Mundo moderno
Superoito, mesa pra dois
Estava eu salinha de espera da oficina mecânica, virando as páginas de uma revista de celebridades, quando li a notícia: depois de muitas tentativas infelizes de subir ao altar, a apresentadora de tevê finalmente decidiu acertar ponteiros com Santo Antônio. A modelo se casaria sim, em breve, graças ao bom pai, mas com uma condição – ela e o marido, um empresário que preferiu não conversar com a repórter, morariam em casas separadas.
A jornalista, e todas são curiosíssimas, quis saber: “Casas separadas? Como é isso?” Sempre alerta, a atriz respondeu com frases prontíssimas. Pregou uma lição sobre como, no mundo moderno, a convivência pode minar a individualidade, principalmente entre pessoas atarefadas, bem sucedidas e que aprenderam a gerenciar a solidão.
Gostei da palavra. Gerenciar. Pensei ali, enquanto o mecânico virava meu carro pelo avesso: soa poético quando as pessoas usam termos empresariais para tratar do cotidiano. Um lirismo frio, metálico, mas que me parece contrabandeado de um bom filme do David Cronenberg. De qualquer forma, acho que já comecei a fugir do assunto que é central a este post.
Voltemos então à revista, à celebridade, à apresentadora de tevê, à modelo, à atriz (talvez cantora). Num certo momento, desviei minha atenção do texto (que começava a ficar cansativo, uma repetição de comentários otimistas sobre isso e aquilo) e mirei as fotos. Parecia haver algo forçado, artificial nelas – e aqui não falo em maquiagem, penteado ou efeitos digitais.
A mulher sorria para a câmera, radiante com a novidade. Um casamento. Uau. Não acontece todo dia. Mas, ao mesmo tempo, notei algo desconfortável naquelas imagens. A estrela independente posava em quartos de hotéis, restaurantes, bares, ruas parisienses, cafés. Mas estava sempre sozinha. Sempre sozinha. E, se você reparasse no olhar azulzinho da moça, notaria que algo a incomoda.
Seria isso? Algo a incomodaria de verdade? Havia, de fato, uma distorção naqueles flashes. Mas seria o caso de uma lente equivocada? De um filtro escolhido com desleixo? Ou apenas a percepção de um leitor que queria encontrar algo incômodo no olhar daquela celebridade?
A última opção me parece a mais verdadeira. Para minha sorte, o mecânico mostrou extrema agilidade e terminou o serviço em pouco mais de 15 minutos. Eu ainda teria a manhã inteira de segunda-feira para pensar em outras frivolidades (arrepiantes) antes de pegar o avião para São Paulo.
É uma viagem que faço com freqüência. Há cinco meses, vivo um namoro em casas separadas. Talvez por isso eu me identifique um pouco com a noiva famosa da revista. Eu moro num apartamento em Brasília. Ela mora num apartamento em São Paulo.
Entendo que, no meu caso, são casas extremamente separadas. Uma relação menos simples do que aquela que a modelo/atriz/cantora tenha projetado. Ela provavelmente imaginou o formato mais recorrente dos casamentos modernos: ela se acomoda num loft estilo Sex and the City (cheio de sapatos e laptops róseos) enquanto ele, do outro lado da rua, convida os amigos empresários para tomar um uísque enquanto jogam sinuca e baralho num apê todo acinzentado, estiloso e com a aparência de um Hard Rock Café.
Ok. É um sonho possível. Mas talvez ela não tenha a cogitado que, numa relação amorosa, a distância pode exercer dois movimentos simultâneos e opostos: arejar o dia-a-dia, mas corroer a intimidade. Prolonga o amor (cada encontro soa como um recomeço, eis o clichê), mas provoca uma sensação de afastamento e desamparo que pode ser fatal.
Amor à distância: eu poderia escrever um livro sobre o tema. E seria um livro cheio de contradições e questões obscuras, sem certezas, mais ou menos como uma biografia de banda de rock dos anos 70. Não há existe uma única verdade, uma única linha narrativa, uma regra que resolva todas as equações (até porque os integrantes da banda estavam chapados demais para lembrar de alguma coisa).
Mas este não é um post sobre amor à distância. É, sim, um post sobre convivência. Sobre dividir a casa, apesar do mundo moderno, da globalização, da convergência tecnológica e das revistas de celebridades.
Minha experiência nesse ramo é, aviso logo, quase nula. Levei um namoro longo em casas separadas (mas a convivência era mais intensa que a de muitos casais grudentos), depois morei sozinho por um período curto e, em seguida, engatei um namoro interestadual. Ainda não testei a ideia de compartilhar, na real, um lar. Na verdade, admito que eu ficava um pouco nervoso com o conceito, com o modus operandi da coisa.
Descobri há pouco que, quando eu pensava sobre essa perspectiva de mudança, o que me perturbava era o medo de perder algo. Algo. Algo que eu não sabia o que era. Não exatamente a minha liberdade, ou a minha individualidade. Não estou falando em termos abstratos. Eu temia o custo dessa espécie de negociação. Porque meu professor de economia ensinou que havia um custo para tudo. E certamente eu teria que abrir mão de muitas coisas, de manias e hábitos, para ter a coragem de pedir uma mesa para dois.
Foi uma aflição parecida àquela que me invadiu quando deixei a casa dos meus pais. Na época, eu suspeitava que seria uma transição terrível. Que seria um trauma. Lembro que eu não queria me desfazer de nada. Não queria perder a minha cama, o meu computador, a minha conexão banda larga, a estante dos meus livros, meu armário, o jardim da casa, meus pais, minha irmã, os cachorros, os sofás, o aquário feioso. Eu sentia que estava fazendo uma escolha equivocada. E que eu iria pagar um preço alto, talvez alto demais, por aquela odisseia.
Acabou que, mais ou menos como numa fábula urbana (e moralista, boboca), o herói da história entendeu que, além de necessária, a mudança revelou algo profundo: que o medo de mudar, de abandonar o conforto e seguir em frente, talvez tenha feito com que perdesse tempo, que adiasse por teimosia a estação seguinte. Quando morei sozinho, percebi que meu quarto era pequeno demais. E que, apesar de confortável, o ninho familiar estava transformando um adulto num crianção.
E, no mais, era tempo de crescer.
Hoje percebo que meus planos são outros. Namorar à distância atiçou em mim um desejo totalmente contrário ao da celebridade da revista: o que mais quero é a experiência de viver numa mesma casa. É isso aí. Estou na contramão da contemporaneidade, eu sei, mas é mais forte do que eu. Por enquanto, essa é uma meta difícil (ainda não sabemos como estreitar a distância que nos afasta, e seguimos em cidades separadas, trabalhando um aqui e o outro lá). Mas uma meta que existe. E, filosoficamente falando, me parece muito viável.
E ela começa aqui, agora, mais ou menos enquanto escrevo este texto.
Há quem decida investir 15 dias de férias em pacotes turísticos ou retiros espirituais. Eu preferi usar o recesso para conviver com a minha namorada, dividir uma casa, esboçar uma rotina, dar o primeiro passo. Depois de cinco meses, sinto que estamos finalmente sedimentando nosso namoro. E me parece um bom começo. Nesta primeira semana, notei que eu estava novamente enganado em relação às minhas angústias: não sinto como se estivesse perdendo algo. Não é como se eu tivesse trocado minha liberdade por outro bem. Não. É diferente disso.
Ontem à noite conversei com minha namorada sobre a situação. Ela me perguntou se me sinto em casa. “Tá tudo bem, Tiago?” (ela é sempre muito atenciosa, e isso me mata de alegria). E eu disse que sim, é o que sinto. Estou em casa, estou bem, estou feliz. Depois ela contou que, num período recente, levou muito a sério a ideia de que o certo mesmo seria apostar numa relação em casas separadas. “O ideal, imagine isso, seria morar no apartamento ao lado. Ele ficaria sempre lá, perto, mas eu poderia dormir sozinha quando estivesse de mau humor”, ela explicou. Um bom argumento, na minha opinião.
Talvez ainda seja cedo para tirar alguma conclusão sobre a experiência. Uma semana é muito pouco. E, depois de tanto tempo namorando à distância, o conforto de um lar compartilhado se tornou, para mim, insuperável. Não sou parâmetro para nenhum casal. Meus sentimentos estão desregulados. Quando ela chega do trabalho e preparamos hambúrgueres, sinto que vivo alguns dos momentos mais felizes da minha vida.
Talvez eu seja um sujeito apto à vida de casal, ao confinamento amoroso. Faço concesões com facilidade, ainda que eu saiba agora (e mais do que nunca) que não se deve fazer concessões em excesso. Entendo que, nos momentos de crise, dividir um apartamento pode ser sufocante. Vi dezenas de filmes sobre o assunto. Conheço casais que, em espaços abertos, não se aguentam. Imagino como deve ser torturante para eles o ato de recolher a toalha que foi largada por descuido em cima da cama. Ou de baixar a tampa do vaso sanitário.
Mas o ceticismo dos que alertam sobre os perigos da convivência também deveria valer quando se trata das relações em casas separadas. Ou não? Porque a distância, mesmo que mínima, não bloqueia o fim do amor, não ameniza as discussões, o destempero. Sei de casais que vivem em cidades separadas há muitos anos, mas se encontram pouco para não se agredirem. Sei de casais que se amam quando estão juntos, mas que precisam viver aos amassos com outras pessoas. Acontece.
Nessa selva, o único exemplo que tenho é a minha história. As minhas histórias. E, até agora, elas me mostram que o medo de conviver às vezes pode ser pior, mais massacrante que a convivência em si. Deve parecer uma lição barata, muito típica dos livros de autoajuda e das revistas de fofocas, mas ela me traz algum alento.
Porque, para alguém que se acostumou à solidão (mas não se conforma com ela), existe algo muito poético, muito emocionante naquele momento em que ela deita no sofá sem pentear o cabelo, com o pijama antigo, girando a colher dentro de uma xícara de chocolate quente. Isso é intimidade. Para mim, isso é o paraíso.
/\/\ /\ Y /\ | M.I.A.
O que você procura na música pop?
Você quer conforto, identificação, sentimentos calorosos, um refrão bem escrito, uma melodia que se assemelha a outra melodia que se assemelha a outra melodia que, por sua vez, é a melodia que tocava no momento mais importante da sua vida?
Ou você busca o assombro estético, a provocação, o desafio, a ideia inusitada, a melodia dissonante e estranhamente sedutora que, como um bug inesperado, o convida a repensar a importância que você dá às melodias mais familiares?
Maya Arulpragasam, 34 anos, procura um pouco das duas coisas. O afago e o choque. Mas, decididamente, anda cansada de conforto.
Na capa do terceiro disco de M.I.A., nos deparamos com a imagem de uma tela de computador infestada de cursores do YouTube. A cingalesa se esconde atrás de blocos cor de rosa que poderiam ter saído de um game retrô. É uma colagem que lembra aqueles instantes horríveis em que aplicativos se multiplicam desordenadamente, poluem nossos monitores sem que possamos controlá-los. Um tufão de bits. Por alguns minutos, é como se a máquina – o lado misterioso da força – tivesse finalmente vencido.
O criptografado /\/\ /\ Y /\ (que, se você preferir, aceita ser chamado simplesmente de Maya) é um álbum pop que simula esses minutos de caos e pavor. Pânico de tecnologia.
Que, obviamente, não é provocado tão somente por defeitos momentâneos do Internet Explorer. Logo na primeira faixa, A message, M.I.A. aponta a escopeta para outros inimigos. “Fones de ouvido se conectam com iPhones, iPhones se conectam com a internet, que se conecta com o Google, que se conecta com o governo”, alerta. A introdução dura menos de um minuto de duração, mas resume o sentimento de paranoia, revolta (mas contra quem?) e tensão que contamina o disco inteiro.
Numa época em as redes sociais metralham os “toques” de modelos, boleiros, atores pornôs e ex-integrantes de reality show, pode parecer impressionante que a música pop não tenha adquirido o hábito de comentar a web – e especular sobre os efeitos sociais de todo esse ruído on-line. M.I.A. observa naturalmente essa dimensão tecnológica do tempo em que vive: é possível fazer pop de guerrilha, pop contemporâneo, sem levar em conta o YouTube, o Twitter, o MySpace, a Wikipedia? Para M.I.A., não é.
E talvez não seja mesmo possível. Talvez nós é que estejamos acostumados a encastelar o pop e a protegê-lo de uma realidade que ainda soa confusa, complicada demais. Perto da ambição de M.I.A., o pop-2010 soa como um filme desbotado.
O tema já estava presente, ainda que indiretamente, em Arular (2005) e em Kala (2007). Os discos foram elogiados por renovar a world music, mas M.I.A. sempre pareceu mais interessada em nos mostrar que, com a internet, a música dos ‘outsiders’, dos estrangeiros (antes, tida como exótica e obscura), passou a ser mais um elemento sonoro entre tantos, mais um arquivo em mp3 à nossa disposição. Colar um arquivo no outro – e, com isso, produzir combinações muito pessoais – era a lição (até simplezinha, para quem se adaptou a um planeta pós-Napster, mas que soou como uma imensa novidade).
Maya é o álbum que radicaliza esse estilo global, fragmentado, sem muros, que observa naturalmente (e, no caso, com agonia) um mundo que não passa no noticiário da CNN.
Radical, aliás, em mão dupla: a sonoridade está mais arredia, irritadiça, “difícil” (de propósito). Já o discurso, menos polido, desinteressado em explicar didaticamente as próprias intenções. É o que é, como ela bem avisa no título de uma das faixas.
Lovalot, talvez a melhor do disco, sintetiza o conceito: sob um loop áspero (imagine o som de um chocalho grudado a um sampler mínimo de baile funk), M.I.A. narra o caso de amor entre um casal islâmico envolvido em casos de terrorismo. “I really love a lot”, diz o refrão, que pode ser interpretado como “I really love Alah”. Mas é outro verso, insistente, que ecoa quando a música termina: “Eu luto contra os que lutam contra mim.” Eis que, sem condenar ninguém, M.I.A. dança no campo minado.
Na face menos incendiária do disco, a web serve de plataforma para casos de amor e crises de identidade. “Você quer que eu seja alguém que não sou realmente”, reclama a apaixonada narradora de XXXO. “Por que as coisas mudam e permanecem as mesmas? Por que as pessoas gostam das mesmas coisas?”, ela questiona, em Tell me why, talvez chocada com as semelhanças entre posts do Twitter. E duas das faixas-bônus atendem por Internet connection e Caps locks.
Antes do lançamento do disco, M.I.A. explicou que: 1. As canções foram escritas num momento de crise, quando ela, isolada em Los Angeles, se sentia desconectada do planeta; 2. Ao lado de produtores como Blaqstarr e Rusko, ela gravou uma jam demorada no estúdio caseiro, uma zoeira de ritmos e loops, de onde tirou as ideias para as músicas; 3. A intenção era criar um disco “tão estranho e desconfortável que as pessoas começariam a exercitar os músculos da crítica”, um projeto “esquizofrênico”.
O resultado soa menos desagradável do que M.I.A. esperava, mas chega perto dos atos de terrorismo musical praticados pelo Flaming Lips (Embryonic) e Radiohead (Kid A/Amnesiac). Chegaria ainda mais perto se o disco não se escorasse em três faixas que podem (e devem) rodar nas rádios sem provocar muita estranheza: o R’n’b fofíssimo de XXXO (uma das canções mais viciantes do ano, de longe), o remake dub de It takes a muscle (do grupo alemão Spectral Display) e Tell me why, uma faixa dançante e sutilmente multicultural que poderia ter entrado no repertório de Music, da Madonna.
À exceção desses três momentos (que aliviam e muito a vida do fã), Maya é cacofonia digital com inúmeros dejetos musicais que, numa primeira audição, soam irreconhecíveis. Nos álbuns anteriores, ainda dizíamos que M.I.A. mesclara hip-hop com funk carioca e bhangra. Agora, não dá mais: essas e outras influências são trituradas num caldo grosso, com tempero ardido de punk (em Born free, com sampler de Suicide) e de neo-industrial (Derek E. Miller, do Sleigh Bells, também colabora).
É um disco que permite (até alimenta) a divisão de opiniões: uma obra aberta, espinhosa, que será atacada por muita gente e tratada como uma revolução por outros tantos. Até aqui, goste ou não, é o álbum pop mais urgente do ano.
Em momentos como Teqkilla e Meds and feds, o disco se desprende de qualquer padrão melódico e vai criando camadas de ruídos sobre ruídos. São arquivos que soam como arquivos corrompidos (no segundo caso, M.I.A. consegue sujar a já sujíssima Treats, do Sleigh Bells). É o choque, o vírus que corrói a rede.
Mas, ao fim deste ‘post’ de 42 minutos, M.I.A. volta ao pop (e ao mundo real) com um canção que atualiza o desencanto de No surprises, do Radiohead, e a fase Zooropa do U2, quando um Bono Vox desplugado comentava sobre um mundo com centenas de canais de tevê, mas nada de interessante na programação. “Minhas linhas caíram, você não pode me encontrar. Preciso passar um tempo com você. Não há nada de novo no noticiário da tevê”, canta M.I.A., depois do fim do mundo.
E assim termina o apocalipse digital: numa tentativa de contato. Humano e (parem as máquinas!) real.
Terceiro disco de M.I.A. 12 faixas, com produção de Blaqstarr, Diplo, Switch, Rusko e M.I.A. Lançamento NEET, XL Recordings, Interscope. 8.5/10
Remind me | Röyksopp
Já que o momento é de flashback da década (e volto com a lista dos melhores discos no início da semana que vem, prometo), aí vai um clipe que descobri recentemente e entraria seguramente num top 20 meu. Criado pelo estúdio francês de animação H5, o vídeo de 2007 explica o mundo, a vida e tudo o mais num punhado de infográficos.