O futuro
cine | Toda forma de amor
Admito que bateu calafrio quando vi o nome de Miranda July (brr!) no topo da lista de agradecimentos deste Beginners. Isso porque eu havia passado praticamente o filme inteiro criando conexões mentais (nada complexas, aliás) entre os personagens de Mills a os tipos inventados por July. Todos eles vivem num mesmo mundo-tumblr, onde reinam a autopiedade, o narcisismo (disfarçado de melancolia) e as fofurices visuais (importadas de anúncios de tevê e de filmes do Jeunet). Eu só recomendaria este drama indie a quem gostou de O Futuro — e não só porque Beginners tem um cachorro que pensa. O bichinho é menos enfático, no entanto, que o gato deprê de Miranda.
O personagem mais interessante, Hal Fields, é um senhor de 78 anos que, após a morte da esposa, decide se assumir gay. Quem o interpreta, dignamente, é Christopher Plummer. Mas o diretor está mais interessado em outro personagem: o filho de Hal, Oliver, um cartunista especial, único-no-mundo (Ewan McGregor), que tenta superar um momento muito difícil da vida e acaba se apaixonando por uma mulher especial, única-no-mundo (Mélanie Laurent). Os dois são deprimidos e deprimentes, porém adoráveis (aos olhos do diretor e deles próprios).
O filme anterior de Mills, Impulsividade, contém os mesmos acessórios vazios que listei no primeiro parágrafo. O protagonista também sente pena de si próprio, e passa quase toda a trama chupando o dedão.
(Beginners, EUA, 2011) De Mike Mills. Com Ewan McGregor, Christopher Plummer e Mélanie Laurent. 105min. D+
mostraSP | dias 1, 2 e 3
Era uma vez na Mostra de São Paulo…
Pois bem, folks: aqui começa o meu já tradicional (e tradicionalmente desajeitado) diário da Mostra Internacional de Cinema de SP, que começou sexta-feira e termina em 10 dias.
Este ano, o desafio é o mesmo de sempre: assistir a uma quantidade quase torturante de filmes sem cair no pecado de abandonar a programação para me dedicar a, digamos, jardinagem – ou a uma maratona de stand-up comedies. Os filmes ruins drenam a minha vontade de viver. Já os bons, vocês sabem…
Estamos no quarto dia de Mostra. Infelizmente, este é o primeiro post sobre o assunto. Não deu tempo para começar antes. Sou um sujeito ocupado, mesmo quando de férias.
A seguir, vocês encontram resumos apressados sobre os filmes que vi até aqui. Alguns parágrafos são maiores (e mais generosos, e mais sensatos) que outros. Para facilitar o acesso a meu gosto tão peculiar, aplico aos comentários uma cotação que vai da letra D (de, digamos, doente) a A+ (de, digamos, absurdamente bom).
Para reviews instantâneas, escritas logo após as sessões, recomendo uma visita ao meu Twitter. Mas perdoe a bagunça, ok?
The day he arrives | Bukchon banghyang | Hong Sang-soo | A | Talvez num aceno para o Rohmer de Minha noite com ela (ou ao Woody Allen de Manhattan), Sang-soo usa desta vez uma fotografia em branco e preto que transforma cada cena numa espécie de postcard sentimental, de uma beleza quase falsa (veja foto acima). Uma atmosfera muito apropriada, portanto, para narrar o encontro de um homem com as memórias (boas e ruins) que associa à cidade onde viveu no passado. É melancólico e gentil como uma velha canção de Sinatra, mas também tem algumas das conversas-de-bar mais engraçadas que o diretor já filmou. Não está entre os meus preferidos dele, mas é perfeito para os iniciantes na filmografia de um cineasta que faz sempre o mesmo grande filme.
Isto não é um filme | In film nist | Mojtaba Mirtahmasb e Jafar Panahi | A | A existência deste filme já parece algo milagroso: confinado dentro de casa, em prisão domiciliar, Panahi mostra quase tudo o que precisamos saber sobre a vida no Irã. É o longa mais agressivamente político do cineasta, e, ainda assim, pode ser lido como um romance minimalista de Kafka. Também é, no entanto, um tanto enganoso: a encenação que, num primeiro momento, dá a ideia de um registro espontâneo (“é o que tem pra hoje!”), aos poucos se mostra mais autoconsciente do que imaginávamos. Daí descobrimos que estamos metidos num dia de fúria, que começa numa mesa de café da manhã e termina em chamas. Não só um filme, mas um filmaço.
Era uma vez na Anatólia | Bir zamanlar Anadolu’da | Nuri Bilge Ceylan | B+ | É um pequeno conto policial ampliado às paisagens vastas de um western e à dimensão de um livro de 600 páginas. O projeto de Ceylan é muito preciso (e nada muito singular): dilatar a trama para ressaltar a banalidade do cotidiano. O que não me convence é a forma como o diretor usa os personagens para extravasar um certo sentimento de mal estar em relação à violência, como se eles não estivessem acostumados a todos os procedimentos técnicos de uma investigação. Me parece forçado, em alguns momentos. O preciosismo dos enquadramentos (everything in its right place) já não me irritou tanto: é como se os jogos cruéis que as pessoas jogam, para Ceylan, não alterasse o curso sublime da natureza.
Pater | Alain Cavalier | B | Imagino o espanto que deve ter tomado conta dos espectadores da sessão de gala de Cannes quando este filme bateu na tela. Cavalier novamente se expõe às câmeras com a coragem de quem se candidata a um reality show, mas cria tantas camadas de encenação que a brincadeira se torna, por vezes, enervante. Uma equação talvez resuma o longa: um filme político + o ensaio para um filme político + o jantarzinho da equipe do filme político + um documentário sobre o gato de Cavalier + o blog do diretor.
O futuro | The future | Miranda July | C | Se você procura uma definição audiovisual para o termo hipster, ela está neste filme indie sobre personagens que sofrem porque são: 1. hipersensíveis, 2. especiais, 3. inteligentes, porém ineptos ao convívio social, 4. criativos, mas de um jeito louquinho, 5. conscientes em relação às questões ambientais do planeta, mas incapazes de fazer algo decisivo sobre o assunto, 6. outsiders, mas adoráveis, 7. fofos, mas também amargos (porque a vida é tristinha), 8. conectados ao mundo tecnológico, mas não muito confortáveis com o grande esquema corporativo das coisas, 9. fãs de indie rock e de música de brechó (na trilha: Beach House e Jon Brion), 10. cheios de amor pra dar, mas sempre prestes a sofrer decepções amorosas porque a vida, você sabe, é tão decepcionante.
A ilusão cômica | L’Illusion comique | Mathieu Amalric | C | Uma ideia interessante, ainda que nada singular (pergunte ao Baz Luhrmann): adaptar uma peça consagrada a um ambiente contemporâneo, preservando o texto original. Os ruídos entre diálogos/imagens são inevitáveis. Mas, no caso, também irritantes: Amalric filma como quem dá risadinhas para os entendidos; e, no desfecho, mostra que, para se aproximar de um Brian de Palma e dizer algo particular sobre as ilusões do cinema, terá que comer muitos croissants.
Um pouco mais perto | A little closer | Matthew Petock | C | Uma versão live-action para South Park, só que sem humor. Larry Clark, saudades de você.
Angèle e Tony | Alix Delaporte | C | Personagens opacos, aprisionados no formato padrão de um drama francês para sessões das 14h do Festival Varilux. Com as bordas arredondadas, daria um remake hollywoodiano com, por exemplo, Julia Roberts e Philip Seymour Hoffman.
Ways of the sea | Halaw | Sheron Dayoc | C | Denúncia social didática, com fotografia “bonita” que chama excessiva atenção para si. Nas Filipinas, também não tá fácil pra ninguém.
Artigas | Cesar Charlone | D | Telefilme aborrecido sobre herói uruguaio. Sérias restrições orçamentárias? As restrições criativas, no entanto, são mais preocupantes.
Apenas uma noite | Last night | Massy Tadjedin | D | Um editorial de moda (bonita cozinha, Keira!) habitado por gente rica/bonita – que sofre sempre de um jeito higiênico e perfumado.
Superoito, duas vidas
De madrugada ouvi um estalo que começava e parava, começava e parava. Parecia gota d’água caindo numa folha de metal. Mas deve ter sido um sonho.
Quando toca, o despertador do meu celular solta uma musiquinha doce, celestial feito sino de igreja. A tela do aparelho brilha e treme. Digitei 4h30.
Pedi pra ela programar o outro celular. Por via das dúvidas, desencargo de consciência, desconfiança, essas coisas. Vai que. Ela topou.
Mas pedi: quatro e quarenta, tá? Porque o som daquele aparelho é um bom-dia alegre, e eu não tava pra isso. Que é que cê tem?, ela perguntou. Né nada.
Antes disso eu chorei um pouquinho. A luz apagada, então ela não viu. Perguntou se eu chorava e eu disse não, né nada. Tava só lembrando, falei.
Chorei um pouquinho porque pensei no jeito como ela olha o laptop, naquela pose fixa e séria de quem desenha uma equação fatal. É lindo.
Sei que ela não gosta de homem que chora por qualquer coisa, daí que fiquei na minha. Era a última noite, mas eu preferia nem pensar muito porque.
Uns dias antes, acertamos que o futuro seria: casar (sem filhos), comprar panelas e pôsteres pra sala, videogame e um apartamento no alto da rua.
Ela é a mulher que eu amo.
Acordei às 4h30. E disse: desliga o celular que já-já toca. Ela esbarrou no botão sem largar o sono. Olha, encontrei alguém que sonha mais que eu.
Fui tomar banho. Pedi o táxi, que chegou em dois minutos. Pensei que-rápido, tomei um copo de chá, ela tava dormindo, um beijo e té logo, te amo.
Na minha vida número 1 chove uma chuvinha gelada, faz frio, visto dois casacos (um pullover e uma jaqueta), o ar arranha minha garganta e tal.
Encontro o taxista, ele também sente frio (parece que sente). Cinco da manhã, nem tem sol ainda, de onde você é? Ele pergunta, eu respondo.
Depois ficamos calados. Gosto de ver as ruas na madrugada da minha vida número 1. Dependendo da hora do dia, elas mudam de tamanho. De manhã são largas.
À noite são estreitas. Um dia, quase me atropelaram. Um careca com um cachorro briguento. Uma velhinha. Um mendigo maluco. Amo São Paulo.
São duas vidas. A número 1 é a minha preferida.
Ela vive dizendo vempracá, vempracá, me atiçando, mas ainda não é hora, a hora ainda vai chegar, às vezes sou um menino assustado, um guri bobo.
Então cabou o tempo.
Depois de duas semanas em São Paulo, era dia de voltar. Ao trabalho, à minha vida número 2, a mala cheia, mas desta vez deixei cinco ou seis camisas.
São Paulo sou eu. Brasília, minha outra casa, é uma cidade ampla. Talvez ampla demais. Vivo me perdendo lá dentro, mesmo nas quadras que conheço.
Quando o avião decolou, as nuvens todas desapareceram. Todas de uma vez. A chuva passou e o céu foi ficando avermelhado. São Paulo brincando comigo.
Outro dia perguntaram por que São Paulo e eu fiquei: hem? Não sei, deve ser por causa das pessoas que sobem e descem a Paulista, acho que sim.
Muita gente na rua. Cheiros da minha infância. Minha infância perto da praia. Aí descobri que o inverno em São Paulo pode ser o mais seco, o mais frio e cruel.
Tem isso. O avião ainda tava decolando quando lembrei do dia horrível no metrô, tanta gente apertada que parecia um atentado, mulher chorando etc.
Na poltrona do avião, homem dormindo e roncando. Tirei meu fone pra ouvir umas músicas, mas só consegui pensar tá errado, tá errado, tá errado, tá sim.
Tem esse chavão de que Brasília é hostil de tão seca. Eu acho que não. Eu gosto da névoa amarela e da poeira. E do céu azul sem nuvens: um lençolzão.
Minha mãe e meu padrasto foram me buscar. Ele sempre calado, preocupado com o que diz, com o que faz. Ela um pouco triste – de saudade, sei.
Não noto se meu padrasto tá melhorando ou piorando. Ele fica quieto, cada vez mais quieto, e a doença mordendo de um jeito que só ele sabe dizer.
Acaba que a gente se acostuma. Ele também. Eu e minha mãe. Minha irmã. Até os cachorros. Ele nunca foi tão amável. Minha mãe fez café com pão.
Mãe quer que eu fique, tenho que trabalhar. Minto: tenho sono, tou é sintonizando minha outra vida. A número 2. E a cidade já parece outra.
Nem sei que cidade é esta. Mudou muito. Mudou foi nada. Pra que essas ruas todas se dão voltas em torno delas próprias? Carros em silêncio, nem rádio.
Ligo a música no volume máximo porque não sei o que tou fazendo aqui. Não sei. A mulher fecha a janela. Não sei mesmo, moça, me desculpe, té mais.
No trabalho aparece o brilhozinho verde no celular. É ela. Quer saber se tou bem. Talvez sim. Certeza que não. Sempre machuca trocar de vida, só eu sei.
Arrancaram minha pele e trocaram por outra (mais ou menos isso). Como se eu fosse um personagem do David Cronenberg (a comparação mais exata).
Não sei o que essas pessoas querem de mim. Trabalho pra quem? Por quê? Meus amigos estão falando e não entendo. É hora do almoço e todos falam.
E parece que se passaram três meses desde quando acordei, naquela manhã. Hoje. Hoje pela manhã. Parece que o tempo alargou, não sei nem explicar.
Recebo mensagens da minha outra vida enquanto cumpro as tarefas do dia. Mais mensagens quando desço pra ir ao banheiro e pra lanchar. Paralelas.
Mais cedo discuti com minha mãe porque ela queria me dar de presente uma estante. E não preciso. Não vou ficar nesta cidade por muito tempo, mãe.
Não vou ficar, mãe. Não vai durar muito tempo. Mas ela quer que eu fique com a estante porque ela prefere não acreditar que eu queira ir embora. É.
Eu teria ficado abalado com aquilo. Ela péssima. Mas não sou um cara triste, contei uma piada, acho que ela ficou bem, depois nos falamos no telefone, ok.
Nem vejo como injustiça. Não saio reclamando. Não acho que exista isso, injustiças da vida, injustiças no acaso. As coisas são o que são e é isso, vamos.
Só que tá tudo errado e eu preciso resolver. Não posso com esse lá e cá. A cada mudança de pele, é como se me roubassem ânimo e eu envelhecesse.
No pulo de uma dimensão pra outra, algo se perde. Algo fica na outra cidade, e isso eu não recupero mais. Agora sou um personagem de K. Dick.
Não sei o que vou fazer depois, no dia seguinte. Ainda não posso planejar nada. Estou em trânsito, trânsito permanente, entre pedágios, andando.
E hoje foi um dos piores dias.
Depois do trabalho fui ao supermercado, comprei água e cereal, paguei uma conta na lotérica, vim pra minha casa, o apartamento cheirando a mofo.
As mensagens dela seguiam aparecendo, flashes da minha outra vida. Ela trabalhando, ela em quatro palavras por vez, ela desaparecida, ela etc.
No shopping, o restaurante anuncia: é o melhor da cidade. Não sei mais o que isso representa? Qual é o tamanho da cidade? Agora ela parece pequena.
Antes de chegar no apartamento, desci o eixo como quem explora e invade uma floresta. Quebrando troncos de árvores; tou perdido de verdade.
No último telefonema da noite, minha mãe perguntou se eu estava mesmo bem e eu disse que sim, né nada. Vamos seguindo, quem é que sabe?
Meus livros ainda espalhados no chão do quarto, e eu um pouco decepcionado por encontrá-los mais uma vez. Vocês deveriam ter sumido do mundo, não?
Eu enchendo a geladeira com garrafas de água. Eu e o cesto de roupa suja. Eu e a mala desfeita. Eu e meu laptop (que eu levo comigo de vida a vida). Eu só.
Já um pouco tarde, eu agora com sono e ainda paralisado (é o efeito do transe, não se muda de vida em vão), encarando a tela, esperando a ligação.
Aí ela aparece, às vezes só a voz. Quando ela aparece me sinto um pouco lá. E parece até que faço drama, porque as cidades ficam perto, não é fim do mundo.
Daí tento explicar que não é sobre distâncias. É sobre vida. Duas vidas. Duas vidas. E aí tomam como uma metáfora. E explico que não é metáfora. É o que é.
Outro dia perguntei pro meu padrasto: quando você percebe que esqueceu uma coisa importante, e volta àquele momento pré-esquecimento, como é?
Ele disse que há as coisas que ele esquece e há as que não ele não esquece. E que, hoje, as lembranças e as lacunas estão convivendo bem, sem crises.
Não sei como. Ele não sabe explicar. Confesso: tenho um pouco de medo de entender. Só sei que isso tudo, esses dias longos, nunca são do jeito como a gente quer.
Superoito e a praga dos gafanhotos
Quando imagino o fim do mundo, não temo inundações, explosões nucleares, vulcões esquentadinhos, loucos varridos ou hordas de zumbis. A ideia de apocalipse só me parece verdadeiramente terrível quando inclui pragas de insetos.
Aos 11 ou 12 anos, nas aulas de religião, meus ossos tilintavam de pânico ao notar a aproximação da mais sinistra entre as passagens bíblica. Aquela em que o todo-poderoso evoca um vento oriental que infesta de gafanhotos as manhãs e as noites do Egito.
Lembro que a Bíblia, muito objetivamente, relata os prejuízos financeiros provocados pela maldição: nenhuma verdura nas árvores, nem erva do campo. Mas, naquelas páginas, não havia nada, absolutamente nada, sobre a dona de casa que jogava gamão quando, subitamente, se viu atacada por bichinhos esverdeados. Gafanhotos saltitando entre os fios de cabelo, gafanhotos nas orelhas, gafanhotos nas narinas, gafanhotos sob a camisola, gafanhotos boca adentro, gafanhotos e gafanhotos e malditos gafanhotos.
As entrelinhas da Bíblia são um pesadelo.
O que mais me impressiona minha incapacidde para lidar com essa possibilidade. Nunca fui maricas para insetos. Sou o homem da casa e, por isso, eu mato as baratas. Comigo, nenhum mosquito pode. Sou um destruidor de lares quando o assunto é vespa e não sinto nojo ao tropeçar em lesmas. Acho até engraçadinho! Meus nervos são blindados. Na adolescência, me agradava a sensação de trancar mariposas na palma da minha mão só para mostrar às menininhas apavoradas que eu me qualificava, sim, como um baita de um homem.
Mesmo naquele tempo, no entanto, eu apostava (com medo, muito medo) que os insetos seriam os primeiros a nos enxotar deste planetinha vil. Eles viriam em torrentes. Eles cuspiriam líquidos amargos. Eles fariam barulhos nauseantes. E entrariam nos nossos orifícios. E aí o mundo acabaria, já que não suportaríamos a humilhação.
Qual não foi meu espanto quanto, há três dias, ao chegar em casa, notei que meu pequeno apartamento estava tomado por gafanhotos. Dois, três, quatro gafanhotos. Um deles acomodado no meu sofá amarelo. O outro admirava o monitor do meu laptop, que piscava em azul e verde. Havia um na geladeira, dois na escrivaninha. Todos verdinhos, aparentemente pacíficos, idênticos, mais ou menos como uma coleção de origamis criada por um sujeito perfeccionista e desocupado. Miniaturas do armegedom.
Em um primeiro momento, decidi matá-los todos com uma lufada de inseticida. Mas pensei novamente: não é assim que se trata bichinhos tão perfeitinhos e (aparentemente) inofensivos. Se eles resolveram visitar o meu apartamento, eu deveria encará-los como hóspedes desavisados, mas inocentes. Nada de declarar guerra ao inimigo antes da hora. Vertebrados ou não, somos seres civilizados. Cuidadosamente, tentei capturá-los com a pá vermelha. Me aproximei muito lentamente, muito discretamente, muito carinhosamente, muito mais Obama do que Bush, mas todos eles saltitaram, criaram uma confusão infernal. O que me obrigou a avançar sobre a lata de inseticida e, certeiro feito um GI Joe, provocar uma chacina verde na minha sala de estar.
Em vão. No dia seguinte, encontrei mais cinco gafanhotos, dois deles na cozinha. No corredor para o apartamento, encontrei cadáveres de insetos que não resistiram ao confronto com os humanos. Pobrezinhos. E estúpidos, os coitados: no posto de gasolina, perto aqui de casa, vários ainda voam intrépidos em direção à luz e, exaustos, caem fritos no jardim.
No início da noite, a aglomeração de seres verdes era tão vistosa que fechei as janelas do carro para não ser surpreendido por um filhote descuidado. A cena me hipnotizou. Então é isso? O fim do mundo começará pelo meu bairro? Nós, os tranquilos moradores desta região tão silenciosa e pacata, estamos fadados a inaugurar a temporada infernal da humanidade? Seria mais uma entre tantas ironias divinas com que nos acostumamos a viver?
Juro que percebi apreensão, quase desespero, muito mais do que nojo, nos olhos dos outros motoristas. Por mil gafanhotos!, os olhos protestavam. Ninguém parecia acreditar no fenômeno (que, para os moradores, soava como uma completa novidade, nunca antes na história!). Era uma ferroada na nossa rotina, um rasgo na sucessão tão previsível de acontecimentos que organiza a nossa existência. Na fila do sinal de trânsito, os insetos esbarravam nos nossos vidros, lambuzavam o asfalto. Cobravam reações, respostas. Mas a que perguntas? O que eles querem de nós? De onde eles vêm? Por quanto tempo eles ficam?
Seriam eles o resultado de um corte abrupto na cadeia alimentar de um predador? Ou um indicativo de que o pior ainda estava por vir (na próxima semana: gafanhotos mais gorduchos e irritadiços, talvez)?
Estávamos confusos.
Os gafanhotos nos obrigaram a pensar no nosso futuro. O que acontecerá depois? Eles nos atiçaram a raciocinar sobre o funcionamento da natureza, que quase nunca interfere no nosso cotidiano. O que acontece agora?
Ao tirar o lixo, agorinha, ouvi a conversa das vizinhas: “Eles são fraquinhos. Use uma revista ou o chinelo. Eles nem ligam. Ficam paradões. São umas coisinhas.” E, naquele zum-zum-zum de superlativos e diminutivos, comecei a me simpatizar pelos tolos insetos que não oferecem resistência, que são banais, uns equívocos dos deuses, meras perturbações. Uns descerebrados que arriscam tudo por alguns minutos diante da luz branca que queima em nossos apartamentos muito limpos e práticos.
Minha hipótese é que, como acontece com outros insetos menos extravagantes, os nossos gafanhotos também desaparecerão misteriosamente em duas ou três semanas. Não sentiremos falta e, pouco depois, não nos lembraremos desses incômodos visitantes. Estaremos preocupados com outros assuntos. Ou (como acontece frequentemente) tentaremos nos preocupar com coisa alguma. E aquela bizarra imagem de fim de mundo – pragas, eventos inexplicáveis da natureza, gafanhotos pueris em plena cidade grande – ficará guardada no mesmo compartimento do nosso cérebro que armazena flashes de acidentes de trânsito e cenas de filmes ruins.
“Sempre tentei não pensar no futuro”, foi o que minha mãe disse, hoje cedo. Almoçávamos juntos. Quando ela afirmou aquilo, aquela frase (um tipo de conclusão desiludida que não se comunica aos filhos), lembrei dos gafanhotos que me esperavam no apartamento. A confissão me assombrou. Eu sempre evitei fazer planos e, como ela, só agora me dei conta disso. Desse meu traço de personalidade. Dessa minha resistência a imaginar o porvir. Desse desinteresse pelo amanhã. Soou como uma revelação: seria herança materna? Seria genética a doença de não querer olhar para frente?
O que assusta a minha mãe são as cenas dos nossos próximos capítulos. Nossa vida, parte 2. A doença do meu padrasto – e ela não o abanona, não o abandonará – faz com que pensemos no assunto. O futuro está aqui, mais próximo do que nunca. Ele nos vigia. Ele nos instiga. Ele é o gafanhoto no televisor; uma anomalia, um invasor. Diante dele, não sabemos o que fazer. O encaramos com perplexidade. Não entendemos nada, somos crianças – devemos torcer para que ele suma? Ou aceitá-lo como um hóspede permanente?
Sabemos que está na hora de, pelo menos, refletir sobre o drama em que estamos metidos. Mas não são poucas as vezes em que nos pegamos desviando do tema, mudando de assunto. “Conte sobre aquele caso do trabalho”, a mãe provoca. E eu, o filho, narro a anedota mais risível. Reclamo das contas que devo pagar e do mecânico que perdeu a peça do carro e do preço do cereal e das pequenas doenças que não nos atrapalham. Tenho que tomar a vacina e planejar a viagem. Nos irritamos com o que nos parece trivial e falamos sobre isso. Falamos muito, mais do que queremos falar. Isso até o instante em que o grande tema se instala. Aí a cortina cai; encerra-se o espetáculo da normalidade. Voltamos a ser pessoas muito perdidas, bichinhos ao redor da lâmpada, eu e ela.
Mas raros são os dias em que chegamos a tanto. Somos daqueles que deixam para outra ocasião. Sempre. Depois de matar o último gafanhoto, fechei as janelas da sala, do quarto e do banheiro. Isolei o vão da porta com o tapete e um pano de chão. Apaguei a luz do corredor e torci para que os insetos não encontrassem uma fresta. Fiquei em silêncio por meia hora, à espera de que algo inesperado acontecesse. Nada aconteceu. Nada. Era uma noite como as outras. Dentro do apartamento, o planeta ainda girava.
Primeiro pensei: por enquanto. E depois: antes assim.