O Iluminado

Os filmes da minha vida (4)

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Neste capítulo da série épica, dois pesadelos: um deles assombrou a minha infância (quando eu praticamente só via fitas de terror), o outro amaldiçoou a minha pré-adolescência (quando eu praticamente só lia livros do Stephen King). São filmes que não revejo há uns 20 anos, e que foram picotados e remontados pela minha imaginação em dezenas de”special editions”; portanto, por favor, perdoem as imprecisões.

Também peço humildemente que vocês deem um desconto a este blogueiro, que havia prometido postar os capítulos desta saga às segundas-feiras e, ó-vida!, não está cumprindo a palavra. Pontualidade é, sim, o meu forte – mas temo que, nas próximas semanas, esta lista seguirá inconstante, cambaleando na programação do blog. Em contrapartida, prometo (e lá vamos nós com outra promessa!) textinhos sobre os filmes que eu vir na Mostra de SP. Se bem que… Vocês curtem esse tipo de coisa, amigos?

094 | A coisa | The stuff | Larry Cohen | 1985

Um dos filmes inesquecíveis da minha infância, esta sandice B sobre um marshmallow assassino talvez tenha colaborado enormemente para formar meu gosto por fitas de fantasia deliciosamente absurdas, como que escritas pelos meninos que se sentam no fundo da classe, nos momentos entediantes das aulas de biologia e de matemática (coming soon: Fome animal, de Peter Jackson). Em A coisa, as patetices da trama certamente desvelam um comentário arguto sobre a nossa sociedade de consumo, mas não percebi nada disso quando eu tinha nove anos de idade: o que ficou foi a imagem da sobremesa cremosa (quem resistiria a essa doçura?) que engole os personagens antes que eles a engulam. Uma tolice excessivamente calórica. E um daqueles filmes que me fizeram acreditar que o cinema pode tudo.

093 | O iluminado | The shining | Stanley Kubrick | 1980

Confissão constrangedora: quando assisti a O iluminado, eu mal sabia quem era Stanley Kubrick. Minha referência era Stephen King, o escritor preferido dos meus 11 anos de idade. Foi King quem me apresentou a filmes como Christine – O carro assassino, Conta comigo e Salem’s Lot e It, entre tantos outros. O que eu procurei em O iluminado foi uma adaptação fiel ao livro, apenas isso. O que encontrei superou de tal forma as minhas expectativas que, aos poucos, fui me afastando de King e me aproximando de Kubrick – uma substituição que colaborou para o início da minha vida de cinéfilo. Guardo comigo muitas cenas do filme, por tê-las visto novamente via YouTube ou em programas de tevê. O que ficou com mais força, no entanto, foi a sensação de isolamento e alienação que vai corroendo o personagem principal. O desespero parecia verdadeiro, possível (pouco tempo depois de ter visto o filme, sonhei que estava preso nos corredores de um hotel) – e isso, naquela época, eu não conseguia encontrar em outros filmes de horror.

An empty bliss beyond this world | The Caretaker

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Na época em que eu, minha mãe e minha irmã começamos a perceber que meu padrasto estava doente, conversar sobre o assunto era abrir a porta para uma sala assombrada. Não nos parecia agradável entrar naquele ambiente — por isso, às vezes ficávamos em silêncio, escondidos num canto do corredor.

Hoje, três anos depois, já conseguimos falar na doença sem evitar as partes difíceis. Aprendemos (ainda não sei como) a lidar com a ideia de que nossos dias seriam os frames de uma cena (talvez longa) de despedida. O importante é que essa não nos parece uma história tão dramática.

Talvez porque doenças degenerativas — como é o caso do Alzheimer — nos obriguem a enfrentar a vida no que ela tem de inevitável. Lá em casa ficou mais claro, ficou ainda mais óbvio, que vamos todos morrer. E possivelmente com sofrimento.

Acontece que, agora, já pergunto ao meu padrasto sobre a sensação de perder o controle sobre a memória e notar que ela se desintegra. Então ele explica que setores do cérebro implodem como que aleatoriamente, e não em definitivo. Às vezes ele dá conta de preservar imagens da infância, mas às vezes não. Há dias em que, na hora do almoço, já esqueceu de todas as atividades da manhã — mas segue recordando o nome de colegas de trabalhos que não o veem desde 1991.

Nas primeiras fases, a doença tem um aspecto inusitado (e terrível): ela ataca a vítima, mas permite que ela — a vítima — perceba com muita clareza que o ataque está em curso. Ela — a presa — nota que está perdendo a memória, e que o próximo lapso pode ocorrer a qualquer instante. Quando tenta buscar uma determinada lembrança, meu padrasto às vezes vai de encontro a uma muralha branca. Depois tenta se convencer de que não existe nada atrás dela.

Neste oitavo disco do Caretaker, o inglês James Leyland Kirby tenta representar as sensações de uma pessoa que se esforça para lembrar de imagens do passado. A perda da memória é um dos temas recorrentes no projeto do músico, iniciado como uma espécie de reflexo desfocado para a cena do baile de O iluminado (o colapso de Jack Torrance é a referência que Kirby sempre tira da manga).

A pergunta do Caretaker vem e volta no looping eterno, já que não encontra nunca uma resposta a direta, que pode ser aplicada a todas as situações. Como o nosso cérebro captura e reconstrói as lembranças? Enquanto ouço o disco, me vejo fazendo essa pergunta ao meu padrasto (e ele responderia com um grunhido; ainda não aceita a doença).

Como num álbum de pós-rock, os títulos das músicas de An empty bliss beyond this world parecem complementar o sentido das canções: “Momentos de suficiente lucidez”, “O grande mar escondido do insconsciente”, “Um relacionamento com o sublime”, “Eu sinto como se estivesse desaparecendo” e, meu preferido, “Cavernas mentais sem luz do sol”.

Mas este não é um álbum de pós-rock. Em tese, é um disco de laboratório: Kirby fragmenta os samplers de velhas canções de jazz dos anos 1930 e 1940 para simular o que há de desordenado (e assustador, estranho, às vezes sublime) na atividade do cérebro. Na prática, no entanto, esse delírio não soa como uma experiência desapaixonada: o disco pode ser ouvido como uma coleção de velhos discos de vinil, arranhados e tortos, com melodias de piano e sopros que alegravam os salões num passado que nos parece longínquo, perdido.

É como se esses acordes circulassem entre as paredes do salão de O iluminado — um espaço tão nostálgico quanto assombrado, que pode muito bem representar o cérebro de um homem atormentada.

O som produzido por Kirby soa familiar — na primeira audição, fiquei com a impressão de já ter ouvido todas aquelas harmonias num filme do Woody Allen — e, ao mesmo tempo, insano, “errado” (como num filme de David Lynch), já que o músico polui as gravações originais com quebras de ritmo, pausas abruptas, ruídos de vinil, eco. Algumas músicas terminam na metade da duração da faixa, recomeçam logo em seguida e são encerradas no tranco. Quando estamos finalmente nos apegando a elas, desaparecem.

Há faixas que passariam como música ambiente para restaurantes chiquérrimos e retrô, como All you are going to want to do is get back there. E há faixas fantasmagóricas e hostis, como I feel as if I might be vanishing, que talvez remetam às lembranças inacessíveis, às portas que estão trancadas para sempre.

Outro dia mostrei trechos do disco para o meu padrasto. Ele sorriu quando expliquei as intenções de Kirby. Meu velho, um fã de Pink Floyd, adora álbuns ambiciosos. Ouviu com atenção. Acho que se aborreceu com algumas repetições. Notou um “barulho irritante”. E foi só.

Kirby se inspirou num estudo que mostra que pacientes com Alzheimer têm maior facilidade de lembrar informações quando elas são inseridas num contexto musical. Meu padrasto não lembrou das músicas do Caretaker (cinco minutos depois de ter ouvido o disco, era como se a experiência não tivesse acontecido), mas taí um belo projeto: criar obras de arte que resistam à degeneração do nosso corpo; e que permaneçam por um pouco mais de tempo quando nossas lembranças começarem a desaparecer.

Oitavo disco do The Caretaker. 15 faixas, com produção de James Kirby. Lançamento History Always Favours the Winners. 81