Morte

Os discos da minha vida (45)

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A incrível, terrível, estranha (porém previsível) odisseia dos 100 discos da minha vida chega a um episódio especialmente mágico. É que estamos coladinhos no top 10, meus amigos, prontos para a última etapa de uma viagem que começou em… em… quando mesmo? Não lembro. Mas faz um tempão. Um tempão

Estou pensando em alongar o suspense e, a partir do próximo capítulo, ir postando um disco por semana. O que vocês acham? Seria uma desculpa, é claro, para escrever um pouco mais sobre cada álbum, numa torrente quente (e desnecessária) de sentimentos e lembranças. Mas, se vocês preferirem, posso abreviar o novelão e ir aos finalmentes. Então? Vocês é que sabem.

Não custa lembrar que esta aqui é uma lista pessoal  (por isso, sem ambições técnicas, talvez filosóficas) de discos que marcaram a minha vida. Esse critério explica por que há muitos álbuns dos anos 90, época em que eu era adolescente (e cada disco era uma questão de vida ou morte). Aqui, Elliott Smith vem antes dos Rolling Stones. Mas acho que aqui mesmo.

No mais, não existe nenhuma incoerência nisso: no meu ranking de discos mais importantes, influentes, venerados, desejados, adorados etc, não tem Elliott Smith (coitado do homem, mas a vida é assim).

Esta semana, em vez de tecer defesas rocambolescas e apaixonadas para álbuns que são unanimidades, vou seguir jurar fidelidade à lógica desta série de posts e escrever textinhos também muito íntimos, sobre como eu encontrei esses dois álbuns extraordinários e como eles me atropelaram sem que eu percebesse. Simplezinho, ok? Ok.

012 | Automatic for the people | R.E.M. | 1992 | download

O meu primeiro do R.E.M. foi Out of time (1991), uma fitinha-cassete adorável que ganhei de aniversário e ouvi alegremente até o dia em que meu microsystem resolveu trucidá-la com uma mordida. Foi triste. Mas, um ano depois, aquele álbum colorido e melodioso já parecia pertencer à minha infância. Existia uma distância enorme que nos separava, e Automatic for the people chegou como que para mostrar que o R.E.M. estava ciente disso. Aquele era um disco mais cinzento e rarefeito, mais ou menos como eu me sentia em 1992, ano em que me mudei do Rio de Janeiro para Brasília. Depois descobri que era uma espécie de tratado sobre morte e luto, mas na época me parecia um aviso sereno de que uma fase na minha vida havia acabado. So long, meninice. Também era o disco que me uniu ao meu padrasto num período em que mal nos entendíamos. Criou-se um elo, finalmente. Em 1992, Automatic soava como uma ladainha talvez adulta demais, límpida em excesso, um sinal cristalino emitido de um radar distante, velho, suspenso no tempo. Um disco que sempre esteve lá, out of time. Hoje vejo apenas como um álbum lindamente polido, obra-prima desde o berço, perfeito demais para ser verdade. Top 3: Nightswimming, Drive, Everybody hurts.

011 | A tábua de esmeralda | Jorge Ben | 1974 | download

O disco de Ben, o meu brasileiro preferido, me leva ao tempo em que eu aprendia violão (sem muito sucesso). O professor fazia de tudo para defender a delicadeza sublime e a eternidade das batidas da bossa nova, mas aquilo me aborrecia de tal forma que eu acelerava as lições para chegar aonde eu queria: nos Beatles. As melodias que me atraíam eram as de Jorge Ben, os sambas do início de carreira, mas o professor dizia que eu não estava pronto para elas. E me indicou A tábua de esmeralda, uma “suruba de violões, muito louca” (nas palavras do sujeito, sempre muito saidinho). Quando ouvi o disco, saquei imediatamente o que ele quis dizer: não lembro quantas vezes reprisei a introdução de Os alquimistas estão chegando, tentando entender como aquilo era feito. E realmente soava como uma sandice: o Ben que deslizava naquelas músicas não era o malandro galante&sacana dos anos 60, mas um guru louco e genial, tentando engavetar os segredos do universo dentro do refrão – será que Philip K. Dick ouviu aquilo ali para escrever Valis, de 1981? Mas foi quando ouvi o ingrês de Brother que bateu o alívio: então temos o direito a criar músicas que soam como jogos infantis, canções sem sisudez alguma? Depois daquela revelação, as aulas de violão ficaram mais divertidas. Top 3: Brother, Os alquimistas estão chegando, Magnólia.

Após o pulo, veja os discos que já apareceram neste ranking.

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Trecho | Diversão

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“A única coisa que nos consola de nossas misérias é a diversão. E no entanto é a maior de nossas misérias. Porque é ela que nos impede principalmente de pensar em nós e que nos põe a perder insensivelmente. Sem ela ficamos entediados, e esse tédio nos levaria a buscar um meio mais sólido de sair dele, mas a diversão nos entretém e nos faz chegar insensivelmente à morte.”

Pascal, em Pensamentos.

Superoito e a morte do cão

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Meu cachorro, o beagle encardido e magricelo, morreu.

Recebi a notícia do modo mais frio. Uma mensagem de celular. “O cão morreu”. O motor estava ligado e permaneceu assim por uns três, quatro minutos. Nenhum movimento, apenas o zumbido irregular de todas as manhãs. As peças chacoalhando preguiçosamente, aos soluços. Uma névoa seca, alaranjada, borrando a paisagem. Um vulto desceu no retrovisor. E eu agarrado ao volante, fixo e tenso, como quem resolve acelerar para dentro de um tufão.

Depois consegui sair do estacionamento e o dia, que deveria ter seguido mais ou menos como os outros, começou a me parecer hostil. O que havia acontecido?

Telefonei para minha irmã e ela improvisou o obituário. O cão, que estava internado há uma semana em um hospital canino, sofria de uma infecção renal que o maltratava a cada dia. Era pele e osso, o pobre mamífero. Mal se aguentava sobre as quatro patas. Quando fazia frio, ele se encolhia feito um tufo de lã enrolado num graveto. “Era a hora”, minha irmã explicou. “Mais cedo ou mais tarde…”, continuou. E eu preenchi as lacunas. Ficamos em silêncio. Dizer o quê? Murmurei algo como “é uma pena, mas…”, e continuamos naquele passo, fazendo rodeios no reino do subentendido.

Certamente havia um ritual a ser seguido em casos como esse. Quando um cachorro morre, o que se faz? Eu não sabia. Até hoje, meus cãos não morriam. Eles não morriam. Obviamente, todos, sem exceção, partiram dessa para uma pior. No entanto, não acompanhei as etapas finais, as agonia dos últimos dias.

Meu primeiro cachorro, um poodle muito peralta, mudou-se para a casa de uma dentista e não mandou notícias. Os cães da minha avó morriam à rodo, atropelados, espremidos e alargados feito massa de macarrão, lançados à estratosfera sempre que se atreviam a desfilar numa avenida perigosíssima que começava lá no início do mundo e terminava no juízo final. Eram uns infelizes, uns sem-futuro.

Desde pequeno, me convenci de que, como acontece com as pessoas, cães morrem todos os dias, atropelados ou não. E cães geralmente somem muito antes das pessoas (e bem depois dos peixes, por exemplo).

Hoje descobri (tarde demais?) que nenhuma dessas certezas se sustenta quando o cão que morre é o seu cão.

O que senti, para ser sincero, foi um misto de tristeza e constrangimento. Primeiro a tristeza, depois do constrangimento. Em seguida, os dois juntos. Constrangimento por ter me sentido tão triste com a notícia, com aquela mensagem lacônica de celular. Desconfio até que chorei um pouco, umas fungadas descontroladas que se perderam dentro do barulho do carro, mas me recuso a confirmar essa informação. Suspeito até que cheguei a pensar em algo muito sentimental e tolo como “meu cãozinho!”, mas não, isso não deve ter acontecido.

Me surpreendi, isso sim, com a intensidade desses sentimentos. Todo aquele drama por conta de um beagle temperamental? Um animalzinho ranzinza e feioso, que, ao contrário do meu golden retriever (esse sim, um gentleman), sequestrava minhas cuecas e se entortava no vão da porta para mijar no tapete da sala? Do que eu sinto tanta falta?

Talvez eu sofra com as memórias onde o beagle aparece. Meu padrasto na varanda, a melancolia em pessoa, já adoecido e perplexo com a doença, acarihando aquelas patas quase invisíveis. Ou o dia em que, internado no hospital canino para tratar das orelhas, o beagle reuniu minha família inteira dentro de um cercadinho fedorento, de ladrilhos sujos, como bichos no zoológico. E, mesmo sem querer, foi o responsável por uma daquelas cenas lindas e ridículas que resumem a existência.

Pode ser (não descarto a hipótese) que tenha a ver com a ausência dele, o espaço em branco que o cão deixou. Isso, de alguma forma, me machuca.

Há três anos, adotamos o beagle. Nenhum outro dono queria saber dele. O cão era inofensivo porém arruaceiro. Só fazia o que dava na telha. Montava nas cadelas dos vizinhos e devorava as plantas do jardim. Era uma peste. Nos primeiros dias, ele travou guerras desastradas com meu golden retriever. Perdeu todas. Semanas depois, um não conseguia viver longe do outro. Melhores amigos para sempre.

Assim que o beagle foi levado ao hospital, meu golden retriever se recusou a dormir fora de casa. Era uma novidade. Mais educado e metódico do que qualquer pessoa que conheci, o cachorrão só entrava em casa em dias de tempestade ou jogos de futebol (ele teme os fogos de artifício como quem se arrepia com imagens de explosões atômicas). Sem o beagle, no entanto, ele resolveu nos desobedecer. Eis o legado do cachorro morto: a desobediência.

Daí que compramos outro cão: um labrador de quatro meses que, talvez à procura de uma saída, cava buracos profundos na terra e continua cavando.

Ainda um tanto estremecido (e envergonhado: cães morrem todos os dias), telefonei para minha mãe. Ela soava miúda. “Chorei a manhã inteira”, confessou. “É complicado…”, eu arrisquei. “Mas é só um cachorro, Tiago. E tudo o que vem acontecendo com a gente…”, e ela quase continuou, mas ainda é difícil chegar ao assunto número um. “Não era só um cachorro”, eu consertei. E eu, novamente: “Tudo o que está acontecendo talvez nem tenha a ver com isso, com o cachorro, sabe? O cachorro estava morrendo há semanas, estava fraco, então não tem a ver”. “Pois eu acho que tem sim”, minha mãe disse, com muita convicção, e eu acreditei nela. Desligamos o telefone quase ao mesmo tempo.

Eu não disse mais nada. Nem ela. Tentei mudar de assunto e perguntei sobre meu padrasto. Era a questão de todas as noites. “Como ele está?” E a resposta costuma ser: “Como sempre”. Uma resposta falsa, mas reconfortante. No dia anterior, ele se perdeu no caminho de uma loja que conhecia melhor do que todos nós. Antes disso, perto da barbearia onde ele corta o cabelo, meu padrasto olhou para mim (olhos vazios) e perguntou: “O que estamos fazendo aqui?”

Os flocos de memória se desintegrando como pulgas sob uma chuva de inseticida.

O que estamos fazendo aqui? O que estamos fazendo aqui? Eu forcei um sorriso. Está tudo ok, meu sorriso dizia. Mas meus ombros pesavam. “Cortar o cabelo, lembra?”, eu tentei orientá-lo. E ele (olhos vazios) respirou fundo.

Hoje pela manhã, quando soube de notícia, parece que meu padrasto chorou. Dizem que ele chorou. Deve ter chorado, ou sentido o mesmo vulto terrível que me paralisou ao volante por alguns minutos. Deve ter acontecido. Mas não conheço quem confirme a informação.

All days are nights | Rufus Wainwright

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Talvez seja leviano julgar um disco pela capa (vide esta coisa medonha). Mas, no caso de Rufus Wainwright, não há erro: sempre existiu um esforço consciente de resumir a atmosfera de cada álbum já no projeto visual do encarte. O pop barroco de Want One e Two (2003/2004) era embalado num colorido kitsch, cafona de propósito. Já em Poses (2001), Rufus interpretava o personagem principal do disco: o popstar melancólico, condenado pela própria beleza. Release the stars (2007), o “álbum de Berlim”, abria com um detalhe do altar do Pergamon, um monumento pomposo reconstruído num dos museus mais visitados da Alemanha.

Existe uma qualidade cinematográfica nos discos do cantor e, até por uma questão de coerência, as capas funcionam como os melhores pôsteres: aqueles que vendem o peixe, mas não traem a obra.

É por isso que, para os fãs de Rufus, a maior surpresa sobre All days are nights: songs for Lulu começou a ser revelada assim que o cantor divulgou o “cartaz”. É, de longe, a imagem mais austera que ele já estampou num disco: um olho feminino, coberto por sombras e tingido em preto, encara a câmera. Apenas isso. E é espantoso como essa imagem contém a obra inteira.

Como suspeitávamos, não há cores extravagantes em All days are nights. Desta vez, o clique é seco. Olhos nos olhos. Fotografia granulada. Quando começou a rascunhar Release the stars, Rufus planejava um disco inteiro de canções interpretadas somente com voz e piano. Na turnê, chegou a apresentar-se sem banda (no show excelente que fez aqui em Brasília, por exemplo). Mas, talvez instigado pelo produtor Neil Tennant (Pet Shop Boys) e pelas boas experiências em Berlim, acabou criando um disco ensolarado, sereno e pop. No novo, ele retoma aquela antiga ideia num momento especialmente difícil: pouco depois da morte da mãe, a cantora Kate McGarrigle, Rufus expurgou um disco que soa como um réquiem respeitoso, contido.

Não é só a pose glam, as afetações calculadas e o teatro de excessos que perdem a vez. Até o humor venenoso e autocrítico, uma das características que contaminam todos os discos de Rufus, se ausenta num álbum que, se fosse um filme, teria sido dirigido com as restrições do movimento Dogma 95. Nada de orquestras, coros, guitarras, teclados, canções alegres ou finais felizes. Os versos dessas canções de despedida, à exceção de três sonetos de Shakespeare (voltaremos a eles), são quase singelos: cartas de família, páginas de diário, conversas ao telefone, confissões rabiscadas às pressas. Essa falta de rebuscamento parece proposital, como se Rufus quisesse compor um disco tão cru e desencantado quanto Pink moon, de Nick Drake, e Tonight’s the night, de Neil Young.

Pelo menos até a quinta faixa, All days are nights filia-se rigorosamente a essa linhagem: é a sequência de canções mais tocante que Rufus já gravou (e não é por capricho que, nos shows, ele toca todas as músicas do disco sem intervalos para aplausos). Para quem está disposto a ouvir estas confissões, a sensação de cumplicidade é inevitável. Em Who are you New York?, a faixa de abertura, Rufus caminha desnorteado pela cidade, que tornou-se irreconhecível. Na segunda faixa, Sad with all I have, admite que é um homem infeliz e, com o discurso romântico que lhe é muito típico, admite que só encontra conforto numa única pessoa.

As melodias, gentis e doloridas (ainda com a empostação teatral que é a marca do cantor), parecem citar Cole Porter, o Frank Sinatra de In the wee small hours, o Elvis Costello mais jazzístico. Na terceira canção, Rufus tira de vez a máscara. O autor está nu. Martha é a reprodução de um diálogo com a irmã, Martha Wainwright. “Está na hora de irmos visitar nossa mãe no Norte. As coisas estão ficando mais difíceis. Não há mais tempo para ficarmos irritados um com o outro”, canta. Num andamento mais acelerado, Give me what I want and give it to me now indica a perda da fé. A seguinte, True loves, celebra os amores verdadeiros com a simplicidade de uma canção teen. “Um coração de pedra nunca vai a lugar algum”, diz, sem cinismo.

Eis que, daí em diante, o disco transforma-se em outro. O conceito musical permanece – voz e piano, sempre -, mas a ideia de musicar três sonetos shakespearianos acaba por provocar um desnível no repertório. Existe uma conexão clara entre os poemas e o disco, e é curiosa a experiência de combinar a escrita floreada dos poemas com o estilo econômico do disco. Mas essas músicas provocam um desvio de rota quase definitivo, e um tanto frustrante para quem acompanhava o disco até ali (as faixas fazem parte de um projeto desenvolvido por Rufus com o diretor de teatro Robert Wilson).

As canções seguintes não provocam os calafrios da primeira parte do disco. Em The dream, Rufus lamenta que todo sonho vem acompanhado de um pesadelo. Nesse ponto, as limitações sonoras começam a incomodar. A última música, no entanto, volta a emocionar: Zebulon lembra do período em que Rufus passou cuidando da mãe, que enfrentava um câncer. “Minha mãe está no hospital, minha irmã está na ópera, eu estou apaixonado, mas não vamos falar sobre isso”, comenta. “Seu nariz sempre pareceu grande demais para o seu rosto. Mas ele faz com que você pareça sexy, mais como uma pessoa que pertence à raça humana.”

E aí o álbum termina. Sem clímax nem nada. Nas condições em que foi escrito e gravado, talvez não haveria outra saída. Rufus sempre escreveu canções que espelham as próprias experiências, e All days are nights não é exceção. Segundo ele, o subtítulo do disco, Songs for Lulu, refere-se a uma personagem (Lulu) que simboliza a escuridão humana. Ainda assim, é um álbum menos sombrio do que parece: aos 36 anos, Rufus entende que, diante da morte, toda revolta é inútil. Prefere refletir serenamente sobre tristezas que são incontornáveis.

Release the stars já indicava a mudança. Mas é em All days are nights que Rufus encara a idade adulta. Para quem o acompanha, será como encontrar o retrato de um outro artista. Eu também senti um certo incômodo. Com alguma paciência (e desprezando a segunda parte do disco, que dilui um início extraordinário), esse performer sem maquiagem parecerá estranhamente comum – um príncipe expulso do reino, perdido num mundo igual ao nosso.

Sexto disco de Rufus Wainwright. 12 faixas, com produção de Rufus Wainwright e Pierre Marchand. Lançamento Decca/Polydor. 7/10

Mark Linkous, R.I.P.

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Todos os discos gravados por Mark Linkous soam um pouco como cartas de suicídio – até os falsamente otimistas, como o excelente It’a a wonderful life (2001). Mas, ainda assim, recebi a notícia da morte do compositor – o homem-Sparklehorse – como uma surpresa terrível. Ela chega no momento em que finalmente ficaram acertadas as negociações para o lançamento do projeto Dark Night of the Soul (com Danger Mouse), atravancado pela EMI.

Como nas canções de Elliott Smith, o desespero de Linkous nunca pareceu encenado. Pelo contrário: deixava no ouvinte uma sensação dolorida de impotência. Diante das caixas de som, éramos testemunhas, confidentes – mas não havia como ajudá-lo. Daí a dificuldade que é ouvir um disco como Good morning spider (1998), tristíssimo, ou até o próprio Dark night of the soul, todo narrado em tons de cinza, sussurrado. 

Nos álbuns mais recentes, Linkous usou da ironia para camuflar o sofrimento: It’s a wonderful life e Dreamt for light years in the belly of a mountain (2006) amenizam a tragédia com alguma tinta de fantasia. Mas, desde o início (meados de 1995), ele não conseguiu (ou não quis) esconder essa tal “escuridão da alma”. Era o que esperávamos dele, aliás. Mas existe algo de heroico na coragem dos que aceitam sofrer em público?

Não faço ideia.  

Aos mais fortes, recomendo Good morning spider, um dos meus discos preferidos dos anos 90. Mas aviso: é uma paulada.

J.D. Salinger (1919-2010)

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‘No subsolo do hotel, por onde os banhistas eram obrigados a entrar, uma mulher com o nariz coberto de pomada tomou o elevador junto com o rapaz.

– Por quê que você está olhando para os meus pés? – ele lhe perguntou, quando o elevador se pôs em movimento.

– O quê que o senhor disse?

– Perguntei porque é que você está olhando para os meus pés? – ele lhe perguntou, quando o elevador se pôs em movimento.

– O senhor vai me desculpar, mas acontece que eu estava olhando para o chão – a mulher falou, e encarou a porta do elevador.

– Se quer olhar para a droga dos meus pés, diga logo. Mas não precisa ficar olhando escondido.

– Deixa eu saltar aqui mesmo, por favor – a mulher disse rapidamente para a ascensorista.

As portas se abriram e a mulher saiu, sem olhar para trás.

– Eu tenho dois pés normais, pomba, e não admito que ninguém fique olhando para eles – o rapaz falou – Quinto, por favor.

Tirou a chave do bolso do roupão. Desceu no quinto andar, caminhou ao longo do corredor e entrou no 507. O quarto cheirava a mala de couro nova e a removedor de esmalte de unhas.

Olhou de relance na direção da moça que dormia numa das camas-gêmeas. Caminhou até uma das malas, abriu-a e, sob uma pilha de roupas de baixo, apanhou uma Ortgies automática, calibre 7.65. Soltou o pente de balas, examinou-o e enfiou de novo no lugar. Armou a pistola. Feito isso, foi sentar-se na cama desocupada, olhou para a moça, apontou a pistola e deu um tiro em sua própria têmpora direita.’

Um dia ideal para os peixes-banana, em Nove estórias (1948)

Jay Reatard, 1980-2010

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Não é minha intenção transformar este blog num Campo da Esperança, mas não posso deixar de lamentar a morte de Jay Reatard, aos 29 anos. Morreu dormindo, poucos meses depois de ter lançado o ótimo Watch me fall. Ironicamente, o disco surpreendia por mostrar a possibilidade de um futuro não menos que brilhante, e inesperadamente pop, para uma figura que cresceu em meio aos punks.

Taí: o álbum virou testamento (e, ouvindo agora, até que soa como um testamento muito digno). Nem que por curiosidade mórbida, sugiro que vocês dêem uma chance a Watch me fall e descubram o que perderam.

Minha noite sem Rohmer

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Morreu o meu cineasta preferido. Eric Rohmer. 1920-2010.

Ele estava velhinho, 89 anos. Veio a notícia. Até fiz de conta que era engano. Daí soube que perguntaram: “Eric quem? Eric Romero?” E fiquei ali sem saber se o problema era comigo, que tratava aquele francês como uma espécie de pai, ou com os outros.

Não: pai seria um exagero (tenho dois e eles me bastam). Melhor seria dizer tutor, professor. Mestre. Rohmer não foi o único culpado por minha devoção ao cinema, mas ele me ensinou uma das lições principais. Que os filmes estão cheios de vida.

Os filmes de Rohmer me inspiraram a escrever sobre cinema, a entender algumas das minhas incertezas, a refletir sobre desejo e paixão, a experimentar uma juventude que não era a minha, a descobrir que eu não nunca soube exatamente o que fazer com as minhas férias, a tirar alguns dias na praia, a me apaixonar pelas ideias de garotas incrivelmente inteligentes, a travar longos diálogos com pessoas de ficção que soavam indecisas, frágeis, hesitantes, tolas e verborrágicas (às vezes insuportáveis) como eu.

É dificílimo, por isso, escolher um título que resuma a aventura. O próprio Rohmer admitiu que não estava preocupado com os filmes em si, mas com um conjunto de obra que se assemelhasse e um grande livro de contos. Ainda assim, sugiro um itinerário particular, que começa em Conto de verão (obra-prima sobre ter 20 e poucos anos) e segue com Minha noite com ela, O joelho de Claire, O amor à tarde, toda a série Comédias e provérbios numa maratona obsessiva, A inglesa e o duque (e os falsos dramas de época), A colecionadora e todos os outros, repetidas vezes.

Você, neófito, vai ser iluminado pela revelação de que Rohmer fez um só filme. E que essa história não termina, não vai terminar nunca.

Superoito mais frio que a morte

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Tiago, observe: as pessoas morrem. É natural. Nascem, crescem e morrem. Como as folhas das árvores, elas acabam por se soltar dos galhos e cair. Como as frutas, apodrecem. Note os mosquitos no exato momento em que eles tombam zonzos no chão da cozinha. É a morte de um inseto. O tempo galopa e estamos todos no mesmo vagão. Existe um ciclo. Olhando racionalmente para tudo isso, o que resta? Apenas um ciclo. Nada mais.

E é o que é. Não é?

1. O herói da peça

Tenho um amigo que tenta escrever uma peça de teatro, mas nunca consegue chegar ao terceiro ato. Quinze minutos de espetáculo e o herói está morto. O homem escreve uma carta para a namorada, organiza os talheres na mesa, alimenta o cachorro, faz uma refeição cara e, no clímax da trama, engole um copo de veneno com gosto de melão. Meu amigo fala em morte como quem pede um sanduíche com muita mostarda.

O herói suicida parece até que não suporta viver dentro daquela peça, daquele texto, daqueles diálogos, daquele espetáculo enfadonho e vago, com situações que não dão em lugar nenhum. Meu amigo narra o plot macabro e dá uma risada. Gosto deles – do meu amigo e desse herói meio bege, meio tolo, que resolve saltar da trama antes que a trama termine com ele.

– Esqueça essa história. Vamos escrever um roteiro de cinema. Que tal?

Há algumas semanas, descobri que ele é um dos meus grandes amigos. O medo da morte segue me perturbando, e você conhece um grande amigo quando consegue conversar francamente com ele sobre o tema dos temas: a morte. É o que sinto. Medo de morrer. Medo de saber da morte das pessoas que amo. Medo do futuro. E de todo o resto. Se eu continuar desse jeito, vou terminar trancado num compartimento estéril, esperando e esperando e esperando o fim do terceiro ato. Também tenho medo disso.

Antes, o medo era agudo. Ia roendo meus sonhos e me despertava às quatro da manhã. Eu – testa suada – e o vento frio pela janela. Há uns cinco dias, convivo com ele de uma forma mais serena. Está lá, estamos lá, mas fazemos de conta que não nos conhecemos, que nos estranhamos e, quando nos cruzamos na rua, não nos olhamos nos olhos. Fazemos silêncio e fica tudo bem.

Eu e meu amigo, onde estávamos? Numa lanchonete. Quando mesmo? Uma terça ou uma quarta, era noite, era uma daquelas noites que se arrastam indefinidamente, e lembro do vento gelado e que alguns adolescentes jogavam bola no gramado próximo ao centro comercial e os sanduíches não prestavam. Conversávamos sobre os temas de sempre (cinema e talvez trabalho) quando finalmente me rendi ao cansaço de não falar sobre o único tema que me interessava.

– Posso dizer uma coisa? Não sei o que fazer da minha vida. Parece que tudo está morrendo.

Eram palavras duras. Ainda não entendo por que as pronunciei. Como meu padrasto, que está para sempre doente, sou um sujeito polido e reservado. Como meu pai, que nunca aparece por aqui, tento construir a imagem de quem leva tudo na esportiva, com o humor tranquilo de um monge. Reconheço até que, apesar de um engasgo, elas saíram sem me machucar.

Foi aí, certeza que sim, que ele desandou a contar sobre tudo. Sobre o herói suicida da peça de teatro, que era ele próprio. E sobre a morte de um tio, que pulou da janela sem deixar duas frases num bilhete. Ficamos em silêncio. Os sanduíches estavam mais frios que a própria morte.

– Eu mesmo não sei por que estou vivo, cara – ele sussurrou – Quando penso muito nisso tudo, não sei por que ainda estou vivo.

– Prefiro não pensar nisso tudo.

– Mas você pensa nisso tudo?

– Até muito.

– Eu penso sempre. Sempre.

Eu faria uma piada e viraria o LP. Mas não era o caso. A minha tristeza, meus medos, tudo ganhou um outro tom – um tom pastel? Uma coloração rósea? – quando notei que aquele sujeito falava sério. Ele sussurrava de uma forma trágica, grave. Fiquei com vergonha dos meus dramas, que pareceram pequenos e simples. Não são, mas pareceram. Meus dramas são enormes e complexos, mas eles viraram farelo assim que vi aquela recém-descoberta imagem do morto-vivo, meu amigo.

Cancelamos a conversa, que nos constrangia. Devoramos os sanduíches, pagamos a conta e lembro que os adolescente do campo de futebol estavam sentados numa mureta, tomando suco, e um deles fazia manobras curtas de skate enquanto os outros comentavam as partidas de futebol que passaram na tevê.

Quando atravessamos a rua para o estacionamento, meu amigo contou que pensa em largar o emprego, mudar de cidade e terminar de escrever a peça num lugar sem avenidas largas e noites silenciosas. Encarei como uma despedida antecipada. É o que acontece por aqui: as pessoas se despedem. E isso conta como um tipo de morte.

2. Familiaridade

Na hora do almoço, todos os domingos, a morte encosta os cotovelos na nossa mesa, mastigando a coxa do frango. De boca aberta. Já é de casa.

3. O japonês

Num restaurante de comida japonesa, a família inteira. Minha mãe saiu com esta:

– Tiago, as pessoas morrem. Algumas de uma forma mais rápida. Outras de uma forma mais lenta. Mas todas morrem.

Para minha surpresa, continuamos comendo e contando piadas. E rindo das nossas piadas, que são sempre as mais engraçadas do mundo.

Superoito express (8)

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japandroids

Ou: Pitchfork edition.

Passei a semana digerindo quatro disquinhos indicados pela seção Best new music, a vitrine do site. Talvez por coincidência (talvez não), eles soam como farinha do mesmo saco: poderiam ter sido embalados em cartolina e vendidos numa edição especial dedicada ao novo lo-fi da América do Norte. São produções de baixíssimo orçamento, precárias e sujinhas de propósito, mais ou menos como os primeiros do Pavement e o mais recente do No Age. Bons discos (um deles superou minhas expectativas), mas fico me perguntando: elegê-los não seria também uma estratégia usada pelo site para marcar posição à margem de uma “grande indústria fonográfica” que talvez nem assuste mais?

Aos álbuns.

Post-nothing | Japandroids | 8 | O duo canadense (formado pelo guitarrista Brian King e pelo baterista David Prowse, ambos também vocalistas) lançou esta estreia apenas em vinil e download digital. Entendo a jogada: o som da banda remete a antigos álbuns de pós-punk (os primeiros do Hüsker Dü, por exemplo) e à novíssima onda noise. Isto é: a gerações pré e pós CD. Mas o que surpreende no álbum é como ele vence essas referências de nicho e consegue se aproximar dos interesses de qualquer fã de rock. São canções para o fim da juventude, chocantes de tão sinceras, interpretadas como se fosse a última chance. “Não quero me preocupar com a morte”, filosofam, na excelente Young hearts spark fire. Simplezinho, mas há como não se identificar terrivelmente com eles?

Wavvves | Wavves | 7 | Demorei um pouco para escrever sobre um dos hypes do ano, e admito que (ops) por total desinteresse. Nas primeiras audições, não vi autenticidade nas experimentações de Nathan Williams – elas soaram como isca para fãs do Liars, do Deerhunter, ou de qualquer outra banda que intercala melodias noise com ruminações instrumentais. Aos que também se decepcionaram, um aviso: com o tempo, as coisas melhoram. A fusão de elementos de surf music e noise não é exatamente original (nem tão empolgante quanto parece), mas Nathan parece empenhado em quebrar as tradições do rock californiano – esforço que rende faixas verdadeiramente fortes (So bored) e um punhado de esboços mais ou menos intrigantes.

Songs of shame | Woods | 7 | Um dos principais nomes da Woodsist Records, que lançou álbuns do Vivian Girls e Wavves, o Woods é elogiado por expandir a cena noise com influências folk e clima neo-hippie. É um pouco de partida interessante. Mas, superada a estranheza inicial, o resultado não parece tão ousado quanto, digamos, um álbum do Blitzen Trapper (mal chega perto do que o Animal Collective, Panda Bear fizeram com o gênero). De qualquer forma, lamentos rústicos como Born to lose não nos abandonam facilmente, e podem levar às lágrimas uma cambada de fãs de Bon Iver (se é que eles existem).

Why there are mountains | Cymbals Eat Guitars | 7 | E, por último, nos resta o álbum mais ambicioso (e convencional) deste pacote: o quarteto novaiorquino faz uma viagem de classe econômica ao rock de arena do início dos anos 70, largado em estradas largas e paisagens épicas – um álbum para ser ouvido logo depois de It still moves, do My Morning Jacket, e Real emotional trash, do Stephen Malkmus. Não deixa de soar corajoso: um disco de nove faixas (uma delas se chama Indiana), 62 minutos, lançado sem gravadoras… O começo é um assombro, com And the hazy sea e Some trees, mas o álbum abre espaços amplos demais para uma banda ainda em formação. Faltou um bom montador a este belo road movie.

PS: Ontem vi o show do Oasis. Pela tevê. Não sei se vocês sabem, mas, num passado distante, madruguei numa loja de discos aqui da cidade para comprar Be here now no dia do lançamento. Vocês sabem, não sabem? Eu era fã. Daí minha frustração (que já vem de muito tempo, aliás) com uma banda que, sem saber o que fazer da própria vida, passaria a se apegar desesperadamente aos dois primeiros álbuns e gravar mediocridades em série. O show retrata perfeitamente essa falta de rumo: anos 90 no repeat. Nunca me senti tão velho.