Nostalgia

Kiss each other clean | Iron & Wine

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Eis a reviravolta mais chocante deste estranho início de 2011: as vidas do Iron & Wine e do Decemberists, que habitavam cidadezinhas americanas tão distantes uma da outra, acabaram se cruzando.

A terra de Samuel Beam, que atende por Iron & Wine, era silenciosa, menos de mil habitantes, arejada por uma brisa morna e delimitada por árvores amareladas. Um outono sem fim. Muitos motivos para ficar em casa, amparado no violão, sussurrando ao gravador.

Já o lar de Colin Meloy, o macho-alfa do Decemberists, era extravagante de uma forma um tanto decadente, cenário desgastado de um musical dos anos 1950. Os moradores usavam roupas de outras épocas e desfilavam em carros grandões, démodé. Toda semana, tios e tias dançavam no baile da primavera.

Resumindo, sem encenações esdrúxulas: há cinco ou seis anos, o Iron & Wine nos obrigava a apertar o fone de ouvido para captar cada detalhe de um estilo sutil, introvertido. Já o Decemberists se tornava cada vez mais barroco, perdendo as estribeiras disco a disco.

A novidade é que, em 2011, ambos se mudaram para o Sul. São vizinhos num bairro “família”, confortabilíssimo, onde os tiozinhos abrem as janelas e regam jardins enquanto escutam os greatest oldies de uma juventude que acabou nos anos 1980.

Os famosos da comunidade lançaram discos que podem até não compartilhar as principais referências, mas inspiram a imagem de um entardecer desbotado, capturado por uma câmera fotográfica antiga. Em película. São álbuns que nos acolhem, nos afagam, nos convidam para jantar e nos recebem com uma fatia de bolo de chocolate.

Samuel comentou que, em Kiss each other clean, a intenção é sintonizar o climão aveludado, melodioso, dos primeiros hits de Elton John. Estamos no início dos anos 1970, pois bem. Já Meloy, nos comentários sobre The king is dead, apontou para o período de formação do R.E.M. Início dos 1980. A primeira coincidência aparece aí: são lançamentos que tentam recuperar o frescor, a inocência, o otimismo dos Primeiros Discos.

As semelhanças ficam ainda mais claras nas estruturas das canções, que, nos dois casos, optam por formas simples, cores primárias, como se tentassem reproduzir (e amaciar, atualizar) o que há de mais básico no folk: são canções que sobrevivem porque assimiladas e amadas pelas pessoas, que as armazenam na memória e as presenteiam naturalmente aos filhos e netos. Canções de domínio público.

As duas bandas usam estratégias quase opostas para cumprir esse objetivo. Em The king is dead, o Decemberists se despiu do figurino rococó e trocou o romantismo pelo bucolismo. Em Kiss each other clean, o Iron & Wine acrescentou sacarose pop — e saxofones brejeiros à soft rock que deixariam Dan Bejar, do Destroyer, muito orgulhoso — a um estilo antes esquelético. É uma transformação que começou no anterior, The shepherd’s dog (2007), mas que agora finalmente desabrocha.

São transformações cujos resultados querem provocar quase o mesmo tipo de efeito: são discos arredondados, galantes, e elegantemente antiquados, e devem soar especialmente bonitos quando em vinil ou jukeboxes. Como se cobrassem do indie rock de 2010-2011 um pouco mais de formosura.

Difícil não sorrir para eles.

Só percebo que, enquanto o Decemberists aplica esse corante a uma superfície fina (é um disco de beleza unidimensional, que vai perdendo densidade quanto mais voltamos a ele), o Iron & Wine trata essas intenções todas de uma forma mais profunda, e Samuel deixa a impressão de que passou anos e mais anos refletindo sobre as estruturas dessas canções. Cada faixa do disco soa como o trabalho de um mês. Páginas escritas e depois reescritas.

É um disco que se impõe refrão a refrão, palavra a palavra, com a segurança e a concisão que encontramos em álbuns como The greatest, da Cat Power, ou The reminder, da Feist.

É, sobretudo, um disquinho muito bem editado. Não é longo (tem apenas 10 faixas), mas abre frestas para um ambiente amplo, de muitos cenários e possibilidades. Visita, sem vergonha, a singeleza indie de um The Shins (Walking far from home), a precisão de uma velha canção da Tin Pan Alley (Half moon) e brincadeiras psicodélicas que lembram a fantástica fábrica de Jon Brion (os barulhinhos fofos de Monkeys uptown).

E é um álbum que não se cansa nunca, que parece sentir prazer com a mudança que operou. Um temperamento de criança diante de brinquedo novo. Na penúltima faixa, Glad man singing, toma um desvio e paquera as baladas inglesas pomposas do The Verve, do Stone Roses. Nem parece que estamos na cidade, no mesmo país de onde essas canções partiram.

A unidade do disco, no entanto, está na leveza. O Iron & Wine já lançou projetos mais desafiadores, que nos conquistam quando estamos prestes a abandoná-los. Os mais desconfiados podem acusar a influência da Warner, a grande gravadora que controla a tesouraria do álbum (já o Decemberists lança pela Capitol; dois ex-indies). Mas essa não é a praia de Kiss each other clean. Estamos falando de um disco pop que prefere o coração ao cérebro, que se entregam no primeiro encontro. Sorvete vermelho derretendo.

Quando ouço logo depois do álbum do Decemberists, soa como o início de um movimento. Um ato de protesto. A favor das canções agradáveis. Contra os garotos cínicos da classe.

Quarto disco do Iron & Wine. 10 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Warner Bros. 8/10

Undertow | Warpaint

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Neste clipe, as meninas do Warpaint vão à relva para encontrar lembranças de um tempo que não volta nunca mais. Campo dos sonhos, digamos. A direção é de Shannyn Sossamon. E a música, que está no ótimo The fool, não sai da minha cabeça há mais de uma semana.

Os discos da minha vida (3)

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Voltamos a apresentar, após um breve intervalo, o ranking sentimental dos 100 discos que viraram a minha vida pelo avesso e não foram embora na manhã seguinte. Não me venham com cobranças de coerência ou bom senso – não desta vez, ok? Com vocês, meus amigos, mais um capítulo de uma incrível saga que começou há duas semanas (possivelmente num dia em que bati a cabeça na porta ou comi cereal estragado) e termina nem-deus-sabe-quando. Voilá.  

096 | Summer in Abaddon | Pinback | 2004 | download

Um álbum que, desde 2004, ouço semanalmente, religiosamente. É um mantra. Contém memórias do meu namoro (que se segura firme e forte) e de um dos melhores períodos da minha vida. E talvez nem seja um disco muito bom (mas garanto que ele é, no mínimo, intrigante). A arte do Pinback, aparentemente muito simples (construir, desmontar e reconstruir pequenos fragmentos de melodias, riffs e solos), sempre me impressionou por parecer exata, irretocável. Ouço os discos como quem admira uma cidade de miniaturas onde cada prediozinho se encontra no único lugar onde poderia estar. Mas Summer in Abaddon é especial já que acrescenta um elemento irracional a essa matemática: é como se um rio de lava derretesse lentamente essa cidadezinha e nos devorasse junto. Desta vez, a emoção venceu. top 3: FortressBloods on fire, AFK

095 | #1 Record | Big Star | 1972 | download

Quando comecei a juntar as peças desta lista, prometi a mim mesmo que não incluiria tantos discos de power pop. Mas cá estou me traindo, e logo de começo: não há como subestimar esse tipo de belezura (que, especialmente no lado B, soa tão pungente quanto os momentos mais pungentes dos Beatles e do Beach Boys, acredite em mim). Mesmo quando a belezura em questão me leva a um período terrível, em que eu era um rapazinho solitário que ficava no meu quarto remoendo amores platônicos por meninas impossíveis. That 90’s show. Mas passou. Hoje, ele soa como pop perfeito sobre sentimentos por vezes sangrentos: amor adolescente, nostalgia, pequenos prazeres, decepções e, claro, pôr do sol. “É ok olhar lá para fora”, eles avisam. Siga o conselho. top 3: Thirteen, Watch the sunrise, Feel.

Os discos da minha vida (1)

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Os discos da minha vida, parte 1. Uma série de posts que começa hoje e só termina pra lá do fim do mundo. Nem desconfio quando.

A ideia é muito, muito simples: 100 discos que marcaram a minha vida, 2 por semana, quando possível com links para que você os ouça.

Não é, portanto, uma lista com a pretensão de elencar os “melhores discos de todos os tempos” ou os “discos mais influentes” ou os “discos para você ouvir antes de morrer” ou os “discos que mudaram o mundo”. É apenas um longo ranking de álbuns que se confundem com algumas das minhas melhores (e às vezes piores) lembranças.

Um top 100 muito pessoal, cheio de idiossincrasias que vão irritar quem entende um pouquinho de música pop. Francamente: é uma listinha insignificante.

A maior parte dos discos vem dos anos 90, a época em que comecei a ouvir música compulsivamente. Mas é apenas o ponto de partida para uma viagem mais extensa (espero que vocês acompanhem com um pouco de paciência).

Tentarei ser breve nos comentários, até para que isto aqui não se transforme numa sessão aborrecida de autoanálise. Aviso que os textos explicam pouco sobre os álbuns e, no máximo, tentam recuperar a minha relação com esses discos. Não espere tratados. E é uma questão delicada, afinal de contas: não costumo ouvir estes discos, até para não ser tragado por terríveis flashbacks.

Mas sugiro que você os ouça. São bons.

100 | Grand Prix | Teenage Fanclub | 1995 | download  

Hoje soa como o álbum de power pop mais direto que se fez: um refrão, um riff, coros agradáveis, emoções frágeis, alguma tristeza e quase nada mais. Quase uma cartilha. Lá nos anos 90, foi um disco que me perseguiu quase contra a minha vontade. Nas primeiras audições, não levei muito a sério: achei aguado e choroso (o oposto do grunge, por exemplo). Eu tinha 15 anos. Mas cresci e Grand prix foi crescendo junto comigo, como um amuleto. “Este sentimento não vai embora”, eles avisavam. Não foi. top 3Don’t look back, Sparky’s dream, Neil Jung.

099 | Ten | Pearl Jam | 1991 | download

Eu juro que não me lembrava disto: a estreia do Pearl Jam sempre começou com essa atmosfera pseudo-oriental que mais tarde seria aplicada a discos do Kula Shaker e da Alanis Morissette? Mas taí: esse tipo de excesso era uma característica da onda grunge que o Pearl Jam soube aplicar com despudor e sisudez. E, saudosismo à parte, ainda considero o melhor momento deles. Menos aventureiro do que No code, mas gloriosamente single-minded (não consigo encontrar outro termo). Eu tinha a fita-cassete e admito que preferia o lado B (a começar por Oceans, ainda tocante). Hoje acho que eu ficaria com lado A, que tem o cheiro das minhas blusas de flanela. top 3: Oceans, Black, Jeremy.

Heaven is whenever | The Hold Steady

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Não compro CDs há mais ou menos um ano, mas calhou de acontecer: quinta-feira à noite, bati o olho na prateleira e a bolachinha colorida olhou de volta. Flerte falal: fui esfaqueado em 60 pilas, mas voltei para casa feliz da vida, eu e minha cópia zerada, tinindo, reluzente de Boys and girls in America, do Hold Steady.

Era um daqueles discos que eu precisava ter. Precisava. Nada tenho contra a diluição de melodias em arquivos vagabundos de MP3, mas há casos em que sinto a necessidade de adquirir uma prova material, um rastro visível, um souvenir dos meus discos do coração. Há dois dias, descobri que Boys and girls in America está entre eles. Meu peito foi lá e disse: “compre o maldito CD importado!”

Até agora, ele só me trouxe alegrias. No carro, desembrulhei o bichinho e aumentei o volume do som. Os vidros trincaram com os primeiros acordes de Stuck between stations, um clássico. E o corinho de Chips ahoy! acabou se mostrando menos estridente do que eu lembrava. Solucei discretamente no início de First night, que passa pelo disco feito uma brisa de desencanto, de meninice mal resolvida. É tudo muito tocante, como um grande episódio de Anos incríveis.

A nova audição trouxe duas revelações: eu, acostumado os bits bichados de arquivos leves, nunca havia reparado em como Craig Finn soa gentil neste disco (como quem diz: “por favor, senhoras e senhores, peço alguns minutinhos para que vocês ouçam minha modesta obra-prima”). E, mesmo durante meu longo e intenso namoro com o álbum, eu não havia notado o quão elegante (até rebuscado) é o tecido dessas melodias. A banda vai à guerra com o batalhão todo: piano, cordas, sopros, distorções punk e vocais femininos, canções de amor e hinos de bebedeiras, narrativas cruzadas (sobre tipos adolescentes, perdidos e desidratados) e nerdices literárias (“Às vezes penso que Sal Paradise estava certo”, admite Craig). É um disquinho imenso.

Eu teria que ouvir Stay positive novamente (e vejam isto: também comprei o CD!), mas tenho quase certeza de que Boys and girls in America é o ápice indiscutível do grupo. Stay positive é mais dark e desesperado (mais John Cassavetes, menos Gus van Sant), mas não chega perto. Separation Sunday é lindamente imaturo, e só. Talvez eles saibam disso tudo. E talvez, por saber disso, eles avisem, a cada novo lançamento, que estão prestes para nos surpreender. A verdade, no entanto, é que eles nunca nos surpreendem.

Obras-primas às vezes são um fardo, um carma, e o Hold Steady terá que se contentar com o fato de que ficarão à sombra de 2006. É triste, mas taí. O que nos leva a Heaven in whenever, o quinto disco dos nova-iorquinos.

Nova-iorquinos, ahn? Você já parou para pensar nisso? Pode soar impressionante, mas o Hold Steady é do Brooklyn, a cidade do The National. A distância entre as duas bandas é de algumas centenas de quilômetros. Os discos do National apontam para uma Nova York feérica, de asfalto e neon. Os do Hold Steady miram lembranças de cidades interioranas, em sépia. Finn cresceu em Minnesota, e essa informação explica tudo sobre a mise-en-scene do grupo: os personagens geralmente não têm o que fazer nem para onde ir. Se entediam, e por isso inventam de tocar em bandas de rock.

A sonoridade do quinteto, por uma questão de coerência, deve muito à aura pop associada ao Meio-Oeste norte-americano: ecos de country rock, guitarras secas e diretas, poesia com algum traço folk (eles narram histórias, desenvolvem dramas, cantam A América). A banda se alimenta de nostalgia caipira e, portanto, fracassam sempre que tentam “urbanizar” esse som. Há alguns meses, eles anunciaram um disco mais “cinematográfico”, sortido, com “um quê de Jon Brion” (e foram eles que disseram, não tenho nada a ver com isso). E agora descobrimos que, surpresa!, tudo o que temos é mais um disco do Hold Steady.

O que está longe de ser uma descoberta ruim. A paisagem da banda continua sob o sol, um doce caseiro. A faixa de abertura, The sweet part of the city, é um American graffiti de baixíssimo orçamento: tédio, amores platônicos e outros demônios. O andamento da canção parece menos apressado do que de costume, mas é alarme falso. Da segunda música em diante, o Hold Steady usa o molde que conhecemos. Em alguns casos, as melodias são tão fortes que poderiam ter entrado em Boys and girls in America. Mas fica a sensação de que faltam foco e propósito ao disco.

Sobre o que é esse filme mesmo? Sinceramente, ainda não sei. Na segunda faixa, Soft in the center, Finn adota a faceta de adulto (um personagem que ele já havia interpretado em Stay positive) e manda um conselho de gentleman aos aspirantes a Don Juan. “Você não vai ter todas as garotas. Você vai ter aquela que você amar mais”, avisa. Depois, insiste: “Eu sei o que acontece com você. Isso aconteceu comigo também.” É nessas horas dá vontade de largar o disco, tomar um avião e bater um papo com o sujeito.

A terceira música é o que esperamos do Hold Steady: um par de losers fazendo bobagens. “Sim, eu vou voltar e te encontrar. Mas não vai ser como nas comédias românticas. No fim da história, ninguém vai aprender lição alguma”, canta, e dá a piscadela geek que esperamos de um fã de cultura pop.

Até aí, nenhum susto. E algum constrangimento (Rock problems, por exemplo, é uma DR tolinha). As coisas ficam sérias na balada We can get together, que explora o tom sombrio de Stay positive com um tom mais afetuoso, triste. Uma letra sobre saudade. “O paraíso era sempre que nos encontrávamos, ligávamos o som e ouvíamos os seus discos”, ele lembra. E aí não há o que fazer: sabemos que a estratégia é muito apelativa (toda banda de rock tem uma canção do gênero), mas nos emocionamos mesmo assim.

No restante do longa-metragem, Finn dá algumas tacadas seguras: cria versos que podem ser usados como hinos, já que interpretam com muita honestidade um turbilhão de símbolos e clichês do rock (e agora nem vale mais falar em Bruce Springsteen: o Hold Steady recicla o próprio repertório). “Os meninos estão todos distraídos, ninguém vence em shows violentos”, ele diz, em Barely breathing (em clima de cabaré sujo e power pop decadente). “Somos bons garotos, mas não conseguimos ser bons todas as noites”, brinca, em Our whole lives (que começa igualzinho a Stuck between stations). A slight discomfort termina metralhado pela bateria. “Não temos medo, temos alguma fé. Vamos ficar bem. Vamos sobreviver à noite”, promete Craig. Desce pano.

Epílogo: o Hold Steady continua a olhar para o passado (um passado inventado, aposto) com um misto de nojo e carinho, desprezo e paixão. Esquizo-nostalgia. Sei o que é isso. Ouço Boys and girls in America e sinto saudades. Não sei de que. Enquanto isso, temos Heaven in whenever. Um disco que não se deixa sufocar pelo passado da banda. Um disco adulto. E, de certa forma, adorável. Como um episódio esquecível de Anos incríveis.

Quinto disco do Hold Steady. 10 faixas, com produção de Dean Baltulonis e Tad Kubler. Lançamento Vagrant/Rough Trade. 7/10