir primeiro o que estiver à mão, e se surpreender com as fotografias que aparecem. Talvez por hábito, o jogo também me agrada.
Naquele sábado, não lembro qual foi o primeiro álbum que o acaso escolheu para abrir nosso flashback. Sei que era um da minha infância.
Nessas imagens, estou quase sempre fantasiado – de super-herói, palhaço, índio, soldado. Reconheço que existe graça naquele menino tímido, assustado, metido em roupas exóticas. “Nessa ele tá doente, coitado”, minha mãe avisa, sempre.
Minha namorada riu com a foto em que apareço vestido de Rambo, exausto na escada de casa. Também parece ter gostado de ver que, como eu havia avisado, já pesei uns bons quilos a mais. Na cena, eu estou com uma camisa larga, amarela, de viseira, na festa da posse do presidente. Barrigudo. Sorrindo.
Para mim, as fotografias carregam mistérios que não consigo decifrar. Olho para elas e é como se eu não me visse. Não sou aquele menino encabulado. Não sou aquele adolescente sem jeito (de óculos e cabeça raspada). Não sou aquele sujeito gordinho do rosto redondo. Não sou o adulto com traços de menino, que aparece de camisa social apoiado no monumento do Muro de Berlim. Não me reconheço muito bem.
Estive em todos esses lugares, fiz todas essas coisas, mas as fotografias dizem muito pouco sobre quem eu sinto ter sido. É como se contassem a minha história pela metade, com um roteiro terrivelmente superficial.
Ou talvez (muito possivelmente) ainda exista um problema na forma como eu me noto. Sigo insatisfeito com o que fui e com o que sou. Talvez as fotografias reflitam a minha dificuldade de aceitar que sou mesmo aquela pessoa, aquele menino, aquele adolescente, aquela face que as imagens mostram. Admito que bate uma certa decepção.
As fotografias estão sempre do mesmo jeito. Eu é que as encaro com olhares diferentes. É um sujeito comum, o garoto das fotos. Mas não o homem que eu queria ter sido.
Pensei um pouco nisso tudo enquanto lia a apresentação do disco novo do Fleet Foxes, escrito pelo vocalista, Robin Pecknold. É um textinho franco, bonito, que termina tentando explicar o título do álbum, Helplessness blues. “Um dos temas principais é a luta entre quem você é e quem você quer ser”, ele explica. “E sobre como, às vezes, a única barreira entre uma coisa e outra é você mesmo.”
Robin tem 25 anos de idade. Lembro que, quando eu tinha 25, essa angústia já me perseguia. Parecia enorme a distância entre quem eu era (o sujeito que aparecia nas fotografias) e quem eu queria ser.
Acredito que essa distância, aliás, se impõe de forma abrangente em Helplessness blues, o segundo disco do Fleet Foxes. Esse espaço incalculável entre os nossos desejos e aquilo tudo que conseguimos, de verdade, realizar (e tudo que realizamos sempre nos parece tão pouco).
Para começar, é um disco que quer ser grande. Ainda no texto de apresentação, Robin fala que pensou em Astral weeks, de Van Morrison, para compor a atmosfera “de transe” dos arranjos. “Foi uma grande inspiração. Não sempre nas músicas, talvez na abordagem”, apressa-se a explicar. Ele sabe que, por mais que tente, seria impossível se colocar à altura do ídolo.
Mas por que não? Robin se cobra demais. Eu o entendo. Helplessness blues pode ter muitos defeitos, mas está explícito que este é o melhor disco que o sujeito consegue criar neste momento.
É a vontade de superar as próprias limitações, de ir até onde é possível, de tentar se aproximar daquilo que é uma ideia de perfeição (inatingível, portanto), que faz deste um álbum verdadeiramente tocante.
É um disco sobre um homem de 25 anos procurando respostas para aquilo que não entende muito bem. Crescer não é simples.
Vejamos, com cuidado. Logo no refrão da primeira música, Montezuma, encontramos um Robin espantado, em meio a uma brisa de violõs dedilhados e vozes masculinas: “Oh man, what I used to be! Oh man, oh my, oh me!” (um trecho que dispensa tradução). É o instante catártico de uma faixa que abre com uma questão filosófica: “Agora estou mais velho do que meu pai e minha mãe quando tiveram a filha delas. O que isso diz sobre mim?”
Talvez não diga nada (é uma perguntinha aparentemente tola), mas o disco todo tenta respostas para essa aflição. Não é um álbum plácido, apesar de conter um punhado de melodias folk por vezes angelicais.
A canção seguinte, Bedouin dress, fala sobre arrependimentos de juventude. “Acredite em mim, não é fácil olhar para trás”, avisa o nosso guia. Depois, em Sim sala bin, o que entra em cena é um personagem que vive bem no mar, sozinho, até o momento em que a terra treme e “o sonho quebra”.
Percebemos aí que é uma música sobre decepções amorosas que não foram bem resolvidas, que se escondem no oceano até o dia em que rompem o marasmo. “O que faz com que eu te ame apesar de todos os poréns? O que eu vejo nos seus olhos além do meu próprio reflexo?” Ainda não dá para responder. A faixa vai se alongando em camadas e camadas de violões, Van Morrison style, à deriva.
Em Battery kinzie, uma das melhores do disco (imagine aí um encontro de Zombies com Byrds), os versos de Robin ficam mais abstratos. “Acordei um homem morto, sem chances”, ele diz, antes de mergulhar no surrealismo. As canções seguintes formam um ciclo tanto musicalmente (os violões onipresentes, os arranjos com um quê de pop barroco, a âncora melódica lançada nos anos 70) quanto em versos sobre uma jovem velhice, um desencanto prematuro.
É assim que o disco caminha, com olhos marejados. “Fui criado para acreditar que eu era alguém único. E agora, depois de muito pensar, começo a me ver como uma máquina na engrenagem”, confessa o vocalista, na faixa-título. Mas conclui, um pouquinho esperançoso: “Não sei como tudo isso vai terminar. Um dia, você vai ver, vou voltar para você.”
O que me emociona neste disco é isto aí: o Fleet Foxes é uma banda de rock muito competente, muito elogiada (o primeiro álbum esteve em quase todas as listas sérias de melhores de 2008), excelentes músicos, mas que ainda se sente incompleta, imatura. Não saber como tudo vai terminar, no caso, me parece o grande mérito deles – e o maior fator de identificação com um público que também reconhece estar, de certa forma, perdido. Eu e, talvez, vocês.
Helplessness blues, apesar da estrutura engenhosa (é um disco mais trabalhoso que o anterior; duas faixas são suítes à la Brian Wilson, por exemplo), se mostra tão descomplicado, quase singelo, tão ingênuo quanto o anterior. Pode ser resumido como uma homenagem ao folk rock e ao pop psicodélico dos anos 60 e 70, “com ênfase nas harmonias vocais de grupo”, como explica o vocalista.
Antes que o acuse de roubar velhas ideias, o próprio Robin lista as referências: Peter Paul & Mary, John Jacob Niles, Bob Dylan, The Byrds, Neil Young, CSN, Judee Sill, Ennio Morricone, West Coast Pop Art Experimental Band, The Zombies, SMiLE-era Brian Wilson, Roy Harper, Van Morrison, John Fahey, Robbie Basho, The Trees Community, Duncan Browne, the Electric Prunes, Trees, Pete Seeger, and Sagittarius.
O impressionante é que os discos do Fleet Foxes não soam especificamente como obras de algum desses artistas, mas como a massa de lembranças de um fã que poderia passar toda a vida flutuando em músicas antigas. Não estamos diante de um álbum do Midlake, por exemplo, que tenta reproduzir o passado. As letras de Robin são pessoais, comovidas e diretas. O som produzido pelo quinteto – caloroso, aberto – segue essa trilha.
O vocalista conta que muitas das novas músicas foram compostas no período em que foi convidado para abrir shows de Joanna Newsom. Ele teria que se apresentar sozinho e, pór isso, se viu obrigado a criar canções em modelos mais convencionais, que soassem suficientemente fortes ao violão. Esse repertório de trovador dá a Helplessness blues uma qualidade quase démodé de disco-de-songwriter, com versos que merecem ser lidos e decorados pelos fãs. Canções king-size.
A admiração por Newsom acaba aparecendo em faixas quase preciosistas como The shrine, que poderia estar em Have one on me. Robin, mesmo quando não quer, se deixa contaminar pelos experiências que vive, mesmo correndo o risco de parecer um subproduto de artistas já maduros (e é o caso de Newsom). O quinteto que o acompanha também se arrisca: não estamos falando de uma banda que se contenta com alternativas seguras (apesar do foco num gênero muito particular).
Numa primeira audição, Helplessness blues pode parecer um disco que se esforça demais para soar grandioso. Que vai se afogando lentamente no oceano turvo que escolhe para si. É uma impressão enganosa. Robin é um herói ordinário, e é isso que nos aproxima dele. É o que torna essas canções tão humanas e tangíveis – hinos ultrapassados e inseguros (nada a ver com a valentia pomposa de um Arcade Fire, note) para o fim da adolescência.
Ouvir o disco é encontrar alguém muito parecido com quem somos: talvez não tão jovem para voltar correndo para casa, mas ainda não tão velho para compreender com um pouco de lucidez o mundo onde vive. Em Robin descobrimos um amigo distante, um homem também desconfortável com as próprias fotografias. Não é o músico mais moderno, mais ousado, mais sagaz. Mas voltaremos a ele sempre que nos sentirmos um pouco desnorteados – um pouco fora de tom.
Segundo disco do Fleet Foxes. 12 faixas, com produção de Phil Ek. Lançamento Sub Pop. 8.5/10
(e-mail para um amigo que mora longe)
R.,
É você mesmo?
Li o seu e-mail três vezes e ainda não me recuperei da surpresa estranha que é receber notícias suas. Escreva mais, meu velho. Por favor. Escreva hoje.
Quanto tempo mesmo? Ainda tentando calcular. Uns 10, 11 anos, tudo isso? Uma década! Uma década que não nos falamos? Acho que menos. Talvez mais. Lembro de quando você mandou um e-mail contando que estava na Austrália e que a comida era ruim, e que os cangurus saltitavam na rua, brincavam entre os carros. Quando foi? Uns seis anos? Nem consigo fazer as contas.
Pois é, meu amigo: por aqui, a noção de tempo está embaralhada. Você escreveu pra dividir esses problemas, essas aflições todas, e entendo quando você diz que não é capaz de falar sobre o assunto com as pessoas mais próximas, com seus roommates aí de Londres (e agora você está em Londres!). Acho até engraçado (e estou pensando em humor amargo) que você tenha decidido entrar em contato exatamente agora, quando minha vida também se transformou num questionário arrepiante, à espera das respostas breves e exatas que não encontro em lugar algum.
Não deixa de ser uma dessas coincidências malucas e incríveis.
Você não imagina o tumulto que o seu texto provocou na minha vidinha mediana. As suas palavras me atiraram de volta a uma época que sempre encarei com muita tristeza – e, quando lembro, tudo o que vem à minha cabeça é uma cena lenta e interminável, um plano fixo: eu dentro do meu quarto, trancado no apartamento, olhando através da janela do terceiro andar. Mas talvez essa tenha uma imagem que eu tenha polido e lustrado dentro da minha cabeça infeliz durante esse tempo todo. Você me lembrou dos amigos que me acompanharam naquela época e do quanto eu sinto a falta deles, de vocês.
Éramos quatro? Ou cinco? Onde os outros foram parar? Por que nos perdemos uns dos outros? Por que não mantivemos contato? Você diz que o F. está casado e tem uma filha de dois anos, se formou em engenharia e toca numa banda de metal. Li esses parágrafos com os olhos cheios d’água, lamentei profundamente não ter acompanhado essa história. Nós todos, cada um para um canto. Quando aconteceu? Você deve lembrar, trocamos trocentos e-mails (tenho alguns deles aqui, guardados). Mas e aí? Escrevemos o centésimo e-mail e decidimos que era hora de apagar as luzes, ir para casa, engatar a terceira marcha? Foi isso?
Soa patético, eu sei: estou num momento difícil.
Você diz: consegui realizar meus sonhos, tenho 30 anos e agora nada acontece. E eu te entendo. Cara, aos 18 você já falava nesse plano de ir morar em Londres, de fazer cursos disso e daquilo, de se aventurar sei lá onde, mundo afora, ao infinito e além! E agora que você está aí, nessa névoa, engolindo fish & chips, com saudade dos amigos perdidos, triste feito um vira-lata, escrevendo pra um sujeito que não está perto há uma década, que se transformou noutra pessoa (e essa pessoa, acredite, nem sabe mais quem ela própria é). E desabafando sobre detalhes da sua vida que você revelaria quando tínhamos 19! É estranho.
Mas cara: é bom saber sobre você. Dá um certo alívio. Havia um momento da minha vida que eu queria deixar tudo para trás. Hoje, quero recuperar as lembranças e guardá-las comigo. Mas, claro, é triste notar que estamos os dois naufragando. Triste e bizarro – éramos os mais corretinhos, os mais estudiosos do grupo. Tenho certeza: você também não imaginava, lá no passado pré-histórico da nossa adolescência, que nossos 30 anos seriam tão incertos. Everything in its wrong place. Uma ponte quebrada. A sensação de que a vida nem começou, que está tudo indefinido. Nós perdemos, meu amigo: perdemos o sorteio, ficamos com o Futuro Difícil e não com o Futuro Próspero ou com o Futuro Tranquilo. Azar o nosso.
Você não sabe nada sobre os últimos sete anos da minha vida, então aí vai um resumo em fast-forward: por todo esse tempo, namorei a mulher que eu acreditava ser a Mulher da Minha Vida (com maiúsculas), até o dia em que notamos o quão errada estava a relação. Foi quando entendi que ela havia se transformado na Mulher do Meu Passado. Terminamos há três meses, todos os planos descartados, e-mails fofos nas devidas lixeiras virtuais, e hoje tudo o que tenho é um sentimento que não consigo definir. Não é só saudade, não é (definitivamente) amor, não é medo de ficar só, não é melancolia, não é dor de cotovelo (ela está namorando), talvez um pouco de frustração, paralisia sentimental, trauma, cansaço. Talvez outra coisa mais grave.
Entendo quando você diz que se sente despreparado para a vida. Acontece comigo, hoje mais do que nunca. Você diz: fico com a impressão de que não fui educado para perder, que fui mimado pelos meus pais e pelos professores, pelas namoradinhas, por todo mundo. Que todos garantiam que as coisas iriam terminar bem. E que isso era uma mentira, mas uma mentira que nos confortava (ou que pelo menos nos fazia pensar em outros assuntos). Você diz que sofreu muito quando o seu pai morreu, e que tudo em Londres parece artificial e distante, e que você foi tão longe que não sabe mais onde está, e que você cresceu sem se tornar adulto. E agora tem 30 anos. É.
Não sei o que aconselhar (talvez você deva fazer como eu faço: ocupar o tempo, trabalhar, ler livros, ver filmes, escrever, se desgrudar de si próprio). Mas posso contar minha história? Nesses três meses de separação, algo imprevisto aconteceu: quando finalmente decidi parar de me preocupar com o futuro, pequenos fatos extraordinários acabaram me atropelando. Tirei férias para me isolar das pessoas e, para minha surpresa, descobri os melhores amigos do mundo, pessoas que me entendem e gostam de mim (hoje o drama é outro: eles moram longe, em outra cidade, e isso me entristece e perturba).
Parece um conto de fadas boboca, mas não estou exagerando. Eles, os amigos, me ensinaram que posso começar uma outra vida, uma outra rotina, e uma vida mais saudável do que aquela que eu levava com a minha ex-namorada. Antes, eu estava trancado num namoro cinzento, vivendo uma solidão confortável, um tédio aconchegante. Eles, os amigos, não sabem a importância que tiveram nesse processo todo: me ensinaram que ainda respiro, que a minha história segue. Hoje me sinto um pouco otimista, menos aflito.
Não quero ditar uma fórmula: faça amigos e seja feliz. Não. Não acredito nisso. E eu não estou feliz. Livros de autoajuda me fazem cócegas, sério. As coisas são menos práticas, sabemos disso. Você está em Londres há pouco tempo, talvez seja uma questão de adaptação a um ambiente hostil (aposto que nada aí é mais desesperador ou silencioso do que os domingos em Brasília, estou certo?). Pode ser que as coisas mudem aos 35, quando nos descobriremos sábios e lúcidos. Pode ser que o Futuro Difícil vá se transformar subitamente num Futuro Estável, e marcaremos um encontro com os amigos de colégio para mostrarmos a eles que triunfamos. Pode ser que aconteça.
Por enquanto, só sei o seguinte (e mil desculpas pelo e-mail infinito; nesses 10 anos me descobri um escritor prolixo): tudo o que aconteceu de ruim comigo mostrou que não há cordões de segurança me prendendo ao teto do teatro. Pode ser uma noção assustadora, num primeiro momento. Mas estou começando a me entender com ela.
Abraço (e não desapareça),
Tiago.
Superoito contra as fotografias
Sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, repeti mentalmente dez ou doze vezes, depois destravei o porta-retrato, dobrei a fotografia e a escondi na menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, sob as meias e os pijamas que quase nunca uso.
Antes, enfrentei a foto mais uma vez – a última, prometi a mim mesmo. Era uma imagem quase singela: eu a abraçava de lado e ela, um pouco sem jeito, curvava o corpo em direção à câmera; eu sorria timidamente, ela parecia feliz; minha camisa era preta e a dela era colorida, apertada no busto; meu cabelo muito curto e o dela também; fazia sol e o céu brilhava em azul-bebê.
O que aconteceu depois? Minhas fotografias não explicam. Elas flagram apenas os nossos instantâneos de alegria, contam uma história incompleta, me maltratam. Notei, talvez tarde demais, que registrei uma versão idealizada do nosso namoro – e ela, essa distorção agradável da realidade, enfeitou minha estante, preencheu a minha sala. Um tipo bonito de ficção.
Amigos dizem que não devo me arrepender de nada. Que não devo sentir culpa. Que não devo pensar no que poderia ter acontecido. Que não devo recordar os planos que foram abandonados. Que preciso esquecer isso e esquecer aquilo. Mas o tempo passa (são dois meses desde a separação) e não consigo: eu ainda me arrependo de tudo, sinto culpa, não esqueço.
Me arrependo, por exemplo, por não ter sido corajoso o suficiente para encerrar o namoro um pouco antes, quando eu estava em vantagem (e é um jogo). Mas às vezes sinto culpa por não ter tomado todas as providências para consertar a nossa crise, renovar o contrato, curar a doença. Há momentos em que olho para o espelho e duvido da minha sanidade. Por que tanta saudade por algo que me fazia tão mal?
Desde o fim do namoro, que durou mais ou menos seis anos, cancelamos todo e qualquer contato. Para ela, não existo (talvez algum vestígio, algum sinal, mas nada muito concreto). Para mim, ela tomou o rumo para outra galáxia (ainda que, masoquista, eu teime em procurar uma ou outra informação em estrelas distantes). E a nossa história deveria terminar aí. Os créditos sobem e as pessoas vão para casa. Mas descobri que sou o homem preso na sala de projeção, assistindo ininterruptamente ao vazio de uma tela branca.
Será que ela sente o que eu sinto? O que acontece do lado de lá?
A ignorância, dizem, é uma bênção. Estou começando a entender o porquê. É a primeira vez que passo por uma separação tão brutal – foi o meu namoro mais longo – e, por isso, tento manter a concentração e a calma. Ajuda, é claro, não saber o que acontece na realidade paralela onde ela vive. Já escrevi sobre isso. Mas tento, se bem que nem sempre consigo, fabricar a aparência de que estou melhorando, que estou seguindo em frente. O cotidiano vai às mil maravilhas, o tempo é santo remédio e sou um sujeito forte, mais resistente do que eu imaginava. Perguntam se estou bem e respondo: melhor a cada dia!
Tento não transformar o caso num drama, já que há tantas coisas mais importantes acontecendo no mundo.
Mas é uma mentira.
Talvez seja algo que passamos de geração a geração: quem se separa tem o direito a se fazer de órfão, de vítima (mesmo quando não há algozes), ganha passe livre para chorar pitangas e pedir asilo a desconhecidos. Mas quando o desespero dessa fase inicial perde o impacto, quando o tempo passa e a performance começa a parecer corriqueira aos olhos da plateia, o processo entra numa etapa ainda mais dolorosa, já que solitária.
Hoje sou eu e as fotografias. Eu contra as fotografias. Elas me entendem, me denunciam mesmo quando tento fugir de todas as memórias que elas ressuscitam. Eu as escondo (as fotos e as memórias) para que eu não as encontre. É um esforço inútil. Procuro a menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, para obrigar que, mais cedo ou mais tarde, eu esqueça todas essas lembranças que permanecem, contra a minha vontade, ainda vívidas.
Elas acabam sumindo? Se sim, cedo ou tarde? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá? Como a história acaba? Existe redenção? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá?
Devemos ser realistas, pelo menos por um parágrafo: percebo que, como aconteceu com a temporada mais terrível do meu namoro, minha reabilitação será uma história longa, secreta e desinteressante – um espetáculo enfadonho de tão repetitivo, que inspira textos muito semelhantes aos que já foram escritos; que fracassa antes de entrar em cartaz.
Os discos da minha vida (9)
Mais um capítulo da saga sobre os discos que governaram a minha vida — esta semana, em versão ansiosa, prematura. Comentários breves e irresponsáveis (escritos entre o plantão de eleições e o início das minhas férias) sobre dois álbuns que, por coincidência, me levam a uma época em que eu era muito novo e ingênuo.
Amanhã (se tudo der certo) chego ao Festival do Rio. Devo escrever posts curtos sobre os filmes, mas adianto que será uma semana corrida. Pretendo ver muita coisa e, por isso, não juro fidelidade ao blog. Mas paciência: estarei de volta na semana que vem.
Lembrando: os discos deste ranking não são todos obras-primas (o critério é sentimental, totalmente duvidoso), mas garanto que eles soam, no mínimo, curiosos. Faça o download e concorde comigo.
084 | Behaviour | Pet Shop Boys | 1990 | download
Eu era um garoto de 11 anos, levava uma vida muito agradável e as minhas músicas preferidas ainda tocavam no rádio e apareciam na MTV. Qualquer hit me satisfazia — mas lembro que este disco do Pet Shop Boys (sejamos fiéis à realidade: era uma fita cassete) me mostrou um traço melancólico do pop que me surpreendeu como algo totalmente novo. Mais tarde, descobri que era um disco muito forte sobre temas que eu ainda não compreendia em 1990. Mas o que guardo dele é aquela sensação inocente, pré-adolescente: existe algo errado com essas melodias tão perfeitinhas. Top 3: Being boring, How can you expect to be taken seriously?, So hard.
083 | Under a blood red sky | U2 | 1983 | download
Este é um disco importantíssimo para mim, talvez um dos mais emocionantes da lista, e por um motivo totalmente pessoal: foi o único álbum que eu gravei numa fitinha cassete para uma viagem de fim de ano, em 1993, em que (vejam que meiguice) passei dias incríveis com a primeira garota por quem me apaixonei. Era uma época em que, para mim, tudo parecia possível: meus desejos se realizavam integralmente, não havia frustrações. Hoje percebo o quanto essa gravação do U2 — interpretada por um Bono Vox que parece prestes a dominar o planeta — ecoa aquele meu sentimento otimista de que, no fim, tudo daria certo. Não foi bem o que aconteceu, mas é uma boa lembrança. Top 3: I will follow, Sunday bloody Sunday, Gloria.
Interpol | Interpol
Para mim, escrever sobre o novo do Interpol neste momento é uma espécie de tortura. Não que o álbum dê náusea ou enxaqueca. É que a discografia da banda pontuou todo o meu namoro. E essa história, vocês sabem, acabou de acabar.
Deveríamos pular este post, eu sei. Mas é só um texto de blog, não é? Então vamos.
Turn on the bright lights, de 2002, foi a trilha do período que antecedeu o namoro. O início antes do começo. Ouvimos esse disco no carro na noite em que nos beijamos pela primeira vez. Lembro que chovia e as pistas estavam escorregadias. Lembro também que a sonoridade do álbum — misteriosa aos nossos ouvidos — ecoava as descobertas daqueles dias. Tudo parecia novo e excitante, mas também um tanto cifrado, como no primeiro parágrafo de um bom livro.
Antics, de 2004, embalou a nossa primeira temporada juntos e (talvez um pouco por conta disso) é o meu preferido. Um álbum mais enérgico, um pouco mais generoso do que o anterior; uma banda mais apaixonada pelo som que consegue produzir. E um disco (desculpe o palavreado) teso.
Em Our love to admire, de 2007, algo saía dos eixos. O disco indicava cansaço. Comodismo. Desinteresse. Isso e todos os outros venenos que vão corroendo um relacionamento longo. Ainda assim, nos apegamos ao que ele (e o namoro) preservava dos bons tempos: espasmos de vigor (The Heinrich maneuver, Mammoth), de vez em quando paixão.
Depois assistimos a um show deles — e, como os discos, isso nos serviu de espelho. Vimos uma banda descendo a ladeira, lutando para manter uma química que parecia esgotada, inviável. Algo deprimente (mas seguimos em frente mesmo assim).
No início deste ano, o Interpol passou pela pior das crises: um dos integrantes, o baixista Carlos D, preferiu pedir a conta. Nós, inconscientemente, os acompanhamos. Nos distanciamos, nos perdemos. E, também por coincidência, o namoro terminou na semana em que o quarto disco do Interpol vazou na internet. Era o fim.
Comecei a ouvir o álbum nos dias seguintes à separação. Uma experiência difícil, é claro, mas também reveladora — que me explicou um pouco sobre as relações longas que, a todo custo, tentamos manter com as pessoas e com as bandas de rock que amamos.
O disco mostra três pessoas que talvez não deveriam estar ocupando o mesmo palco. Mas que ainda o divide — possivelmente a duras penas. Como em Our love to admire, as canções se arrastam, como se interpretá-las exigisse esforço. Mas, ao contrário daquele disco, não se nota um único estalo de entusiasmo. Trata-se de um longo telefonema de despedida — que demora 45 minutos e 53 segundos para terminar.
É também uma tentativa de acertar o passo, de remendar a relação, de simular um recomeço. O tipo de ato desesperado (mas legítimo) que não costuma dar certo. Não culpemos os apaixonados: depois de romper com a gravadora que lançou Our love to admire, o Interpol voltou ao antigo selo (a Matador Records) como quem reata com uma ex. É compreensível. Somos todos uns fracos.
Mas, nesse tipo de flashback, algo sempre se perde. No caso, falta ao Interpol a vivacidade dos primeiros discos, o desejo de tomar o mundo pela cintura, aquela sensação intensa de segurança que nos toma quando o nosso desejo é retribuído. O que sobra é uma banda mais adulta (inevitável), cheia de sequelas (também inevitável), mais melancólica e um tanto amedrontada com o mercado, com os fãs, com a música (o disco anterior foi rejeitado por parte dos críticos, e isso sempre deixa alguma marca).
Quando uma banda decide usar o próprio nome para apelidar um álbum, deixa a sugestão de que escreveu uma obra capaz de resumir toda uma trajetória. Para o Interpol, parece apenas um esforço de autoafirmação. Eles se olham no espelho e dizem: somos o Interpol, sobrevivemos e estamos de pé.
E certamente são. Há marcas neste disco que partencem a eles, apesar de todas as heranças. Muitas das canções, como Lights e Always malaise, vão se erguendo aos poucos para explodir em clímaxes que soam como os ensaios de uma banda cover do Pixies interpretando canções do Joy Division (Safe without, uma das melhores, é Frank Black sob efeito de propofol). E isso é Interpol.
Mas de pé? Não estão. Mesmo em canções tocantes como Memory serves e Success (que poderiam ter entrado em Antics), só consigo imaginar um Paul Banks de pijama, se arrastando no quarto depois do quinto analgésico, se recuperando de uma terrível dor de cotovelo. Talvez a fraqueza toda esteja na produção, da própria banda, que esvazia as canções e deixa todos os esqueletos à mostra. É um mar de ossos.
E são boas as canções, em grande parte mais elaboradas do que as do disco anterior. Memory serves é um exemplo de como a banda elegantemente apresenta as faixas: a cada minuto uma surpresa sutil, um desvio de rota, um elemento alienígena que engrandece os arranjos. Sedução lenta.
Mas como consertar o que está quebrado? Nenhuma bela canção esconde o quão corrompida está essa banda. Daí a tristeza que sinto ao ouvir este disco: ele é o retrato de um romance que perdeu o pulso; de um caso de amor que agoniza (a capa, aliás, explica tudo). O disco transpira a frustração de quem tenta resolver um impasse e não consegue. De quem quer voltar ao começo e não pode.
Uma tentativa ingênua, estúpida – mas que, no entanto, acaba soando tão genuína quanto as nossas.
Quarto disco do Interpol. 10 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Matador Records/Soft Limit. 6/10
Os discos da minha vida (3)
Voltamos a apresentar, após um breve intervalo, o ranking sentimental dos 100 discos que viraram a minha vida pelo avesso e não foram embora na manhã seguinte. Não me venham com cobranças de coerência ou bom senso – não desta vez, ok? Com vocês, meus amigos, mais um capítulo de uma incrível saga que começou há duas semanas (possivelmente num dia em que bati a cabeça na porta ou comi cereal estragado) e termina nem-deus-sabe-quando. Voilá.
096 | Summer in Abaddon | Pinback | 2004 | download
Um álbum que, desde 2004, ouço semanalmente, religiosamente. É um mantra. Contém memórias do meu namoro (que se segura firme e forte) e de um dos melhores períodos da minha vida. E talvez nem seja um disco muito bom (mas garanto que ele é, no mínimo, intrigante). A arte do Pinback, aparentemente muito simples (construir, desmontar e reconstruir pequenos fragmentos de melodias, riffs e solos), sempre me impressionou por parecer exata, irretocável. Ouço os discos como quem admira uma cidade de miniaturas onde cada prediozinho se encontra no único lugar onde poderia estar. Mas Summer in Abaddon é especial já que acrescenta um elemento irracional a essa matemática: é como se um rio de lava derretesse lentamente essa cidadezinha e nos devorasse junto. Desta vez, a emoção venceu. top 3: Fortress, Bloods on fire, AFK.
095 | #1 Record | Big Star | 1972 | download
Quando comecei a juntar as peças desta lista, prometi a mim mesmo que não incluiria tantos discos de power pop. Mas cá estou me traindo, e logo de começo: não há como subestimar esse tipo de belezura (que, especialmente no lado B, soa tão pungente quanto os momentos mais pungentes dos Beatles e do Beach Boys, acredite em mim). Mesmo quando a belezura em questão me leva a um período terrível, em que eu era um rapazinho solitário que ficava no meu quarto remoendo amores platônicos por meninas impossíveis. That 90’s show. Mas passou. Hoje, ele soa como pop perfeito sobre sentimentos por vezes sangrentos: amor adolescente, nostalgia, pequenos prazeres, decepções e, claro, pôr do sol. “É ok olhar lá para fora”, eles avisam. Siga o conselho. top 3: Thirteen, Watch the sunrise, Feel.
Os discos da minha vida (1)
Os discos da minha vida, parte 1. Uma série de posts que começa hoje e só termina pra lá do fim do mundo. Nem desconfio quando.
A ideia é muito, muito simples: 100 discos que marcaram a minha vida, 2 por semana, quando possível com links para que você os ouça.
Não é, portanto, uma lista com a pretensão de elencar os “melhores discos de todos os tempos” ou os “discos mais influentes” ou os “discos para você ouvir antes de morrer” ou os “discos que mudaram o mundo”. É apenas um longo ranking de álbuns que se confundem com algumas das minhas melhores (e às vezes piores) lembranças.
Um top 100 muito pessoal, cheio de idiossincrasias que vão irritar quem entende um pouquinho de música pop. Francamente: é uma listinha insignificante.
A maior parte dos discos vem dos anos 90, a época em que comecei a ouvir música compulsivamente. Mas é apenas o ponto de partida para uma viagem mais extensa (espero que vocês acompanhem com um pouco de paciência).
Tentarei ser breve nos comentários, até para que isto aqui não se transforme numa sessão aborrecida de autoanálise. Aviso que os textos explicam pouco sobre os álbuns e, no máximo, tentam recuperar a minha relação com esses discos. Não espere tratados. E é uma questão delicada, afinal de contas: não costumo ouvir estes discos, até para não ser tragado por terríveis flashbacks.
Mas sugiro que você os ouça. São bons.
100 | Grand Prix | Teenage Fanclub | 1995 | download
Hoje soa como o álbum de power pop mais direto que se fez: um refrão, um riff, coros agradáveis, emoções frágeis, alguma tristeza e quase nada mais. Quase uma cartilha. Lá nos anos 90, foi um disco que me perseguiu quase contra a minha vontade. Nas primeiras audições, não levei muito a sério: achei aguado e choroso (o oposto do grunge, por exemplo). Eu tinha 15 anos. Mas cresci e Grand prix foi crescendo junto comigo, como um amuleto. “Este sentimento não vai embora”, eles avisavam. Não foi. top 3: Don’t look back, Sparky’s dream, Neil Jung.
099 | Ten | Pearl Jam | 1991 | download
Eu juro que não me lembrava disto: a estreia do Pearl Jam sempre começou com essa atmosfera pseudo-oriental que mais tarde seria aplicada a discos do Kula Shaker e da Alanis Morissette? Mas taí: esse tipo de excesso era uma característica da onda grunge que o Pearl Jam soube aplicar com despudor e sisudez. E, saudosismo à parte, ainda considero o melhor momento deles. Menos aventureiro do que No code, mas gloriosamente single-minded (não consigo encontrar outro termo). Eu tinha a fita-cassete e admito que preferia o lado B (a começar por Oceans, ainda tocante). Hoje acho que eu ficaria com lado A, que tem o cheiro das minhas blusas de flanela. top 3: Oceans, Black, Jeremy.
2 ou 3 parágrafos | Os mercenários
São dois filmes dentro de Os mercenários (2/5), um muito melhor do que o outro. No primeiro, uma gangue de justiceiros veteranos bebem, jogam dardos, lustram as motocicletas, fazem tatuagens e ouvem blues-rock na jukebox de um boteco até ajeitadinho. No segundo, alguns desses marombeiros-velhos-de-guerra tomam um avião para a América Latina e explodem uma ilhota miserável.
O filme do boteco tem clima de churrasco-com-cerveja, reunião de colegas de trabalho. É o que Stallone faz desde Rocky Balboa: revê o certo passado de uma certa distância – uma distância às vezes até melancólica. Mas existe a obrigação de conciliar essa autoanálise com o filme de ação oitentista que esperam dele. É aí que Os mercenários começa a se aproximar mais da truculência maçante de Rambo do que da franqueza de Rocky.
E é um filme assumidamente oportunista (o título em português é piada pronta; o original, The expendables, sai melhor ainda), que tenta se justificar pela quantidade de ex-astros de ação que consegue reunir (Van Damme, mais sensato do que eu imaginava, recusou o convite). A cena de Willis, Stallone e Schwarzenegger, que deve durar uns cinco minutos, é uma entre tantas que provocam mais constrangimento do que saudade. “Você perdeu uns quilinhos”, repara Arnoldão. “E você ganhou alguns”, diz Sly, cruel. Eu estive lá, nos anos 80. Eu tinha videocassete. Eu vi os filmes. Eu gostava de alguns deles. Mas saudosismo, meu amigo, tem limite.