Mudança
Superoito não mora mais aqui
(O horizonte na janela do meu apartamento: things they are a-changing)
Sair da casa dos pais, dizem, é um rito de passagem. Um daqueles episódios que modelam o futuro. O primeiro capítulo do resto de nossas vidas. Não? Quase seis meses transcorreram desde o dia em que levei meu colchão, minhas roupas e a tevê para o pequeno apartamento onde durmo quase todas as noites. Seis meses – e, apesar de saber perfeitamente que passei por uma espécie de teste importantíssimo, ainda não consigo avaliar minha performance. A estranha impressão é de que tudo, de alguma forma, mudou. Só não entendo exatamente como.
Há algumas perguntas recorrentes, que interrompem meus pesadelos e martelam alfinetes na minha consciência: como me saí nessa prova? Qual foi o resultado? Fui aprovado? Está tudo ok? Mais importante: se me transformei numa pessoa diferente, quem é ela?
Aparentemente (e surpreendentemente), deu certo. Com o devido distanciamento, sou capaz de reconhecer que cumpri algumas etapas corretamente e que, num período reduzido de tempo e aos olhos invisíveis do mundo, eu tenha finalmente me transformado num cidadão adulto e independente. É esta a versão oficial dos fatos: pago todas as minha contas, compro alimentos e produtos de higiene, lido com impostos e taxas, organizo compromissos, cultivo minha vida social e (um pequeno passo para o homem) estou a alguns minutos de virar sócio na videolocadora da quadra.
Falta plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho. Mas são detalhes. E quem lê livros, afinal?
Para mim, ainda parece incrível imaginar que, há um ano, nada disso parecia plausível. Durante minha adolescência, rejeitei conscientemente as expectativas e os hábitos do cidadão comum. Revoltei-me contra adultos metódicos, conformam com rotinas medíocres. Contra indivíduos sorridentes que, felizes com pouco, contentam-se com empregos maçantes. Deixam-se massacrar pela burocraria. E ainda assim casam-se, têm meninos fedorentos e com eles visitam o zoológico. Eu não os compreendia. Eu não me enxergava neles. A idade adulta parecia apenas entediante e aborrecida: uma infinidade de obrigações que não dão em nada. Muito trabalho, nenhuma diversão.
Talvez por isso eu tenha imaginado que viveria até os 25 anos de idade. Seria o suficiente. Aos 26, me vi sem um plano B. Aos 29, olhei no espelho e notei um adolescente desbotado. Era hora de mudar.
Conheço algumas pessoas que também nasceram no final dos anos 70 e, como eu, viveram sem a necessidade ou a angústia de pensar no futuro – até o momento em que o futuro bateu à porta. Possivelmente faça parte de uma doença geracional: uma resistência quase irracional à idéia de abandonar o ninho. Sabemos que algo está errado, mas não queremos saber. Entendemos a necessidade de seguirmos em frente, mas não entendemos por que. E assim vamos: presos à barra da saia de mães superprotetoras, no aparente conforto de um lar que nos oferece segurança e, como contrapartida, poda nossa liberdade e nos cobra obediência a regras infanto-juvenis. Queremos sair de casa. Mas não queremos.
Desde quando me mudei, virei uma espécie de guru para esse tipo de incerteza. Eu, que pensava ter sido o último solteiro da cidade a alugar uma quitinete, me vi cercado por pessoas em crise, cheias de dúvidas. Pessoas que trabalham, recebem salários razoáveis, freqüentam restaurantes bacanas, gastam uma fortuna com o combo do Cinemark mas, ainda assim, não sabem direito se estão aptas ao Grande Passo. Qual o momento certo?
A elas, só tenho a minha versão da experiência – ainda nebulosa. Não sei muito bem o que aconselhar (e, no mais, este não é um blog de autoajuda), mas compreendo esse tipo de cobrança. Para quem está longe do furacão, o drama pode parecer ridículo, insignificante. Tai você, zombando: “eu me mudei aos 12 anos para um cortiço, quando aprendi a conviver com estivadores e estelionatários: quem quer papo com essa gente imatura?” Para quem está metido lá dentro, é como desbravar uma selva sob ameaça de mães inconsoláveis, chantagens sentimentais, insegurança financeira, aluguéis caríssimos, filas de supermercado, IPTU, vizinhos rabugentos e medo de ter abandonado cedo demais os sonhos de juventude.
Eu, que não sou o superman, também sofri essa trama diabólica. Mas saí vivo e forte. Pergunto-me como.
Para variar, não vou me fazer de vítima: foi até fácil, sabe? Como arrancar um dente de leite. Não há entretenimento no processo de lidar com a papelada do aluguel do apartamento, e organizar as contas com alguma eficiência também leva um certo tempo. Mas, com dois ou três meses, nada disso passa a irritar. Quer dizer: a menos que a operadora de tevê a cabo vá à falência e o obrigue a comprar o pacote de uma concorrente acostumada a preços abusivos. Acontece. Mas é uma questão de saber definir uma margem de risco para absolutamente todas as situações do dia-a-dia. E lidar com autocontrole. Troquei os DVDs pelos livros. Cortei viagens. Não fui ao Coachella (ok, não iria mesmo). Há noites em que passo fome. Perdi cinco quilos. E não consigo reclamar de nada disso.
O que mais mudou na minha rotina não tem a ver com dinheiro, mas com relações familiares. Foi o grande baque. A maior ruptura. Talvez a aventura definitiva. Nesse ponto, tudo está diferente, e não tenho condições de prever o desenrolar da história. Quando me perguntam sobre o impacto da mudança, respondo de imediato: ganhei uma outra família. Note a confusão: eu, uma outra pessoa, ganhei uma outra família. Devo marcar terapia?
Se bem que, descubro lentamente, a boa nova tem um quê de maldição. Não é simples acostumar-se a um núcleo familiar renovado, e a primeira sensação é de que aquelas pessoas que você conhece intimamente não vivem mais com você (reparem que é uma sensação ao mesmo tempo óbvia e profunda). Você é uma visita querida, recebida com sorrisos e regalias. Ao mesmo tempo, você não está lá.
Desde que minha mãe passou a me receber com um generoso tapete vermelho (e toneladas de chocolate), não consigo encarar esse cenário sem dar algumas risadas. Parece que trocaram a aquela mulher por um robô adorável, programado para me agradar. E que, reparem a sofisticação da tecnologia, me telefona algumas vezes por semana para massagear meu ego e me perguntar se está tudo bem. O único defeito de fabricação é que, depois de duas ou três horas de visita, a andróide passa a lamentar a ausência do filho. Às vezes se tranca no quarto. Chora silenciosamente enquanto prepara o pudim.
Passei pela fase em que a distância da família parecia o paraíso. Ok, eu sei, tudo mundo vive esse tipo de coisa e eu devia estar escrevendo sobre o novo álbum do Bob Dylan. Mas veja: até meu padrasto, que não é de muita conversa, me recebia com análises demoradas sobre as principais notícias da semana. Minha irmã, que quase me trucidou com uma faca de cozinha quando eu tinha 14 anos de idade, faz convites graciosos para tocarmos violão e cantarmos canções bobinhas que escrevemos juntos quando éramos pequenos. Até meus cachorros parecem especialmente gentis. Eles sentem minha falta e, mais importante, querem demonstrar isso.
Levou quatro, quase cinco meses para que eu sentisse o empurrão. O susto. Depois de um período de intensa felicidade, me descobri afastado da minha família de uma forma que talvez nunca conseguirei entender. O que aconteceu? Quem deu permissão para que cortassem as cordas que me prendiam ao teto do teatro? Cumpro com afinco a rotina de visitas nos fins de semana, telefono e pergunto por novidades. Ainda assim, é como se eu não participasse ativamente de nada. No tempo em que levei para me acostumar com a ausência da minha família, eles se acostumaram com meu desaparecimento. E decidiram continuar vivendo, corajosamente.
É, veja bem, quase uma idéia de morte. Mais ou menos quando encerramos um longo caso amoroso.
Às pessoas perturbadas pela idéia de mudar-se de casa, evito comentar que existe sim uma conseqüência desagradável para essa saga: mesmo quando não se quer notar, você assina um contrato com a solidão. Ela estará lá, de qualquer jeito. Não haverá como evitar. De madrugada, quando todos os ruídos parecem bombas nucleares. Na estrada que nos leva de volta à casa, depois de um domingo em família. Principalmente quando nosso cérebro começar a tecer prognósticos de um futuro que parece assustadoramente indefinido, incompleto. Diante dele, estamos sós. Com os ruídos. Um apartamento vazio. E ninguém mais para nos guiar pela mão.
Pode ser que aí esteja a resposta para a pergunta que nos atormenta: o que vamos ser quando finalmente crescermos? Um pouco mais solitários, possivelmente. Mas com a esperança tranquila de que, um dia, já perfeitamente curados, conseguiremos lidar com esse e outros tipos de aflição. De uma forma adulta. E sem drama.
Lar doce obra
Talvez vocês não saibam um detalhe sobre meu apartamento: ele fica num canteiro de obras.
E haja obra. A três quadras estão construindo um shopping center. Um terreno em formato de retângulo é perfurado, entortado e implodido diariamente por máquinas pesadas. Parece que montaram uma mini-cidade lá dentro só para abrigar os pedreiros. Sem brincadeira. É gente.
Aqui do lado, no terreno que dá para a janela da sala, começaram a erguer um prédio residencial. Minha paisagem matinal é um rastro de barro com marcas de trator. O som dos pássaros é abafado pelo zunido fino do metal contra as pedras. Ontem saí da garagem e quase bati o carro num caminhão de cimento. “Olha pra frente!”, reclamaram. Eu pedi desculpas. Percebo que, por aqui, o intruso sou eu.
A rua estreita que dá acesso ao meu lar-doce-lar está enfeitada de faixas brancas e amarelas, que anunciam o imóvel “inacreditável”, “imperdível”, a “pechincha” da semana. Não são para o meu bolso. Nada é para o meu bolso. Com a crise financeira, então, perigo trocar meus rins por um jogo de toalhas de banho. Acontece que toda a minha vizinhança está à venda. Tenho a sensação de que habito um bairro que ainda não nasceu. A pré-história de um perímetro urbano.
Mas não estou me fazendo de vítima. Não. Não. Pelo contrário. Vocês não entenderam. Pode parecer incrível, uma tolice, mas estou achando é bom. Tudo aqui me agrada. Me sinto em casa. Acredito que nasci para isso – para viver num canteiro de obras.
Me integro ao ambiente com naturalidade: pela manhã, simplesmente não me incomodo com o barulho. Isso quando não percebo barulho algum. Ele não existe. É como se eu vivesse no meio do mato, ao lado de uma cachoeira, entre as montanhas, com as vacas e os cabritos. Um silêncio. Pensei até que essa sensação era coisa da minha imaginação – ‘a obra comendo tudo e você não ouve nada, Tiago?’ -, mas aí decidi enfiar minha cabeça no vão da janela e ainda assim necas. Uma paz. Os tratores mais aprazíveis do Distrito Federal.
Talvez seja um mecanismo de defesa do meu cérebro. Perdi a audição para obras. Perdi o mau humor para obras. As obras me afagam, sou amigo delas – é a vida se contorcendo, que delícia! E de imaginar que, nos últimos meses em que morei com minha família, eu acordava todos os dias às sete da manhã inconformado com um vizinho que derrubava paredes de madrugada. Era um inferno. É tudo psicológico, já dizia minha mãe. É tudo uma questão de referencial, já dizia meu professor de Física.
Deve ser. Referencial. Ao passar da condição de filho-da-mamãe para a de filho-sem-mamãe, algo bastante sério parece ter mudado na minha vida. E de uma forma tão veloz que ainda me assusta (e por isso eu talvez tente não pensar muito nisso).
Agora freqüento o supermercado semanalmente, troco lâmpadas, arrumo minha cama, levo o lixo para fora, lavo a louça, coordeno instalação de persianas, penduro a cortina do banheiro (que cai no chão logo em seguida – sou um desajeitado), faço meu café da manhã, compro meu suco de laranja e meu mate leão, pago as contas e só não reclamo do barulho do vizinho porque até agora ninguém pisou no meu calo. Mas inventem de pisar!
Apesar da soma de todas as atividades que nada tinham a ver com a minha rotina confortável, me sinto bem fazendo tudo isso. Como explicar? Hoje recebi a conta de luz com um sorrisão. ‘Como sou econômico!’, imaginei, todo orgulhoso. Bobagem? Isso se chama construção de identidade, meu amigo. A partir de hoje, eu, Tiago, sou oficialmente um sujeito econômico. Quem diz isso não sou eu, mas a Companhia Energética de Brasília (CEB).
Confiem nela.
O único problema que enfrentei até agora – e que diz muito respeito também sobre a minha identidade, o meu eu essencial ou seja lá que raios isso signifique – tem a ver com meu senso de decoração. Que é nulo. Isso foi uma decepção. Estou arrasado.
Até semana passada eu me considerava um homem de bom gosto, mais ou menos elegante, daqueles que nunca precisariam da ajuda constrangedora da equipe do Queer Eye for the Straight Guy. Mas aí entregaram a mesa da cozinha (branca, com estofado cinza), que não combinou nada com o sofá amarelo – que, por sua vez, destoou da poltrona marrom e da mesinha de madeira escura.
Mas o estopim da minha revolta foi a maldita persiana. Quando tive que escolher a cor, não hesitei: disse cinza, e fez-se o cinza. Ontem pela manhã, meu apartamento acordou com a aparência de um consultório de dentista.
Caí numa crise braba e besta: por que me deixaram escolher a cor da persiana? Ninguém olha mais por mim neste mundo? Onde está minha mãe? Onde está minha professora do jardim de infância? Onde está a Anistia Internacional? Onde está deus nessas horas fundamentais da vida? Depois comecei a me acostumar com a minha falta de tato para organização de objetos coloridos. Sou um desastre. Mas também um sujeito econômico, enfim. Não sei o que conta mais, sinceramente. Acho que fiquei no empate.
É que, por aqui, as coisas caminham numa sucessão de tentativas. Muitas delas equivocadas. Estou aprendendo comigo mesmo, e isso é lindo e terrível. Outro dia comprei lâmpadas (e quem compra lâmpadas sabe o quanto elas são caras) só para perceber que não era exatamente o produto que eu procurava. Tive que trocar a cortina do banheiro, já que não cabia no espaço do chuveiro. Essas e outras gafes que acompanham um novato no mundo dos habitantes de apês de um quarto – essa estranha fauna de pessoas que saem muito cedo e chegam muito tarde.
Daí que não me incomodo com as obras. Não mais. Contanto que continuem construindo, estarei bem. Não ficarei só. Já que eu mesmo, um tanto tosco, um homem sem acabamento, ainda não me sinto nada pronto.
O primeiro dia
Meu apartamento é muito engraçado. Não tem parede entre a cozinha e a sala, não tem box no banheiro (um banho de ducha equivale a um dilúvio), não tem fogão, não tem mesa nem espelho. Nenhum espelho. Saio do chuveiro e só deus sabe o estado do meu penteado.
Ainda assim (e talvez por causa disso tudo), entrei de manhã cedo e ainda não consigo sair daqui de dentro. Por mim, nem sairia. Não consigo me mover. São oito da noite. Logo no primeiro dia de mudança, ganhei um lar. Eu fico. Digam ao povo que fico.
Escrevo isso ainda impressionado, maravilhado com a forma como este apartamentozinho esquisito me ganhou. Foi no fim da tarde, por volta das 17h. Antes disso, nada ia bem. Eu estava no inferno. E um inferno econômico – que, descobri, é o pior tipo de apocalipse.
Parecia até piada. No mesmo dia, descobri que meu cartão de débito novo ficaria pronto em nada menos que um mês (enquanto isso, tento me acostumar com os avisos de erro de leitura nos caixas eletrônicos), que a revisão do carro sairia por uma soma desesperadora, que o seguro do automóvel vence segunda-feira e que (notem como a coisa só piora) uma escrivaninha mais ou menos decente sai por uns R$ 700. Decidi comprar uma mesa. Uma mesa e nada mais que uma mesa.
Comecei o sábado às voltas com a necessidade de organizar os trabalhos da rapaziada do caminhão de mudança e, mais ou menos ao mesmo tempo, fazer as compras de tudo o que é essencial para o meu dia-a-dia (no tapa, acabei descobrindo o que é essencial). E isso tudo num feriado (só descobri a existência da data comemorativa ontem à noite).
Durante a manhã, desejei sinceramente que o apartamento explodisse. Evaporasse. Seria uma boa desculpa para eu me livrar da decisão de morar sozinho e voltar para o chamego das asinhas dos meus pais. Pensei tanto nisso, e só nisso, que quase não dormi. Esqueci de todo o resto. Esqueci até que eu tinha um blog. Quando somei todos os meus gastos, notei que era um homem falido. Pensei em pedir desculpas para a mulher da imobiliária e desfazer o trato. “Posso assinar o contrado ao contrário?”, e era tudo o que eu queria perguntar.
Acho que foi o orgulho que me fez seguir adiante. Daí que, por volta do meio-dia, eu já estava arrumando meu novo apartamento – como quem joga as malas desejeitadamente na cama de um quarto de hotel. Desinteressado, fiz de conta que não era comigo. Aprendi todos os serviços domésticos em meia hora (algo digno de Guinness Book?). Às 13h eu estava limpando o chão com Veja, um esfregão e um pano encardido. Não sei se eu daria uma boa empregada doméstica, já que derrapei no banheiro e dei de joelho no vaso sanitário.
Quando vi a mini-montanha de caixas no meu quarto, pensei em jogar meus bens mais preciosos (i.e, CDs e DVDs) pela janela. Mas a janela é tão pequena que não serviria nem para o suicídio de um menino de três anos de idade (não que eu tenha pensado na hipótese, mas sei lá, Freud explica, talvez eu tenha me sentido imaturo e impotente como uma criança pequena, de qualquer forma a imagem do petiz suicida me veio à cabeça).
No fim da tarde, depois de ter limpado a sala, o banheiro e o corredorzinho tosco que não leva a lugar algum (mas que dá um bom escritório!), decidi ouvir música. Meu aparelho de som estava ali, jogado no chão (não há estantes por enquanto). Quer decisão mais corriqueira? Saquei meu CD-talismã e, em quinze minutos, o apartamento nasceu de novo. Era outro. Mais amplo, confortável. Meu quarto não parecia ser o quarto de outra pessoa. Não parecia um hotel. Aquela decoração banal dizia muito sobre mim.
Para aproveitar o momento, organizei com lentidão os pratos, os garfos, os copos e o abridor de garrafa. Dobrei as toalhas de banho, ajeitei o tapete da cozinha e o pano de prato. Eu precisava de tempo para entender o processo. O que havia acontecido? Acho que nada. Acho que o resultado da mudança, que parecia impossível, só ele, me mostrou que ainda posso assombrar as pessoas com grandes surpresas – no caso, a pessoa era eu.
Juro que quase caí no choro enquanto guardava o suco de laranja na geladeira (!).
Agora, aqui, neste momento, digito estes parágrafos sentado num tapete velho, apoiado na mesinha que servirá para o café da manhã, o almoço, o jantar, o jogo de baralho. Chove horrores. E é a quinta vez que ouço o mesmo CD. Não sei o que faz com que eu me sinta o homem mais realizado do mundo. Mas é isso. É só mais um sentimento engraçado que não dou conta de explicar.
Se meu apartamento falasse…
… ele diria às paredes: “que inquilino mais verde!”
Hoje à tarde recebi as chaves do apartamento onde vou morar a partir de sábado. Foi como se eu tivesse vencido um Pulitzer. “Está tudo certo, senhor. O aluguel vence todo dia trinta”. E eu: “Com tudo o que está acontecendo no mundo, desejo paz a todos nós.”
Sobre minha cabeça, o brilho de um holofote imaginário.
“Esta aqui é a chave da porta. Esta é a da caixinha do correio. Este é o controle da garagem. Esta é do carrinho de compras.” E eu, uma pilha de nervos: “Explica de novo?”
Depois fui ao supermercado comprar o essencial: uma lata de lixo. E só. Deu branco, não sei mais o que é essencial.
É mais fácil do que parece. Mas também é difícil. Por enquanto, essa história de morar sozinho virou minha rotina do avesso. Esqueça os resorts: passei minhas férias mergulhado em contratos, cópias de documentos, cartórios, vistorias e dilemas financeiros complicadíssimos (qual a melhor forma de parcelar uma escrivaninha? Quantos DVDs terei que sacrificar para pagar a conta de luz?). Tem mais: hoje o dia foi dedicado a encaixotar tudo o que eu havia desencaixotado há três semanas, quando me mudei para o apê da minha avó. Um processo lusitano, mas que, espero, me transformará num encaixotador de mão cheia.
A inexperiência, no caso, atrapalha tudo. Taí um ramo onde os iniciantes não têm sorte nem vez. Fizeram a vistoria e eu nem sabia que esse tipo de procedimento existia. “Olha, você precisa checar se está tudo certo com o apartamento. Tem que pedir pra religarem a luz. Liga no 0800. Depois tem que agendar a mudança lá na portaria”. E eu ainda impressionado com a água que pingava da torneira. Meu apartamento tem uma torneira, e dela sai água (Quem diria, Tiagão, quem diria).
Assim que assinei o relatório da vistoria, caiu a ficha: fiz um péssimo negócio, aluguei o imóvel mais tenebroso da região e ficarei enclausurado lá dentro por no mínimo doze meses. Depois tentei ver o lado positivo da situação toda. Não encontrei resposta. Eu e minha nova vida. Eu e a liberdade. Eu e os gastos mensais. Eu e a conta do supermercado. O sol bateu na minha testa como quem desafia: agora, meu filho, agora aguenta.
Na certa as paredes sorriram. Com sarcasmo.
O neto pródigo
Enquanto procuro um imóvel para chamar de meu, estou hospedado no apartamento da minha avó. Devo passar uns dois meses por aqui, com todas as mordomias a que um neto tem direito.
O que seria uma experiência fantástica – se eu tivesse nove anos de idade.
O apartamento é o mesmo em que morei quando vim do Rio de Janeiro para Brasília, no início da adolescência. Meu quarto está quase igual ao que era. Os móveis, tudo. Só fiz questão de dar um sumiço no quadro com o desenho do burro lilás, que ficava pendurado próximo à porta. Quero deixar claro, talvez para mim mesmo, que finalmente cresci.
Mas às vezes desconfio disso. E minha avó, simpática e dedicada como todas as avós, está sempre pronta a me convencer de que ainda tenho sim, claro, como não?, nove anos de idade. Por aqui sou um neto e netos aparentemente nunca crescem.
Hoje tomei um susto quando ela empurrou a porta do meu quarto às sete horas da manhã com uma jarra de suco de laranja na mão. A avó, coitada, setenta e tantos anos, coluna envergada, se equilibrando com a jarra enquanto o netinho dorminhoco se espreguiçava todo torto, suado, babando, quase pelado e desejeitado aos gemidos de ‘não, não, tá cedo, me deixa dormir, tô de férias, ahn, não, poxa’.
O episódio de sitcom não estava no meu script, por isso senti vergonha. Um desjejum no mínimo cômico para um cidadão que saiu de casa em busca de independência, pronto para aceitar os riscos e as vantagens da idade adulta, um super-herói urbano. No que deu? Acabei aqui, no meu antigo quarto, com uma jarra de suco de laranja preparada especialmente para mim. Não é engraçado?
Para mim, é mais que isso: é um salto na máquina do tempo. Num dos quartos, minha avó mantém uma espécie de museu de família, com fotos antigas e objetos que, daqui a alguns poucos anos, valerão uma fortuna. Perdi quase uma hora redescobrindo todos aqueles penduricalhos, aquelas imagens de uma época que me parece cada vez mais distante. Eu aos dois anos de idade, fazendo careta para a lente. Eu com meus primos na escada do zoológico, fazendo careta. Eu vestido de palhaço num concurso de fantasia, fazendo careta. Eu na minha primeira comunhão, fazendo careta (uma prova de que nunca levei nada a sério).
Enjoei das minhas poses infantis e, exausto, tombei na máquina de costura quase centenária. Derrubei cinco ursos de pelúcia que provavelmente teriam idade para integrar a comissão que elege o melhor filme estrangeiro no Oscar. É um apartamento habitado pelo passado, pensei. Há fantasmas em todo canto. As crianças que estavam em mim, na minha irmã, nos meus primos. Meu avô (que morreu), meu tio (que morreu), todos os carnavais (que morreram).
Quando saio, minha avó de telenovela, de telefilme americano, de anúncio de margarina, de cartão-postal pede para que Deus me guarde e me acompanhe. Avisa para que eu tome cuidado com os carros e que vista um agasalho se fizer frio. Agradeço a preocupação com o sorriso encabulado dos meninos que se incomodam quando os pais os buscam no colégio. Quem diria: igualzinho a quando eu tinha nove anos de idade.
Voltamos a apresentar
Depois de uma temporada em São Paulo, a cidade das filas e dos engarrafamentos, retornar a Brasília numa manhã de segunda-feira deixa a impressão de que a vida numa maquete pode sim, em alguns momentos, a depender do referencial, ser até bastante tranqüila. Quase agradável.
Por exemplo: aqui também estamos todos tostando sob um sol apocalíptico, mas somos convidados a refletir sobre o calor enquanto cruzamos o Eixão amplo, vazio, habitável. Podemos tecer teses, filosofar em silêncio, prever cenários, arriscar estatísticas. O calor, o aquecimento global, o inchaço urbano, o colapso de todas as estruturas.
Em São Paulo, nem há clima para isso. No máximo, corremos para o espaço refrigerado mais próximo enquanto desviamos da multidão, fulos da vida. Nada muito romântico. Na capital levamos o dia-a-dia de uma outra forma, tomamos fôlego – e ainda não entendo por que os grandes intelectuais do Brasil saem da USP e não da UnB.
Passei o dia em meio às caixas de papelão que contêm toda a minha vida minúscula, consumista e, por fim, insignificante. Os CDs, os livros e os DVDs – tudo o que tenho, basicamente. No meu novo quarto, ordenei meus objetos de uma forma desleixada, desapegada, acelerada, talvez na tentativa de fugir da experiência da mudança, tratá-la como bobagem. Não funcionou. Da janela do prédio, tudo o que ouvi foi o ruído de algumas criancinhas que jogavam queimada no playground. Um silêncio. Um silêncio quase infernal.
Brasília às vezes cobra respostas, atiça o desespero. Fica parada com a mão no queixo, silenciosamente à espera de uma crise existencial qualquer. A minha: a idéia de mudar de casa, um movimento que parecia tão simples, provocou uma tarde de tristeza, de saudade. Não estou de manha, já que encarei o processo com dignidade, sem chiliques. Longe da minha família, com quem vivi durante 29 anos, me senti condenado à condição de eterno visitante – e, sublinhem o ridículo da situação, por enquanto estou hospedado no apartamento que conheço há 17 anos. Aposto que, mesmo quando eu me enclausurar numa quitinete, ainda pensarei assim: serei um mero convidado, fora do ninho.
Mas, com o tempo, quem não se acostuma? Com um pouco de barulho nas ruas, provavelmente eu nem estaria preocupado com isso. Só que estou em Brasília – e isso às vezes faz toda a diferença.
Caixas
Passei o dia arrumando minha vida em caixas. Estou de mudança.
Conheço bem esse processo de juntar as tralhas, organizar a bagunça, lacrar as embalagens de papelão, esvaziar o quarto. Não sei se vocês se importam com o ritual, mas para mim sempre foi um momento intenso. Sou dos que encontram uma foto perdida, um livro preferido, uma fita cassete com um programa de rádio que gravou aos cinco anos de idade, uma carta de amor com vírgulas nos lugares mais errados. Essas coisas. Lembranças.
Talvez minha resistência a trocar de casa venha daí. Do medo de voltar a esse momento de encaixotar meu quarto. E de saber que, na poeira, vou encontrar algo surpreendentemente estranho.
Mas hoje foi diferente. Não encontrei nada.
Verdade. Foi como se eu estivesse esvaziando a vida de uma outra pessoa. Ou mais impessoal que isso. Como se eu trabalhasse no estoque da Wal-Mart, de luvas e macacão branco. Ou no Makro, em meio àquela pilha de enlatados. Eu e as caixas. Só rotina, movimentos repetitivos, sem sentimentos fortes no pacote.
Encontrei até uma foto antiga. Eu vestido de Rambo, aos oito. Com faixa vermelha na testa e camiseta preta, calça camulflada. O olhar mais triste do mundo – não me comoveu. Não sinto saudades. Não quero voltar para lá.
Olhei para meu quarto depenado e parecia uma instalação. A bienal do vazio. Paredes brancas, estantes desenhadas como um jogo de dominó. Posso ir embora?
E essa sensação me explica que chegou a hora. Estou de mudança.
Gênero (He’s leaving home)
No meu caso, é drama. Sempre um drama.
Foi assim que aconteceu quando, como quem desembrulha um presente de alguns bons metros quadrados, minha família apresentou a casa. Ontem pela manhã. ‘Só temos um mês, vamos correr com a mudança. Vida nova, vida nova’. E eu, dramático que só eu, perdido, tonto, elétrico naquele fim de mundo. Tanta terra. Uma casa à margem da civilização.
O que seguiu o espanto foi um diálogo patético (é o que acontece por aqui):
– A gente vai poder criar galinha.
– Galinha?
– É. Galinha.
– Galinha, mãe?
– É, Tiago. Galinha. E plantar umas árvores. Naquele terreno ali.
– Mas galinha?
A pergunta que cacarejava na minha cabeça: como foi que não percebi, durante invisíveis cinco meses, as movimentações da minha família para amarrar as trouxas e se mudar para um cantinho aprazível no fundo do nada? Em que universo eu estava durante esse tempo todo?
Primeiro fiz gênero (como eles tiveram a coragem de não me avisar sobre uma mudança esdrúxula para uma casa tão distante de tudo, quase no entorno do Distrito Federal, quase no interior do Amapá?), depois caí na real (eles não têm a obrigação de me avisar, a vida é deles, eles são adultos, crescidos etc), em seguida percebi que aquele era o momento: vou morar sozinho, pensei. Depois avisei: ‘vou morar sozinho’.
E foi um drama. Não sei se é o que acontece com todo mundo. Talvez não. Minha tão adiada decisão de sair de casa foi finalmente definida graças à imagem de umas trezentas galinhas esfomeadas, trancadas num cercadinho insalubre. Depois imaginei os mosquitos. E, finalmente, o silêncio. O silêncio mata.
Engraçado que ninguém aceitou bem o meu surto à J.D. Salinger. De sair de casa assim, num susto. Nem eu aceitei – meia hora depois, comecei a calcular o quanto seria penoso pagar mais de duas contas por mês. Minha família não aceitou – mas fez que aceitou, com aquele discurso dúbio no esquema “esta é a oportunidade perfeita pra você batalhar pela liberdade que você sempre desejou, filhão, mas vamos esquecer esse assunto por um minuto e conversar sobre os móveis do seu quarto novo?” Ficou um impasse, estranho impasse.
E, como prova definitiva de que há pelo menos outros três reis do drama na minha casa, passamos o sábado sob o domínio de uma pesada lei do silêncio. Ninguém falou. Nada. Nem na hora do almoço, anunciado com uma série de sinais familiares, grunhidos e barulhos. Nem na hora em que minha mãe pede religiosamente para que fechemos as janelas e, em seguida, dispara o apito do alarme. Ela fechou as janelas por conta própria.
No dia seguinte, de manhã cedo, meus pais já estavam de volta à rotina – catavam caju, brincavam com os cachorros, comiam mamão. Mas minha rotina já estava em outro canto, boiando nas palavras minúsculas dos classificados. No início da tarde estávamos todos conversados. ‘Você vai morar sozinho mesmo? Está decidido?’, ainda perguntaram, à espera de uma resposta terrivelmente agradável, do estilo ‘não, não vou, nós vamos viver juntos num cubículo sem ventilação até o fim do mundo’.
Mas aí respondi que sim. Em um mês. Trinta dias e estou fora. Até porque não existe outra possibilidade. Há os motivos práticos incontestáveis (custo com gasolina, engarrafamentos quilométricos para chegar ao trabalho, incompatibilidade com a vida tranqüila na floresta, fugir das galinhas), mas há o argumento que todos entendem mesmo quando não é pronunciado. A hora é essa. Já vou tarde. Meu tempo era ontem. Entre os filhos que deixam a casa dos pais, sou um retardatário. Estou na contramão do curso da vida.
Agora à noite, me pediram para fechar as janelas, ligar o alarme, apagar as luzes da sala, lavar os copos sujos e recolher os jornais de ontem, amontoados na mesinha da sala. Por antecipação, senti saudades. E, dois minutos depois, alguma vergonha do drama que ainda virá.