Nicolas Klotz
mostraSP | Dias 8, 9 e 10
Nesta rodada de textinhos sobre os filmes que vi na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, parágrafos sonolentos e constipados que possivelmente não vão acrescentar muita coisa às experiências dos espectadores que acompanham o evento. Mas, para não deixar acumular serviço (como diria minha avó), cumpro a obrigação com mais divagações curtas, mais rascunhos, mais reflexões apressadas que, eu sei!, não levam a lugar algum. Deixe-me afrouxar a gravata, ok?
A cotação que uso para avaliar os filmes, como vocês bem sabem, vai da letra D (de, digamos, dodói), à letra A+ (de, digamos, atlético). Por enquanto, ainda não esbarrei em nenhum filme A+. Se vocês souberem onde esse danadinho está, portanto, sejam simpáticos e me avisem. Tá bem?
Histórias da insônia | Sleepless nights stories | Jonas Mekas | A | Até para quem é leigo na obra de Mekas (o meu caso), Histórias da insônia desce como um caderninho-de-anotações muito convidativo: lá pelas tantas, o próprio cineasta se dirige à câmera e, numa homenagem a uma diretora amiga que fez filmes minúsculos sobre o cotidiano, desanuvia as próprias intenções. O metiê de Mekas, aqui, é este: o da crônica etílica, o da conversa jogada fora, o do encontro com amigos (daria, portanto, uma ótima sessão dupla com qualquer filme do Hong Sang-soo), o de uma cinema íntimo, doméstico, que não quer (e não quer mesmo) se impor como monumento para qualquer coisa. Daí que a prosa do bom velhinho flui gentilmente, alegremente, como o videolog de um artista que não tem mais nada a provar, e que se sente confortável numa arte ultrapessoal que, para alguns espectadores, ainda pode soar como um grande insulto (ou como uma enorme bobagem). Um dos melhores filmes desta mostra (onde, talvez por coincidência, não faltam ótimos filmes caseiros).
Las acacias | Pablo Giorgelli | B+ | O argentino que venceu o Câmera de Ouro (prêmio para longas de estreantes) no Festival de Cannes deste ano é um road movie lacônico que pode ser tomado de uma forma simples (um conto humanista, à la Walter Salles, sobre três pessoas que precisam conviver por um certo período de tempo dentro de um espaço fechado, um caminhão) e como uma espécie de metáfora para as relações truncadas, silenciosas, entre países sul-americanos. De uma forma ou de outra, Giorgelli traça esses percursos com uma concisão que assusta: apesar das manhas sentimentais (o que um bebezinho adorável não faz por um “filme de arte” minimalista?), ele nos poupa de qualquer excesso, confiando mais nos gestos dos atores que nos diálogos. Filmezinho preciso assim, tão sutil e tão doce, periga ser tratado como obra-prima. Acredito que não seja isso tudo. Mas que deixa a impressão de ser uma estreia incomum, deixa sim.
Low life | Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval | B | Para que o cinéfilo de Brasília entenda o impacto de Klotz na Mostra de SP, basta pensar nas expectativas que um filme de Julio Bressane provoca quando exibido no Festival de Brasília: por aqui, o diretor francês é tratado como uma espécie de convidado de honra, recebido sempre com entusiasmo por um fã-clube já acostumado às manias de um cinema engajado/filosófico/sisudo que fluta entre o ensaio sociológico (sobre crises da Europa contemporânea) e referências a Robert Bresson e Jean-Luc Godard. Low life trata de uma juventude em colapso, implodindo em agonia, que marcha sabe-se lá para onde, sem um inimigo de fácil identificação. Um tema atualíssimo (vide os tumultos londrinos, por exemplo), que Klotz usa como um terreno cinzento habitado por personagens estilosos&desesperados. O sentimento de mal estar é constante e inevitável, e será sorvido com prazer pelos admiradores do diretor, mas me parece um golpe singelo quando aplicado à trama principal do longa: o romance amaldiçoado entre uma francesa e um migrante afegão (que, é claro, sofrerá as consequências de uma Europa falsamente livre). Leitura sugerida: o anterior, A questão humana, ainda mais incômodo.
As canções | Eduardo Coutinho | B | Um Coutinho-standard, que retorna ao formato de Jogo de cena (sem reflexões metalinguísticas), como um cantor veterano que distende os músculos, desabotoa a camisa e grava um disco pop após dois álbuns experimentais. Um tanto frustrante, tenho que admitir (imaginem aí o Radiohead anunciando um novo The bends), mas não há como negar os prazeres provocados por um um cinema que cria uma relação sentimental tão imediata com o espectador – e que não tem vergonha de chorar diante das câmeras. Pra todo mundo cantar junto, como se diz.
Cut | Amir Naderi | B | Este fight-club japonês, que poderia atender por O retrato de um cinéfilo quando saco de pancadas, não redime um personagem que lida com o cinema de uma forma masoquista (e sim, é claro que me identifiquei um pouquinho com ele). Bônus: no clímax, um top 100 de melhores filmes de todos os tempos.
Uma longa viagem | Lúcia Murat | C+ | Um doc doméstico, cheio de afeto e nada austero, com um personagem larger-than-life (o irmão da diretora, que deu a volta ao mundo duas vezes durante o exílio, na ditatura militar brasileira) e um recurso cênico que me irrita quando penso nele: Caio Blat contracenando com imagens projetadas numa parede.
Elena | Andrei Zvyagintsev | C | O diretor russo de O retorno faz um drama familiar lento, solene (feito marcha fúnebre), que investiga as banalidades do cotidiano como quem procura as evidências de um crime. Cada personagem tem os 20 minutos de contemplação que faz por merecer. Mas a encenação se torna tão embotada que, encerrada a tragédia, deixa um rastro de preciosismo: muita pompa para pouco filme.
Vulcão | Eldfjall | Rúnar Rúnarsson | C | Um dos filmes que mais emocionam nesta Mostra de SP me parece uma apelação sem fim. Mas talvez eu tenha perdido a sensibilidade para esse tipo de drama familiar higiênico: todos me parecem a mesma coisa.
Frango com ameixas | Poulet aux prunes | Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud | C | O novo dos diretores de Persépolis me parece uma linda embalagem sem muita coisa dentro. Nota-se que a dupla está encantada pela técnica, pelo truque frívolo, pela caixinha-de-surpresas, e por um roteiro que vai despistando o espectador até as cenas finais. Os fãs de Amélie Poulain, no entanto, possivelmente vão curtir.
Nervos à flor da pele | Órói | Baldvin Zophoníasson | C | Apenas mais um filme teen europeu (perto dele, Low life fica parecendo algo magnífico), com aparência de piloto de seriado. Pule.
No circuito
Depois de uma temporada corrida de festivais, cá estou eu de volta ao circuito. Assumo que ainda parece assustador entrar numa sala de cinema vazia às 19h30, sem o burburinho típico das mostras (nem legendas eletrônicas!). E que dá tristeza notar o descaso do público com um filme como A questão humana, que eleva o tal “circuito alternativo” a um patamar intelectualmente mais alto que o das comédias românticas argentinas protagonizadas por velhinhos simpáticos.
Pois bem: façam as críticas que quiserem à Mostra de São Paulo (há muitas, concordo com várias), mas sair de uma maratona daquelas e mergulhar de barriga num circuito de exibição previsível como o nosso dá tristeza. Nas páginas de jornal, há uns dez filmes que ainda não vi. Nove deles não me provocam nenhum interesse.
A questão humana | Nicolas Klotz | 8.5
Um olhar vivo para o século 20: dos campos nazistas aos escritórios de grandes corporações, Nicolas Klotz faz um filme histórico que, em vez de tratar eventos do passado como peças inofensivas (guardadas em museus, sem risco de contaminação), detecta os ecos das nossas grandes tragédias no mundo contemporâneo. Transportar a História para o tempo presente – com todos os efeitos que o deslocamento provoca – é o desafio de Klotz.
Se a tese tem um quê provocativo (tecer relações entre os métodos de seleção dos nazistas e dos chefes de departamentos de Recursos Humanos pode soar como um golpe baixo), não há nada de ordinário na forma como ela é desenvolvida: a oposição entra a técnica e os sentimentos humanos – dilema que transporta o protagonista para uma espécie de transe – vai fraturando a própria narrativa, que se deixa afrouxar em seqüências como a de uma rave que, em determinado momento, pode ter se convertido num delírio, numa miragem. Talvez nos incomodemos com a imprecisão do filme, cheio de pontas soltas – mas aí, sugere Klotz, a culpa talvez seja do nosso mundo e do modo calculado como aprendemos a viver.
Feliz Natal | Selton Mello | 6
Ao mesmo tempo em que a estréia de Selton na direção comprova as ambições cinematográficas do ator (cuidadoso no trato com a imagem, ele não está nessa de brincadeira), já aponta para uma certa tendência ao gratuito. Não, Pedro Cardoso, não falo da cena de nudez de Graziella Moretto – que, aliás, cumpre uma função dramática na transformação sofrida pela personagem na metade final da trama -, mas de cenas, planos e movimentos de câmera que parecem existir apenas para chamar nossa atenção para o apuro visual do filme. Os closes nos rostos dos atores, sobrepostos a luzes estouradas de Natal, são um exemplo desse exibicionismo que, ok, não é nada surpreendente num filme de estreante.
Mas, se descontarmos as referências disparadas superficialmente (de Festa de família a O pântano, passando por Lavoura arcaica) e os diálogos que soam como piadas de bar, Selton faz um retrato até bastante afetuoso de uma família aos pedaços. O maior talento do diretor quase se esconde no excesso de firulas do filme: a generosidade no trato com os atores, que, em retribuição, defendem os personagens furiosamente.
A duquesa | Saul Dibb | 5
Com o selo da BBC Films, é um daqueles dramas de época que sabotam temas que dariam pano para manga (no caso, os conflitos de um duquesa que é obrigada a escolher entre o amor que sente pelos filhos e pelo amante) em prol de um formato inofensivo. Tudo no filme, com exceção da performance contida de Ralph Fiennes, aparenta a impessoalidade de uma típica adaptação de Jane Austen – mas, aqui, o tom de leveza é trocado por uma atmosfera de resignação que o roteiro e o cineasta nunca dão conta de traduzir sem demonstrar a pressa de encerrar rapidamente as partes complicadas da trama e chegar logo à história de amor impossível.
E Keira Knightley, que nem é uma atriz tão limitada, parece ter aceito o papel de cheerleader da mediocridade alheia. Vale uma indicação ao Oscar?