O homem que não dormia

cine | Festival de Brasília

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Acontece o seguinte: talvez vocês não tenham notado, mas esta é a semana em que digo adeus ao mundo e me isolo numa bolha de cultura e diversão chamada Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

A mostra termina segunda-feira. A partir daí, finalmente vou ter um tempinho para jogar Wii, meditar, comer sorvete sem lactose, atualizar este blog e escrever umas poesias (mentira, não escrevo poesia). Este texto que vocês estão lendo agora, sério!, nunca esteve em meus planos. Na verdade, não sei o que ele faz aqui.

Minto: sei sim.

Para não deixar este blog na mão, fiz de conta que ia ao banheiro e, nos cinco minutos em que consegui me esconder debaixo da mesa, escrevi estes pequenos comentários sobre os longas que foram exibidos na competição. A ideia é completar este post até segunda-feira, mas não faço a menor ideia se vou conseguir empreender uma nova fuga.

Antes de começar com os parágrafos irresponsáveis de sempre, explico aos mais estressadinhos que eu não entendo absolutamente nada de cinema e que este blog é um lugar ameno de convivência, terapia e entretenimento, nada além. Ok? A cotação adotada pelo blogueiro vai de 1 candango (solitário, triste) a 5 candangos (e aí é tanto candango que dá pra fazer uma festa).

Dia 8

Premiação | Hoje ganhou o Candango de melhor filme e mais quatro troféus oficiais: atriz (Denise Fraga), roteiro, direção de arte e fotografia, além do prêmio da crítica. Meu país ficou com a outra metade do coração do júri (sabe-se lá por que razão, o mundo é um mistério): direção, ator (Rodrigo Santoro), trilha sonora e montagem, além do prêmio do público. Vou rifar meu coração foi ignorado. Hiper mulheres, O homem que não dormia e Trabalhar cansa saíram com um prêmio cada (som, ator coadjuvante, atriz coadjuvante, respectivamente). Foi uma premiação previsível e medrosa, mas que me parece ter acertado ao escolher um longa completamente inédito – a maior polêmica da edição foi a queda do critério de ineditismo na seleção dos filmes. Eu premiaria Trabalhar cansa, mas entendo as razões do júri: o filme já passou em Paulínia e estreou no circuito. Próximos capítulos: certeza que a exigência de ineditismo vai voltar em 2012.

Dia 7

Vou rifar meu coração | Ana Rieper | 2 candangos | Sem querer posar de rabugento (mas já posando), sinto informar-lhes que minha opinião sobre este documentário vai na contramão da euforia linda que contagiou a arquibancada durante a sessão do Cine Brasília, ontem à noite. O que vi foi apenas um pequeno documentário sobre grandes temas (o amor intenso/louco, a música cafona e a forma como esses dois assuntos se relacionam na vida das pessoas), que passa de raspão em tudo o que tenta observar. Dois filmes em um: um doc “coutiniano”, com depoimentos sempre extravagantes e engraçados (discutível ou não, vamos combinar que é um recurso manjado), e miniperfis de cantores do “brega”, que tentam se defender contra a “MPB de Ipanema”. No mais, parece procurar personagens que se adaptem a uma determinada tese. Funciona, é um arraso, levanta a torcida, mas honestamente? Não me comove.

Dia 6

Meu país | André Ristum | 1 candango | Um melodrama genérico, perfumado, multiplex-friendly — elenco famoso, conflitos familiares à la Manoel Carlos, produção bem acabada — que parece um tanto deslocado dentro do Festival de Brasília. Talvez porque não dependa do festival da forma como outros filmes dependem (visibilidade ele terá, de uma forma ou de outra). Ou talvez porque pareça um produto asséptico, criado para cumprir certas ambições comerciais — e a tela do festival, pelo menos no que tem de mais romântica, é lugar de sonho e criação, não de negociações financeiras. Dito isso, espero que o filme saia daqui sem prêmios, porque não lembro qual foi a última vez em que vi um drama brasileiro tão posudo-e-oco, tão enfeitiçado por imagens “bonitas” e por um sentimentalismo 2D (tá, lembro sim: À deriva, de Heitor Dhalia). Não vou nem começar a discutir o título do filme (o país do personagem é o Brasil ou a Itália, já que o filme tenta simular o visual de uma produção-clichê da RAI Internazionale?), mas, resumindo tudo, percebo que todos os problemas do filme estão concentrados no personagem de Cauã Reymond — uma caricatura sarada, sem nada dentro.

Dia 5

O homem que não dormia | Edgard Navarro | 2 candangos | Se Eu me lembro foi comparado ao Fellini de Amarcord (1973), o segundo longa de Navarro possivelmente vai pagar o preço por exagerar nas referências ao Pasolini de Os contos de Canterbury (1972) — é tão desfocado, desembestado (e autoindulgente) quanto. O que Navarro faz, em síntese, é esgarçar a segunda metade do longa anterior numa espécie de filme-delírio, flutuando sem rumo nos sonhos e nas lendas de um vilarejo; e mais compromissado com personagens que com uma suposta trama (que não sei se existe, até porque não consegui entender quase nada). Sigo me impressionando com a naturalidade como o diretor sintoniza o que chama de “inconsciente popular” com total despudor — se eu começar a descrever as cenas mais atrevidas do filme, ele vai ficar parecendo uma pornochanchada de baixo orçamento (tá, vou entregar uma: dois velhinhos cegos se masturbam admirando a lua, e a câmera dá um close nas partes baixas dos atores).

Dia 4

Hoje | Tata Amaral | 3 candangos | Este aqui me parece uma versão invertida de Um céu de estrelas (1996): aquele filme era o negativo da foto, este é a foto. A encenação toda ecoa aquele projeto, de propósito: novamente, o que se vê é o embate “em tempo real” entre um homem e uma mulher dentro de um espaço fechado (um apartamento). Só que, se aquela era uma narrativa agressiva, cheia de espasmos e baques — uma barata tonta dentro de um vidro de maionese –, esta aqui muda todos os móveis de lugar e opta por silêncios, cômodos vazios, uma câmera que desliza suavemente no corredor, uma montagem que parece abrir o cenário em vez de fechá-lo e (cereja do bolo) por personagens que se encontram de forma subjetiva, imaterial (mas tudo filmado de forma realista, à exceção de algumas projeções nas paredes). Pena que todo esse esforço de dramaturgia sirva para envolver um clichê cinematográfico: cá estão eles novamente, os bons e velhos fantasminhas do passado.

Dia 3

Trabalhar cansa | Juliana Rojas e Marco Dutra | 3 candangos | Tudo que você precisa saber sobre o filme está na cobertura de Cannes escrita por Eduardo Valente. Acrescento apenas que, apesar de ter admirado a tese sobre relações de trabalho no Brasil, acredito que os diretores não conseguiram converter nem metade dessas reflexões em imagens verdadeiramente potentes. No pôster, o trecho de uma crítica anuncia que o longa é uma mistura de “O iluminado com Vittorio de Sica”. Pois bem: as tentativas de suspense me pareceram nulas (não me lembro de ter me entediado com o filme do Kubrick) e o comentário social um tanto friorento (ainda que o desfecho bestial bata com uma força que não nos deixa após a sessão). Sem querer ser inconveniente: quanto mais este filme me lembrava Sonata de Tóquio, mais eu percebia o que faltava nele – uma certa aura visual singular, quase sobrenatural mesmo, que separa os grandes filmes das tentativas de refletir sobre essa ou aquela questão importante. Ainda assim, é o melhor filme que vi no festival este ano (por isso, ganha foto no alto do post).

Dia 2

As hiper mulheres | Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro | 3 candangos | O documentário nos mostra o tanto que já aprendeu (e se ensinou) no projeto Vídeo das aldeias, em que os índios filmam as próprias histórias. No caso, o que se vê é muito mais interessante do que um filme “de índio, sobre índios”: temos três diretores, de diferentes formações, observando e registrando um ritual. Isto é: o resultado deve inspirar dezenas de textos sobre como se dá esse encontro entre o ponto de vista do índio e do “forasteiro”. Não vou arriscar nada do gênero (nem tenho tempo para isso), mas o que mais me agradou no filme é como se tenta despir o tema de qualquer embaraço, de qualquer necessidade de “dar o devido respeito”. Daí que as cenas em que as índias “atacam” os homens de madrugada, quase obrigando que eles transem com elas, ou quando discutem sobre o tamanho do pênis dos colegas de tribo, me dizem muito mais que mil documentários etnográficos.

Dia 1

Rock Brasília – Era de ouro | Vladimir Carvalho | 2 candangos | Na sinopse, virá escrito: este é um documentário sobre as três bandas principais que marcaram o rock brasiliense nos anos 1980, Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. E o filme é isso: um eficiente especial da MTV. E pena que só isso, porque ele é dirigido por um ótimo cineasta que sugere, dentro do próprio filme, vários “outtakes” que poderiam ter sido alargados, para nosso deleite audiovisual (as relações entre pais/filhos na geração de Renato Russo, a forma como a cidade atuou na formação dessas sensibilidades musicais, e por aí vai). Percebo muitos esboços de bons filmes dentro deste devedezão oficial, polido e muitíssimo bem comportado. E aí é possível questionar se houve mesmo equilíbrio entre os desejos dos produtores e as obsessões de Vladimir. Porque, se sinto falta de alguma coisa aqui, não é de rock ou de Brasília, mas do cineasta que assina o filme.