Música pop
House of balloons | The Weeknd
“Saiam da sala!”, nossa professora ordenava, num tom irônico de madrasta malvada, quando nos passava os exercícios que exigiam total concentração. Era engraçado. Não conheci outra que odiasse tanto a sala de aula: para essa senhora de rosto quadrado e centenas de dentes, as melhores ideias surgiam lá fora.
E, se bem lembro, os meninos e as meninas quase nunca estávamos entre quatro paredes. Sempre sentados no canto da quadra esportiva, nos corredores, perto da lanchonete, no canteiro lisérgico (coloridíssimo) da pré-escola. Caderno, lápis e oxigênio. Não é por pouco que sinto tanta saudade da minha sétima série, da professora de português, da arquitetura vazada do colégio, do cheiro de tinta fresca que eu reconheceria se o prédio ainda estivesse de pé. Não está.
O importante para este texto, antes que eu me perca, tem a ver com uma dessas lições ao ar livre. Era um exercício simples: teríamos que observar a paisagem e escrever um parágrafo em primeira pessoa. Moleza. Levei 15 minutos para cumprir a tarefa, entreguei a folha e fui comer um salgadinho na cantina.
Antes que eu devorasse a coxinha de galinha, porém, a mulherona quadrada apareceu no refeitório. “Tiago, o que é isto?”, e ela parecia intrigada. Não entendi o motivo do espanto e suspeitei que eu não tivesse compreendido a lição. Será que troquei as bolas? Será que escrevi o que não devia? Será que tropecei em alguma proibição secreta? A coxinha esfriava.
“Me explique isto aqui, Tiago: ‘O dia está bonito, o sol brilha com muita força…” (e, enquanto ela recitava meu parágrafo infeliz, eu lamentava mentalmente o textinho absolutamente ordinário; mas era tudo o que eu conseguia naquele momento, naquelas condições, me perdoe) “… e as crianças brincam na pista asfaltada que dá para a W3. O vento brinca com os meus cabelos, que caem na minha testa e tampam minha visão.” Nesse momento, ela parou.
Fiquei esperando o restante, o fim da punição. Era um texto vergonhoso, eu sabia. Ficaria pior. Mas ela interrompeu a leitura e ficou admirando meu rosto – que, por sua vez, admirava um ponto de interrogação invisível.
“O que você quis dizer com isso, Tiago?”, ela quis saber.
“Não sei sobre o que cê ta falando, tia”, eu desconversei.
“O vento brincou com seus cabelos, foi? Os seus cabelos caíram na sua testa, foi? Mas que cabelo, Tiago? Que cabelo?”
(naquela época, eu pedia para que o barbeiro caprichasse na máquina 4).
Não havia muito cabelo, é verdade.
Eu poderia ter arrumado várias explicações para a minha licença poética, mas nenhuma seria aceitável. Então, no desespero, saquei uma resposta que me surpreendeu:
“Não sou eu aí no texto, tia. É meu eu-lírico”.
A explicação deu tão certo, colou tão bem colada que, daí em diante, a professora me adotou como aluno favorito. Eu, o número 1, parecia entender os mistérios da literatura. Eu, o especial, sabia me mover no pântano da ficção.
É claro que eu era nadaa daquilo. Eu tinha 12 anos. Eu escrevia bobagens. Eu era um farsante, um sortudo, um joguete do destino. Mas a reação entusiasmada da professora acabou me ensinando que devemos desconfiar dos textos escritos em primeira pessoa (e dos pré-adolescentes com crises de autoestima). Eles mentem. Eles trapaceiam. Eles nos engabelam.
Pois bem.
Lembrei dessa historinha tola quando procurei (e não encontrei) informações sobre o The Weeknd, a “banda” (deveríamos chamá-lo assim?) que está grudada na barra da saia do meu iTunes há algumas semanas, feito menino órfão. Ela não quer, não vai me abandonar enquanto eu não a adote para sempre.
O que me atrai nessa narrativa em primeira pessoa chamada House of balloons é o quanto ela parece pouco confiável. Uma grande mentira, certo? Tudo o que dizem sobre o The Weeknd é o dono do projeto atende por Abel Tesfaye. Ele é canadense. E o Drake, nosso herói sentimental do R&B, curte tweetar elogios para o sujeito.
Se você fuçar um pouco mais no Google, porém, vai descobrir que o terreno é mais movediço. Há quem diga que Abel é o pseudônimo de alguém conhecido, um rapper famoso ou quase-famoso. Há quem diga que ele não é canadense. Há quem diga que ele é um personagem de ficção. Boatos. Intrigas. Folhetim.
Por mim, tanto fez. Sinceramente. A obscuridade do The Weeknd (cuja mixtape House of balloons foi lançada de graça na web e, note a ironia da coisa, é tão coesa que não parece em nada com aquilo que entendemos por mixtape) conta como um fator de interesse, um elemento de suspense. É. Nada é o que parece ser (a menos que alguém comprove o contrário). Tenho centenas de razões para assegurar que o personagem principal das músicas não é o autor dessas canções.
O menino de cabelos longos, vocês sabem, era e não era eu.
As nove faixas desse disco são narradas por um homem noturno, febril, lascivo, que se pendura de balada em balada como um animal eternamente faminto, empapuçado de dólares, álcool e cocaína. “Confie em mim, garota. Você quer ficar alta com isso”, ele promete, já na faixa de abertura. E depois tem mais: “Ele é quem você quer. Eu sou quem você precisa.” O Don Juan veste Prada.
Nesta mixtape, o mundo é observado através da percepção turva desse narrador-rimbaudiano: já na primeira música, ele soa entediado. É muito dinheiro, e “o dinheiro é o motivo” (em The morning). “Você trás as drogas e eu levo a minha dor”, ele avisa (em Wicked games). A festa começa, a festa termina, e o que resta é a sensação de que estamos congelados num plano em preto-e-branco, sob luzes frias. Tudo se move e estamos um pouco tontos e tristes.
Ouço o disco duas, três vezes, e a impressão me parece definitiva (ainda que não seja): esse narrador totalmente confiante, solto no mundo, violento e estilhaçado, não poderia ter escrito canções tão simétricas, elegantes, calculadas, que equilibram lindamente hip-hop, soul music e goth rock e parecem (isso sim) ter nascido após dezenas de madrugadas perdidas dentro de estúdios de gravação.
Eu apostaria que Abel é tão nerd, tão branquelo e frágil quanto os meninos do The XX ou quanto James Blake. Não apostaria que é um bom vivant movido por instinto e estrondo (mas posso estar errado; e a graça, meus amigos, está nesse mistério).
House of balloons é um disco de detalhes reluzentes, e um trechinho dele (talvez o mais brilhante) explica por que ele só poderia ter sido criado por um produtor muito sóbrio e obsessivo: a forma absolutamente precisa como o sampler de Happy house, da Siouxsie and the Banshees, é adaptado no refrão da faixa título. Nada menos que sublime (e há um trecho de Beach House igualmente arrepiante).
Ou a forma como a entonação de Abel em The morning – sussurros para uma noite maldormida – acaba contradizendo (ou, pelo menos, assombrando) versos sobre dinheiro e farra. “Eu faço essas paredes vibrarem como se estivessem grávidas de seis meses”, ele promete. Mas soa como se as paredes o ameaçassem– e elas desabam.
O enigma engrandece, alarga, enevoa o disco (da mesma forma como os segredos do Belle and Sebastian tornavam If you’re feeling sinister um álbum muito mais saboroso; nos sentíamos à vontade para moldá-lo da forma como bem entendêssemos) até transformá-lo, por fim, numa obra de ficção muito bem engendrada.
Percebo o personagem-narrador e noto o autor, que nos acena com melodias, arranjos, samplers e um trabalho de produção delicadíssimo, de sensibilidade incomum, sinistro e emotivo em igual medida.
Outro dia, vimos aqui em Brasília um filme brasileiro, O céu sobre os ombros, que parte do princípio de que os atores devem interpretam eles próprios. É um curto-circuito de ficção e documentário: os atores escolhem episódios do próprio cotidiano, que serão encenados para o filme. Numa das cenas, uma personagem transsexual, prostituta, transa com um “cliente” dentro do carro, diante de um semáforo. Não fica claro, no filme, se o sexo ocorreu de verdade ou se foi encenado. As imagens apenas sugerem: o espectador que se vire com elas.
Ao fim de sessão, uma repórter não resistiu e, curiosa para vencer as barreiras impostas pelo filme, foi perguntar à transsexual se a cena havia sido encenada ou não. Ao que ela veio com uma resposta ainda mais intrigante: “Foi tudo totalmente ensaiado”, ela disse. E arrematou: “Contratamos um ator pornô, fomos à rua, transamos de verdade, mas ele nem gozou. Tudo ficção.”
Minha professora de português, estou certo, entenderia.
Primeiro disco do The Weeknd. Nove faixas, com produção de Don McKinney e Illangelo. Independente. Baixe em www.the-weeknd.com. 8.5/10
Os discos da minha vida (22)
A saga dos 100 discos mais apaixonantes da minha vida chega a um episódio muito fofo: os dois álbuns de hoje são afáveis e sedutores – às vezes, no entanto, eles se machucam (e nos machucam) de tanto amar.
E isso é lindo, não é?
Por coincidência (e sempre é coincidência), os descobri em momentos de crise amorosa. Momentos terríveis. Eu era jovem, eu sofria por qualquer dor de cotovelo, eu era um infeliz, eu tinha 18 anos. Talvez ironicamente, escrevo sobre eles no day after de um fim de semana extraordinário, um sonho dentro de um sonho que, em parte, pode ser resumido com os títulos de dois filmes que eu levaria para uma ilha deserta: Amor à flor da pele e Embriagado de amor.
E isso é lindo, não é?
Então tá. Sobre essa história toda, não direi mais nada (talvez em forma de metáfora ou com outros recursos literários; mas não hoje, que ainda estou sob choque). No mais, sou um sujeito muito tímido e a vida não é um reality show, meus camaradas.
E isso também pode ser lindo, não é?
058 | Moon safari | Air | 1998 | download
Quando ouvi pela primeira vez, lembro que eu, o moleque aborrecido de 18 anos, resmunguei: “Por que tanto paparico pra um disquinho que soa como a trilha sonora de uma festinha retrô, chique e insuportavelmente cool?” Levou um tempo – levou anos! – para que eu notasse como esse clima blasé e às vezes autoirônico (tão francês!) oculta um disco que usa cada artifício pop para criar canções que desgrudam do chão, flutuam, miram o sublime. Todas as músicas evocam a sensação de doce nostalgia (e certa inocência infantil) que é típica das lembranças de um primeiro amor. Mas é Remember que, interpretada pelo robô mais nostálgico da música pop, derrete minha armadura. Dream a little dream. Top 3: Remember, Kelly watch the stars, Sexy boy.
057 | In the wee small hours | Frank Sinatra | 1955 | download
Este é o disco de Sinatra que o seu avô guarda para ouvir sozinho, quando o almoço terminou, os filhos foram embora e a tarde começa a cair. Não é easy listening. Um monumento da música pop, é considerado o primeiro ‘álbum conceitual’, com faixas compostas e organizadas para criar uma atmosfera de melancolia; um deserto noturno habitado pelos fantasmas de amores perdidos. Ok, estamos falando de valor histórico. O que mais me comove, porém, é como Sinatra aceita se mostrar fragilizado nas canções do disco: em como ele as toma para si. O que aparece não é mais a celebridade irresistível, símbolo de masculinidade e elegância, mas o homem comum, abatido pelas dores que afligem outros homens comuns. Um disco de amor absolutamente verdadeiro. Por isso, dolorido (e bonito) do início ao fim. Top 3: In the wee small hours of the morning, What is this thing called love?, I’ll never be the same.
Innerspeaker | Tame Impala
Sempre me senti cúmplice dos discos febris, complexados, aqueles que ardem de dor e não se aguentam em pé. Talvez em contrapartida, não consigo esconder certa inveja (às vezes ocultada em despeito) dos álbuns confiantes, esguios, que falam alto e miram a garota mais bonita da festa. Eu os admiro, mas quase nunca entendo como eles funcionam.
Essa minha relação patológica com a música pop explica por que não consigo me conectar com o Kings of Leon (conheço dois ou três chapas que me lembram os irmãos Followill, e nunca tenho assunto para conversar com eles) e por que subestimei este álbum perfeitinho do Tame Impala, Innerspeaker, que foi lançado em maio e só chega a este blog agora.
Vou tentar não ser tão passional desta vez, ok?
Preciso ser honesto, no entanto (e este é um blog terrivelmente honesto, no fim das contas): tento me aproximar deste disco há alguns meses e, durante esse tempo todo, não consegui superar a impressão de que havia algo frio na pompa psych-prog, no escopo largo e caleidoscópico dessas canções. Não há, mas os meus preconceitos em relação às Bandas que Agarram o Mundo pelo Pescoço quase me fizeram a acreditar que eu estava com a razão.
Em matéria de ambição, o Tame Impala me transporta ao mundo em degradê (e, para mim, tedioso, quase insuportável) de bandas como Kula Shaker e The Music: os australianos também tecem um edredom espesso de referências psicodélicas dos anos 60 e 70, com algo de Beatles-67 e muito das primeiras experiências do Pink Floyd. Cada uma das faixas parece ter levado cinco anos para ficar prontas – exprimem obsessão com detalhes, zelo com arranjos e produção. Entre as referências, o quarteto também fala em Josh Homme e Beck, dois sujeitos que se importam tanto por melodia quanto por criar as atmosferas que as mereçam.
Quanto mais se ouve o disco, no entanto, mais se nota que essa aparência rococó esconde canções diretas e pegajosas, com a doçura onírica do garage rock britânico do fim dos anos 1960 (como tantas bandas, entre elas o The Coral, o Tame Impala deve muito ao box Nuggets, que restaurou a produção mais obscura da época). Três singles – Solitude is bliss, Lucidity e Expectation – têm refrões tão arredondados e acessíveis que justificam o lançamento do disco por um selo indie da Austrália ligado à Universal Music.
Selo indie + Universal Music = Tame Impala, e a equação explica quase tudo o que deveríamos saber sobre a banda.
Voltemos ao Kings of Leon, então: o Tame Impala tem em comum com os irmãos Followill o gosto muito sincero, legítimo, por um formato de canção e de álbum que agradaria a executivos de grandes gravadoras nos anos 70. São discos que em alguns momentos se arriscam, mas sempre retornam a um ponto firme de diálogo com um público mais amplo (um modelo mais parecido com aquele que rendeu What’s the story morning glory, do Oasis, do que para o que gerou obras do Animal Collective ou Beach House).
O Tame Impala me parece uma banda enorme e lucrativa que, por enquanto, é consumida por um público pequeno (mas eu não duvidaria nada se eles dessem o salto de popularidade que o Kings of Leon deu com os últimos dois discos).
Innerspeaker, a “certidão de nascimento” deles, é um disco correto em tudo. Quase inatacável. Tão correto que pode parecer um truque: alguns versos são sentimentais e frágeis, quase adolescentes (ouça Why won’t you make up your mind?), mas o tom do álbum é de uma segurança de doutorando. E, até para um sujeito como eu, que desconfia dos primeiros da classe, é empolgante acompanhar uma banda nova que está tão certa de onde quer chegar. Que é tão confiante e esguia e saudável.
Imagine isto: você é o responsável por uma sessão de testes de elenco para uma peça de teatro. Você testa um, dois, três, vinte atores. Eis que o candidato de número 26 não apenas cumpre rigorosamente as suas expectativas como mostra que aquele espetáculo é pequeno para um performer tão determinado. Você fica admirado, ainda que talvez não muito comovido, com a demonstração de técnica, esforço e talento.
O Tame Impala é assim: um aspirante aplicado, que parece ter estudado centenas de referências de pop rock e que as organiza como um catálogo de sentimentos fortes, ops, universais (cortesia do vocalista Kevin Parker). Há momentos em que se torna impossível evitar o contágio: faixas como It is not meant to be e Alter ego são de beleza quase sufocante, o tipo de veneno irresistível para qualquer roqueiro indefeso que se pegou chorando com uma canção de Brian Wilson.
Mas a diferença entre Wilson (e os discípulos mais autênticos e sangrentos de Wilson) e o Tame Impala é que, por enquanto, os australianos demonstram mais habilidade com a técnica do rock psicodélico do que com o desejo de espontaneidade siderada, de invenção louca, de viajar ao “lado negro da lua”, que os ídolos da banda demonstravam.
É aí que Innerspeaker passa a me perturbar: soa como uma jornada que não nos oferece tantos perigos. Mas que, é claro, admiro: sem muita comoção e com uma ponta de inveja, talvez por não encontrar nele os defeitos que eu esperava encontrar. Ou talvez por ser o tipo de disco precocemente maduro que eu nunca conseguiria fazer.
Primeiro disco do Tame Impala. 12 faixas, com produção de Kevin Parker. Lançamento Modular Recordings. 7.5/10
Trecho | Uma coisa sobre a grande arte
“Ele escutou Juliet, nua e crua do princípio ao fim mais duas vezes, ainda sentado no banco, e durante a terceira começou a andar pela casa. Uma coisa sobre a grande arte: faz com que se ame mais as pessoas, perdoando-as pelas suas pequenas transgressões. Funciona da mesma forma que a religião, se pensarmos bem. O que importava que Annie tivesse ouvido o disco antes que ele tivesse chance de fazer o mesmo? Era só imaginar todas as pessoas que haviam ouvido o disco original antes que ele o houvesse descoberto! Ou imaginar todas as pessoas que haviam visto Taxi driver antes dele, por falar nisso! Isso amortecia o impacto da música? Fazia com que fosse menos dele? Duncan queria ir para casa, abraçar Annie e falar de uma manhã que jamais esqueceria.”
Trecho de Juliet, nua e crua, de Nick Hornby.