Nascimento

Trecho | O esquecimento

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“O surpreendente era que sua vida pouco havia mudado após o nascimento de sua filha, Catriona. Os amigos lhe haviam dito que ficaria abismado, que se transformaria, que seus valores seriam outros. Porém nada mudou. Catriona era algo bom, mas continuou a confusão de sempre. E, agora que entrara nos últimos estágios ativos de sua existência, começou a compreender que, não ocorrendo acidentes, a vida não mudava. Ele fora iludido. Sempre presumira que chegaria um tempo na vida adulta, uma espécie de planalto, em que haveria aprendido todos os truques de ir levando as coisas, de simplesmente ser. Com todas as cartas e e-mails respondidos, todos os papéis em ordem, livros organizados alfabeticamente nas estantes, roupas e sapatos em bom estado nos armários onde podia encontrá-los; com o passado, incluindo as cartas e fotografias de outrora, arrumado em caixas e pastas; com a vida privada assentada e serena, assim como as acomodações e as finanças. Em todos aqueles anos, essa arrumação, o calmo platô, nunca apareceu, e apesar disso ele havia continuado a presumir, sem pensar sobre o assunto, que estava pertinho, ali do outro lado da esquina, que em breve ele faria um esforço e o alcançaria. Naquele momento a vida se tornaria clara e a mente livre, sua existência como adulto teria então início de fato. Contudo, pouco após o nascimento de Catriona, pensou ter entendido a verdade pela primeira vez: no dia de sua morte, estaria usando meias de pares diferentes, haveria e-mails não respondidos, e na pocilga que chamava de casa ainda existiriam camisas sem os botões do punho, uma lâmpada apagada no hall, contas a pagar, sótãos a limpar, moscas mortas, amigos esperando por uma resposta e amantes que ele não havia confessado ter. O esquecimento, palavra final em matéria de organização, seria seu único consolo.”

Trecho de Solar, de Ian McEwan (ao som de As the world rises and fall, do Clientele).