Mundo estranho
Calgary | Bon Iver
No refúgio subterrâneo onde vive este monstrinho visual de Bon Iver, coisas estranhas acontecem: às vezes, a sensação é de estarmos presos numa capa de disco da Enya. Mas há cenas que evocam Lewis Carroll, e aí as coisas melhoram um pouco. De qualquer forma, pode ser usado como instrumento de acusação para aqueles que veem no disco mais recente de Justin Vernon um desejo louco de entrar na programação de madrugada das rádios AM. A direção é de Andre Durand e de Dan Huiting.
Superoito e a praga dos gafanhotos
Quando imagino o fim do mundo, não temo inundações, explosões nucleares, vulcões esquentadinhos, loucos varridos ou hordas de zumbis. A ideia de apocalipse só me parece verdadeiramente terrível quando inclui pragas de insetos.
Aos 11 ou 12 anos, nas aulas de religião, meus ossos tilintavam de pânico ao notar a aproximação da mais sinistra entre as passagens bíblica. Aquela em que o todo-poderoso evoca um vento oriental que infesta de gafanhotos as manhãs e as noites do Egito.
Lembro que a Bíblia, muito objetivamente, relata os prejuízos financeiros provocados pela maldição: nenhuma verdura nas árvores, nem erva do campo. Mas, naquelas páginas, não havia nada, absolutamente nada, sobre a dona de casa que jogava gamão quando, subitamente, se viu atacada por bichinhos esverdeados. Gafanhotos saltitando entre os fios de cabelo, gafanhotos nas orelhas, gafanhotos nas narinas, gafanhotos sob a camisola, gafanhotos boca adentro, gafanhotos e gafanhotos e malditos gafanhotos.
As entrelinhas da Bíblia são um pesadelo.
O que mais me impressiona minha incapacidde para lidar com essa possibilidade. Nunca fui maricas para insetos. Sou o homem da casa e, por isso, eu mato as baratas. Comigo, nenhum mosquito pode. Sou um destruidor de lares quando o assunto é vespa e não sinto nojo ao tropeçar em lesmas. Acho até engraçadinho! Meus nervos são blindados. Na adolescência, me agradava a sensação de trancar mariposas na palma da minha mão só para mostrar às menininhas apavoradas que eu me qualificava, sim, como um baita de um homem.
Mesmo naquele tempo, no entanto, eu apostava (com medo, muito medo) que os insetos seriam os primeiros a nos enxotar deste planetinha vil. Eles viriam em torrentes. Eles cuspiriam líquidos amargos. Eles fariam barulhos nauseantes. E entrariam nos nossos orifícios. E aí o mundo acabaria, já que não suportaríamos a humilhação.
Qual não foi meu espanto quanto, há três dias, ao chegar em casa, notei que meu pequeno apartamento estava tomado por gafanhotos. Dois, três, quatro gafanhotos. Um deles acomodado no meu sofá amarelo. O outro admirava o monitor do meu laptop, que piscava em azul e verde. Havia um na geladeira, dois na escrivaninha. Todos verdinhos, aparentemente pacíficos, idênticos, mais ou menos como uma coleção de origamis criada por um sujeito perfeccionista e desocupado. Miniaturas do armegedom.
Em um primeiro momento, decidi matá-los todos com uma lufada de inseticida. Mas pensei novamente: não é assim que se trata bichinhos tão perfeitinhos e (aparentemente) inofensivos. Se eles resolveram visitar o meu apartamento, eu deveria encará-los como hóspedes desavisados, mas inocentes. Nada de declarar guerra ao inimigo antes da hora. Vertebrados ou não, somos seres civilizados. Cuidadosamente, tentei capturá-los com a pá vermelha. Me aproximei muito lentamente, muito discretamente, muito carinhosamente, muito mais Obama do que Bush, mas todos eles saltitaram, criaram uma confusão infernal. O que me obrigou a avançar sobre a lata de inseticida e, certeiro feito um GI Joe, provocar uma chacina verde na minha sala de estar.
Em vão. No dia seguinte, encontrei mais cinco gafanhotos, dois deles na cozinha. No corredor para o apartamento, encontrei cadáveres de insetos que não resistiram ao confronto com os humanos. Pobrezinhos. E estúpidos, os coitados: no posto de gasolina, perto aqui de casa, vários ainda voam intrépidos em direção à luz e, exaustos, caem fritos no jardim.
No início da noite, a aglomeração de seres verdes era tão vistosa que fechei as janelas do carro para não ser surpreendido por um filhote descuidado. A cena me hipnotizou. Então é isso? O fim do mundo começará pelo meu bairro? Nós, os tranquilos moradores desta região tão silenciosa e pacata, estamos fadados a inaugurar a temporada infernal da humanidade? Seria mais uma entre tantas ironias divinas com que nos acostumamos a viver?
Juro que percebi apreensão, quase desespero, muito mais do que nojo, nos olhos dos outros motoristas. Por mil gafanhotos!, os olhos protestavam. Ninguém parecia acreditar no fenômeno (que, para os moradores, soava como uma completa novidade, nunca antes na história!). Era uma ferroada na nossa rotina, um rasgo na sucessão tão previsível de acontecimentos que organiza a nossa existência. Na fila do sinal de trânsito, os insetos esbarravam nos nossos vidros, lambuzavam o asfalto. Cobravam reações, respostas. Mas a que perguntas? O que eles querem de nós? De onde eles vêm? Por quanto tempo eles ficam?
Seriam eles o resultado de um corte abrupto na cadeia alimentar de um predador? Ou um indicativo de que o pior ainda estava por vir (na próxima semana: gafanhotos mais gorduchos e irritadiços, talvez)?
Estávamos confusos.
Os gafanhotos nos obrigaram a pensar no nosso futuro. O que acontecerá depois? Eles nos atiçaram a raciocinar sobre o funcionamento da natureza, que quase nunca interfere no nosso cotidiano. O que acontece agora?
Ao tirar o lixo, agorinha, ouvi a conversa das vizinhas: “Eles são fraquinhos. Use uma revista ou o chinelo. Eles nem ligam. Ficam paradões. São umas coisinhas.” E, naquele zum-zum-zum de superlativos e diminutivos, comecei a me simpatizar pelos tolos insetos que não oferecem resistência, que são banais, uns equívocos dos deuses, meras perturbações. Uns descerebrados que arriscam tudo por alguns minutos diante da luz branca que queima em nossos apartamentos muito limpos e práticos.
Minha hipótese é que, como acontece com outros insetos menos extravagantes, os nossos gafanhotos também desaparecerão misteriosamente em duas ou três semanas. Não sentiremos falta e, pouco depois, não nos lembraremos desses incômodos visitantes. Estaremos preocupados com outros assuntos. Ou (como acontece frequentemente) tentaremos nos preocupar com coisa alguma. E aquela bizarra imagem de fim de mundo – pragas, eventos inexplicáveis da natureza, gafanhotos pueris em plena cidade grande – ficará guardada no mesmo compartimento do nosso cérebro que armazena flashes de acidentes de trânsito e cenas de filmes ruins.
“Sempre tentei não pensar no futuro”, foi o que minha mãe disse, hoje cedo. Almoçávamos juntos. Quando ela afirmou aquilo, aquela frase (um tipo de conclusão desiludida que não se comunica aos filhos), lembrei dos gafanhotos que me esperavam no apartamento. A confissão me assombrou. Eu sempre evitei fazer planos e, como ela, só agora me dei conta disso. Desse meu traço de personalidade. Dessa minha resistência a imaginar o porvir. Desse desinteresse pelo amanhã. Soou como uma revelação: seria herança materna? Seria genética a doença de não querer olhar para frente?
O que assusta a minha mãe são as cenas dos nossos próximos capítulos. Nossa vida, parte 2. A doença do meu padrasto – e ela não o abanona, não o abandonará – faz com que pensemos no assunto. O futuro está aqui, mais próximo do que nunca. Ele nos vigia. Ele nos instiga. Ele é o gafanhoto no televisor; uma anomalia, um invasor. Diante dele, não sabemos o que fazer. O encaramos com perplexidade. Não entendemos nada, somos crianças – devemos torcer para que ele suma? Ou aceitá-lo como um hóspede permanente?
Sabemos que está na hora de, pelo menos, refletir sobre o drama em que estamos metidos. Mas não são poucas as vezes em que nos pegamos desviando do tema, mudando de assunto. “Conte sobre aquele caso do trabalho”, a mãe provoca. E eu, o filho, narro a anedota mais risível. Reclamo das contas que devo pagar e do mecânico que perdeu a peça do carro e do preço do cereal e das pequenas doenças que não nos atrapalham. Tenho que tomar a vacina e planejar a viagem. Nos irritamos com o que nos parece trivial e falamos sobre isso. Falamos muito, mais do que queremos falar. Isso até o instante em que o grande tema se instala. Aí a cortina cai; encerra-se o espetáculo da normalidade. Voltamos a ser pessoas muito perdidas, bichinhos ao redor da lâmpada, eu e ela.
Mas raros são os dias em que chegamos a tanto. Somos daqueles que deixam para outra ocasião. Sempre. Depois de matar o último gafanhoto, fechei as janelas da sala, do quarto e do banheiro. Isolei o vão da porta com o tapete e um pano de chão. Apaguei a luz do corredor e torci para que os insetos não encontrassem uma fresta. Fiquei em silêncio por meia hora, à espera de que algo inesperado acontecesse. Nada aconteceu. Nada. Era uma noite como as outras. Dentro do apartamento, o planeta ainda girava.
Primeiro pensei: por enquanto. E depois: antes assim.
21st century breakdown | Green Day
Green Day é uma das maiores bandas de rock do mundo? Ainda não me acostumei com a ideia. O que aconteceu com o mundo, afinal?
Fico com a impressão de que poderia ter sido qualquer um. Quem cresceu nos anos 90 talvez sinta a mesma cosia. E se o Offspring, depois do sucesso de Americana (1998), tivesse gravado uma ópera-punk sobre a saga de um anti-herói adolescente massacrado por uma América apocalíptica? E se o Weezer, em vez de abraçar o power pop eufórico e autoirônico, tivesse optado por fechar o sorriso e mirar coração e mentes da juvenília desesperada? E se…
Não, sério: não poderia ter sido qualquer um. Não. Ao contrário do Offspring e do Weezer (e do Foo Fighters e do Korn e do My Chemical Romance e do Oasis etc), o Green Day descobriu o milagre do rejuvenescimento. Mais que isso: o trio parece habitar indefinidamente uma bolha de adolescência. Depois de 22 anos de carreira, Billie Joe Armstrong (37 anos!), Mike Dirnt (37 anos!) e Tré Cool (36 anos!) ainda são três moleques de 16 anos.
Não sei como. E também não me decidi se isso contaria como uma qualidade. Tomemos como um fato, um traço de personalidade. Recorro a Caetano Veloso, Verdade tropical: “Alguém já disse que os homens que fixam seu espírito nos temas enfrentados na infância produzem obras profundas, enquanto os que repetem indefinidamente as questões e ilusões da adolescência estão fadados a girar nessa zona periférica em que se discute repressão, definição sexual e satisfação dos anseios de liberdade. Eu me situo no segundo grupo.”
Se Caetano é uma personalidade atormentada por inquetações de adolescente, preciso fazer uma correção: o Green Day é uma banda de rock pré-adolescente.
Talvez esse espírito de juventude sirva de explicação para as duas ressurreições da banda: depois de ocupar o vazio deixado pela queda do grunge com a despretensão de um punk californiano arejado, divertido (Dookie, 1994), o grupo combateu o cansaço da fórmula e voltou à briga com uma balada pop de sucesso (Good riddance, de Nimrod, 1997). Já ali, Armstrong se mostrava um band leader duro-na-queda, sem vocação alguma para o underground.
O segundo retorno, depois do morninho Warning (2000), viria com American idiot, a ópera-punk inspirada em The Who que, apesar de recebida com críticas desanimadoras (a produção automática de Rob Cavallo e as baladas derramadas pesaram contra — e ainda não consigo ouvir o álbum sem sentir saudades de Dookie), começou a história da estaca zero: conquistou um novo público, virou fenômeno e fez do Green Day um monstro de arenas. Ninguém grava uma parceria com o U2 em vão.
Essa história longa e enfadonha nos leva a 21st century breakdown — que, se dependesse do histórico de altos e baixos do Green Day, seria um projeto fadado ao fracasso, a um (novo) desagaste de uma (nova) fórmula. Mas, pela primeira vez, o trio avança furiosamente na oportunidade de manter-se no topo. Como um summer movie de Hollywood, o disco é uma continuação segura do blockbuster American idiot — mas trata-se de uma sequência que preserva elementos do longa-metragem original como um template para novas criações. Homem-Aranha 2, digamos.
E, bem, devíamos ficar felizes por isso! Ao trocar Michael Ba… Rob Cavallo por Sam Raim… Butch Vig, o Green Day encontrou finalmente o produtor certo para o projeto pop que eles sempre sonharam. Pode parecer tardio, mas 21st century breakdown ergue-se como o manifesto definitivo do Green Day: um álbum tolo, escancaradamente comercial, repleto de baladinhas para seriados de tevê, mas igualmente poderoso no acúmulo de referências de glam e classic rock. Um disco assumidamente comercial, popular, que faz tudo para agradar e, não sem forçar a barra, consegue despertar uma alegria pré-adolescente no ouvinte. Em qualquer ouvinte.
Procurar alguma transgressão no discurso de Armstrong é caçar vanguarda em fita de ação. Dividido em três atos, o álbum acompanha a fuga enloquecida de um casal de outsiders: Christian e Gloria. As canções atacam instituições religiosas (sem citar nomes), governo (e aí cita pelo menos um nome: Nixon), a “opressão da sociedade” (trademark punk) e um inimigo que pode estar em qualquer lugar. Não é uma narrativa tão clara quanto a de American idiot: a paranoia que move os personagens embaça as cenas e situações. E que ninguém esqueça de que, nas bordas do roteiro, existe uma história de amor.
A faixa-título, inspirada em Queen, é ambientada na virada do século. É um flashback adequado, já que o álbum pertence àquela época: é um tipo de superprodução que nasce datada, como um exercício de nostalgia, uma peça à antiga (coloque na mesmo arquivo de Stadium arcadium, do Red Hot Chili Peppers, The black parade, do My Chemical Romance, Viva la vida, do Coldplay, e No line on the horizon, do U2). O formato do disco recicla clássicos como The Who sell out como um cineasta que recorta cenas de Easy rider e cola num videoclipe da Shakira.
Mas existe uma força ingênua no disco que acaba por justificar essa colagem superficial: em quase 70 minutos, o Green Day usa todos os recursos a que tem acesso para manter o público atento, entusiasmado. É uma banda limitada — Bohemian rhapsody, do Queen, já instigou experiências mais ousadas (Paranoid android?) —, mas disposta a testar o próprio fôlego. Daí a forma meio desengonçada como eles tentam expandir um som quadrado e se aproximar do power pop (Last of the american girls é quase Fountains of Wayne), do pós-punk da geração 2000 (Horseshoes and handgrenades copia Main offender, do Hives), e de soft rock levado a sério (o Foo Fighters teria feito uma balada como Last night on Earth, mas com algum sarcasmo).
Estou certo de que o Green Day planejou este álbum como um resumo da ópera — o último grande disco de rock. Soam até preocupados. Na pele deles, eu não me incomodaria. Depois desta geração de adolescentes haverá outra, e depois outra. Quando se tem 16 anos para sempre, essa imagem de futuro deveria servir de conforto.
Oitavo álbum do Green Day. 18 faixas, com produção de Butch Vig e Green Day. Reprise Records. 7/10