O fim da inocência
Superoito e o dia de visita
Meu primeiro cachorro: um poodle branco, bagunceiro, indomável, adorável, uma peça, um outsider, um James Dean, não assustava ninguém, tropeçava nas próprias patas, gostava de morder pistolas de brinquedo (amarelas e azuis), preferia filé a ração, dava piruetas. Morreu atropelado por um fusca.
O nome dele era Cherri.
Eu, um menino de 10 anos, adorava meu cão. Por dois ou três meses, ele foi um dos meus melhores amigos (não o melhor, que aí seria exagero). Meu confidente. Depois que mataram o bicho, resolvi: em homenagem ao Cherri, Tiago Superoito não teria outro cão.
Era uma promessa tola e sem sentido. Mas, ainda que não de propósito, acabou acontecendo exatamente assim. Cresci trancado em apartamentos. Pelos cães, desenvolvi certa repulsa. Me convenci de que eu era alérgico a pelos. E que gastar uma fortuna com animais de estimação era uma atrocidade politicamente incorreta (aos 17, entrei numas de salvar o planeta).
Quando nos mudamos para uma casa, depois de muito tempo, deus apontou para minha família e pregou uma daquelas peças divertidíssimas que ele, o todo-poderoso, ama de paixão: nos condenou à convivência com dois cães. Santo sarcasmo. Simba, um golden retriever carente e infantilóide. E Hatty, um beagle ranzinza, esnobe e traumatizado por rejeições amorosas (digamos que, na vizinhança, ele era o terror das cadelinhas virgens e indefesas).
Sempre foi fácil lidar com o Simba, um tipo educado e silencioso. Mas, na primeira semana, todos desejávamos que Hatty, o do nome esquisito, morresse atropelado por um fusca. Todos menos minha irmã, que se identificou com malandrinho e o adotou carinhosamente. Um par de jarros.
Nós seis – eu, minha mãe, meu padrasto, minha irmã e os dois cães – vivemos poucas e boas. Nos divertimos. Sofremos. Choramos juntos. Criamos laços. Inventamos sólidos códigos de amizade. Quatro anos depois, veja isto: somos inseparáveis.
Descomplicando a história: Simba e Hatty são dois dos nossos melhores amigos. São chapas. 100% confiáveis. Entraram na família pela porta da frente. Nada quebraria aquela relação pura e honesta de cumplicidade.
Inexperientes no assunto, descobrimos recentemente que cachorros não vivem para sempre. Foi um choque. Um veterinário desalmado violentou a nossa inocência. Jogou a realidade na nossa cara. Quebrou o encanto. “O Simba tem mais uns três anos de vida pela frente, no máximo. O Hatty, nem isso. São velhos. E estão gordos”, disse.
Naquele momento, desejamos que o veterinário fosse atropelado por um fusca.
Há alguns dias, Hatty ficou doente e teve que ser internado para uma cirurgia na orelha. Pensamos que ele morreria. Estava velho e gordo. Mas o médico avisou que, apesar do risco, não seria um tratamento tão delicado. Nosso cão teria que passar duas semanas num hospital de cães. Descobrimos ali que o preço de hospedagem de um beagle superaria o valor gasto por minha irmã em Buenos Aires, onde passou 15 dias num albergue. Sem pensar nos miseráveis do planeta, decidimos torrar a grana. Tudo pelo bem do nosso cão marrento, sujo, feio e insubstituível.
Não quero soar piegas, mas admito que a casa ficou triste sem o Hatty. O Simba caiu numa crise depressiva e, em sinal de protesto, passou a dormir no piso frio do banheiro. Meu padrasto, que não vai nada bem, sentiu-se um pouco mais perto da morte. Minha irmã decorou a casinha do cachorro com celofane. O veterinário aconselhou que a família visitasse o Hatty e, se possível, levasse o Simba junto. “Os cachorros são amigos, não são?”, instigou. Minha mãe agendou o horário.
Marcamos a aventura para um sábado. A família estava precisando disto: uma aventura. E visitar o Hatty num hospital de cachorros seria intenso.
Explico: o Simba nunca havia saído de casa. Era uma Polyanna, quase. Um menino da bolha. Um Kaspar Hauser. Nasceu e cresceu num gramado cheio de árvores e flores e, quando tivemos que nos mudar, ele apenas fez uma viagem (tensa, barulhenta) a um outro gramado cheio de árvores e flores. Mas imaginamos que um encontro com o Hatty seria a cura para uma crise melancólica que se arrasta desde que o beagle foi internado. Secretamente, também acreditávamos que aquele passeio nos ajudaria a superar a crise de uma família despedaçada e perplexa.
Quem diria, ahn: o Hatty, um estorvo, teria a chave para a nossa paz de espírito?
Obviamente, não. Mas gostávamos de nos enganar. Daí que entramos todos no carro. Nos bancos da frente, minha mãe (ao volante) e meu padrasto (que, com lapsos constantes de memória, já esquece alguns trajetos). Logo atrás, minha irmã, o Simba e eu. A viagem duraria cerca de 20 minutos – tempo suficiente para que o Simba fizesse da minha camisa um babadouro. Ele estava tão nervoso (talvez emocionado?) diante de todas aquelas imagens aceleradas exibidas na janela. Era comovente. As árvores, as ruas, as casas, as placas de trânsito, os outros cachorros, os outros carros, as bicicletas, os viadutos, as rodovias, os cruzamentos, nuvens no formato de osso, as corujas e os sacos de lixo. Um mundo novo se abriu para nosso inocente golden retriever.
Quando chegamos no hospital, a cena parecia patética. Não era eu quem guiava o Simba na coleira vermelha, mas nosso cão me lançava de um lado para outro, excitado com aquele novo ambiente. A alegria do cachorro era contagiante. Nos alegramos com ele. E, quando entramos na enfermaria dos cães – que era triste e fedorenta, solitária, uma prisão -, não ficamos incomodados com o fato de que esperaríamos o Hatty num cercadinho inóspito, que fedia a mijo e que mais parecia a jaula de um elefante.
Esperamos. E esperamos. “Trouxe a máquina, Tiago?” “Trouxe, mãe” “O médico avisou que o Hatty tá fraco” “Eu sei, mãe. Seremos fortes” “Sem piadas, Tiago” “Ok, mãe. Faça uma pose, faça”.
Quando abriram a jaula, foi impossível achar graça. Suspiramos de tristeza. Hatty, o cão mais cínico e insensível do mundo agora parecia um ser deplorável, manco e nanico, que só sabia tremer e chorar. O beagle, que sempre rejeitou carinho, agora corria para os braços da minha mãe, que também parecia inconsolável. “O que fizeram com você, Hatty?”, ela suplicava. Com a cabeça protegida por curativos, o cão-múmia parecia verdadeiramente abandonado. Aquilo partiu nossos corações.
(Minto: o coração do Simba parecia pegar fogo. De alegria. De excitação. Para ele, aquele era o primeiro dia do resto de uma vida. Quando Hatty entrou no cercadinho, o amigo latia para uma cadela pincher com a pata quebrada)
Não digo que o sofrimento do nosso cão tenha unido nossa família. Seria bobagem. Nem que tenha acentuado nosso drama. Nada disso. O veterinário garantia que o cachorro seria curado. Confiávamos nele. Aquele passeio, no fim das contas, não teria nenhuma importância prática. Para o Simba, a ausência do Hatty não parecia incomodar muito (ele queria alguma companhia, qualquer companhia).
Enquanto eu tirava fotos da minha mãe e da minha irmã, notei que meu padrasto estava encolhido no canto do cercadinho, observando nossos movimentos como quem busca algum conforto. Por 15 ou 20 minutos, estávamos preocupados com outro assunto que não doenças, tragédias e solidão.
Quando finalmente nos enchemos daquilo, o veterinário avisou que teríamos que sair lentamente do cercadinho. Um de cada vez. Saímos eu e meu padrasto. Ficamos alguns minutos naquela posição estranha: de longe, observávamos minha mãe e minha irmã trancadas numa jaula, agachadas, acariciando um cão moribundo. Trancadas numa jaula. Agachadas! Olhei para meu padrasto e ri. Ele riu de volta. Os cães todos latiam. Rimos alto.
Envergonhada com a cena, minha mãe pediu silêncio. Mas não obecedemos. Não daquela vez. Estávamos bem. Fazia sol. Era um dia lindo. Um sábado. O cão não morreria. E aquela era a nossa ideia de uma grande aventura.