Mistério
2 ou 3 parágrafos | Os homens que não amavam as mulheres
O primeiro filme da trilogia Millennium, escrita pelo jornalista sueco Stieg Larsson, é o mais novo produto de uma engenhoca programada para confeccionar adaptações de sucessos literários. A conhecemos bem. É um fenômeno industrial. Para não danificar a máquina, recomenda-se atenção às instruções: misture a trama do livro com atores minimamente competentes, adicione um diretor qualquer e o resultado (medíocre, mas eficiente) não vai ferir o paladar do sujeito que pagou ingresso para não ser surpreendido.
Niels Arden Oplev, o cineasta de encomenda, tem um histórico de séries de tevê e, por isso, deve ter se preparado para o fato de que este filme não pertenceria a ele, mas sim aos roteiristas, aos produtores e, bem acima deles todos, ao próprio Stieg Larsson – que já morreu e, por isso, não teve direito a opinar sobre o resultado. A prosa de Larsson é cristalina e fluente, com flashes de elegância e algum comentário social (o livro, um thriller à Agatha Christie muito envolvente, dá um beliscão no jornalismo econômico medroso e bajulador que se pratica à rodo por aí). A direção de Oplev é, quando muito, genérica. Mas aposto que boa parte do público vai gostar de um filme em que muita coisa acontece.
No livro, Larsson criou um par de heróis que faria estragos se transferidos para uma série de tevê produzida pela HBO (e conduzida por David Lynch, sonhar não custa nada). Ele é o jornalista investigativo, birrento, mulherengo. Ela é a hacker incendiária, dissimulada, com um passado misterioso. O livro vem até com um mapa, para nos localizarmos na vizinhança da ilhota congelada onde se dá o mistério. O que mais me interessou no filme foi ver “as figuras”: as paisagens, a cor da ilha (um cinza-claro meio morto), os casarões decadentes. De resto, Os homens que não amavam as mulheres (2.5/5) se contenta em ser apenas um apêndice do best-seller. Cinema â mercê de literatura. E outras bobagens.
Have one on me | Joanna Newsom
Conheço gente que acha Joanna Newsom um desastre. Um erro. Quase um nojo. Eu digo é mais: a mulher é insuportável.
Eu mesmo, que viro um menino desamparado quando ouço a harpa da moça, reconheço que é mesmo difícil olhar nos olhos desse furacão. Nós conhecemos uma multidão de cantoras e compositoras que estão por aí, desnorteadas, perdidinhas, à procura de um estilo, uma voz, um raio de personalidade. A maioria não encontra nada. A arte de Joanna Caroline Newsom, exceção entre exceções, é tão particular que machuca. Dá medo. Provoca alguma raiva (e uma pontinha de inveja, que ninguém é santo).
Joanna Caroline Newsom tem 28 anos, canta como só ela canta (naquela voz agudíssima e às vezes alienígena que põe muito marmanjo nervoso), compõe como só ela compõe, toca harpa como só ela toca e escreve álbuns que, por mais que você tente mapear as comparações fáceis (Joni Mitchell, Kate Bush, Vashti Bunyan), soam radicalmente diferentes de tudo o que você ouve no blog e na rua e na rádio e no elevador e na loja de roupas e na feira hippie.
Não existe outra Joanna Newsom. Entendeu o drama? E, aos que ainda se amedrontam diante desta mulher com franja de menina, recomendo que pode ser uma boa ideia (e note que não estou forçando nada) começar a conhecê-la desse modo meio inocente, quase tolo, nada irônico, nem um pouco sacana, sem a predisposição de encontrar um modelo formatado de musa indie, diva folk, nerd excêntrica, celebridade cult, outsider de butique. Ela não é nada disso (ainda que possa ser categorizada injustamente com todos esses adesivos).
O culto a Joanna Newsom – que existe e pode ser irritante como qualquer culto a qualquer astro pop (e odiamos as fãs mais descabeladas de um Marcelo Camelo, não odiamos?) – tem muito a ver com a forma como ela abre a porta do quarto e nos deixa entrar. Simples. E complicado. A música de Joanna é de um intimismo profundo, que exige total cumplicidade do ouvinte e, por isso, provoca um tipo muito sensível de conexão sentimental. O fã ouve um disco de Joanna como quem lê compulsivamente as páginas de um romance delirante escrito em primeira pessoa. Está enfeitiçado desde o prólogo.
É por isso que todas as estranhezas da moça, que podem soar imperdoáveis (e insuportáveis) para os infiéis e não-iniciados, são imediatamente perdoadas pelos súditos. A esses, recomendo que tomem um certo distanciamento, nem que por alguns minutos. O que eles vão encontrar? Uma caligrafia que não é bem folk, não é exatamente barroca, não é tão etérea quanto parece e que às vezes soa como a trilha sonora para uma versão lisérgica de Branca de Neve e os sete anões. Um conto de fantasia cuja protagonista parece habitar o nosso mundo e, se tivéssemos muita sorte, poderia ser a nossa vizinha.
Esse contraste que entre a atmosfera onírica das canções de Joanna e o tom pessoal do discurso pode não ter ficado muito claro no disco anterior, Ys (2006), um impressionante ciclo de melodias dividido com o auteur e arranjador Van Dyke Parks. Aquele era um álbum obsessivamente ornamentado – um (lindo) quadro na parede, uma obra-prima pensada como obra-prima. Have one on me é um disco mais espontâneo, menos carregado de ambições e, para minha surpresa, ainda mais apaixonante.
Mais uma vez, Joanna mostra um desejo imenso de jogar com aquilo que conhecemos como um formato tradicional de álbum. Ys tinha a quantidade de canções de um EP, mas soava monumental como uma obra conceitual do fim dos anos 1960. Have one on me, por sua vez, é um disco triplo (e, à exceção do Prince e do Magnetic Fields, quem comete uma sandice dessas?) com a duração de um CD duplo e organizado como três mega-EPs. Mais inusitado ainda: um disco triplo que aproveita o espaço amplo para se espreguiçar, abrir lacunas entre os acordes, tecer pequenas variações melódicas, deixar o tempo passar, espairecer.
Se Ys soava como a obra de uma artista que precisava imediatamente definir uma visão de mundo e se impor acima dos formatos mais convencionais do pop, Have one on me acaba por parecer muito mais sereno (no estilo) e complexo (nos temas e emoções despertados por cada canção). Talvez você não acredite, mas é o álbum mais convidativo – e talvez o melhor – que ela gravou.
O que surge no disco é uma compositora mais permeável e generosa, disposta a assimilar uma diversidade de ideias sem medo de desviar do caminho que resolveu seguir. O disco oscila entre delicadas canções curtas como a perfeitinha On a good day e monumentos folk como No provenance. Há temas históricos (Have one on me é aparentemente sobre Lola Montes) e confissões muito íntimas (Easy, um poeminha belíssimo sobre as inseguranças do amor).
Talvez mais importante é como Joanna desta vez compartilha o disco com uma banda, que caminha junto dela e, quando necessário, preenche as brechas da harpa e do piano com violões, bateria, instrumentos de sopro. Tudo até meticuloso – como na deslumbrante You and me, Bess, que permite até a inclusão de um coro. Sabemos que esse processo de abrir-se ao mundo é sempre muito perigoso – mas Joanna cumpre o desafio sem perder nada daquilo que, para os ouvintes que se deixam atropelar pelas canções, sempre soou esquisito e radical.
Lembro que, quando Ys foi lançado, as resenhas mais furiosas comparavam o álbum ao que há de mais exibicionista e esnobe no rock progressivo dos anos 70. Temi que Joanna Newsom acabasse por levar em conta esse tipo de comentário. Mas não. Have one on me, gravado em Tóquio com produção da própria Joanna (e, em seis faixas, mixagem de Jim O’ Rourke), surpreende fãs e detratores. Talvez para o mal. Interessa (a mim, pelo menos) a forma decidida como Joanna segue uma trajetória de completa independência criativa. “Eu não vou voltar, agora que o caminho está mais claro”, ela avisa, em On a good day.
E a sensação de liberdade, de não dever satisfações ou se obrigar a algum tipo de concessão, contamina de tal forma este álbum triplo que, lá pelos 60 minutos de viagem, tudo o que eu consigo ouvir nele é beleza bruta, beleza estranha, beleza sutil, beleza que emociona, beleza nos detalhes mínimos, beleza que não se sabe de onde vem, beleza inclassificável, beleza dura, beleza fácil, beleza difícil, beleza insuportável. Outra beleza.
Daí em diante, lá pelos 80 minutos, Joanna está completamente no controle. É um disco dela é para ela. E o que resta a nós, os pobres súditos, é o prazer de sermos conduzidos para um lugar infinitamente misterioso.
Atualização (3 de março): Depois da décima audição, dá pra bater o martelo: You and me, Bess é a música mais bonita do mundo.
Terceiro disco de Joanna Newsom. 18 faixas, com produção de Joanna Newsom. Lançamento Drag City. 9/10
Tomorrow, in a year | The Knife
Quando o The Knife anunciou que escreveria uma ópera inspirada no livro A origem das espécies (1859), de Charles Darwin, muitos se apressaram a enxergar ali uma anomalia pop. Mas vamos lá, gente! Pelo menos para mim, sempre pareceu óbvio que as descrições do naturalista britânico acabariam engolidas por um disco do Flaming Lips. A diversidade biológica! A evolução! A árvore da vida! A viagem do HMS Beagle! Os tentilhões de Galápagos!
No mundo pop, os mais destemidos também sobrevivem. Daí que o duo sueco teve a ideia primeiro e, numa colaboração com Mt. Sims e Planningtorock, escreveu as 15 faixas que compõem o álbum duplo Tomorrow, in a year, cujo repertório foi criado inicialmente para uma performance encenada pelo grupo dinamarquês Hotel Pro Forma. Depois de uma pesquisa exaustiva sobre a vida e a obra de Darwin, o Knife escreveu a primeira ópera da carreira.
No site da banda, Olof Dreijer comenta que não havia assistido a uma única ópera e desconhecia o significado da palavra libretto. Mas, num intensivão por conta própria, aprendeu tudo sobre os “gestos dramáticos” e, depois de um ano, finalmente conseguiu se emocionar com a interpretação de uma soprano. Talvez o grupo Hotel Pro Forma estivesse procurando algo do gênero: uma ópera desajeitada, virgem, naturalmente experimental, mais ou menos o que Lars von Trier buscava quando escalou a Björk para escrever as canções do musical Dançando no escuro.
É claro que, em casos como esses, só a experiência completa só é possível para quem assiste ao resultado da combinação entre música e performance. Em disco, Tomorrow, in a year soa lacunar. Quando ouvimos o som de cachoeiras e passarinhos piando, tudo o que podemos fazer é imaginar alguma cachoeira ou alguns passarinhos piando. Azar dos ouvintes pouco criativos. Sorte de quem comprou ingressos para as apresentações de Estocolmo, encerradas anteontem.
Talvez melancólico com o fim da jornada, o The Knife entrou em estúdio e resolveu registrar essa ópera-minimal (!) em CD. O resultado, previsivelmente, é o disco mais (espere um momento enquanto busco uma palavra gentil) desafiador desde Embryonic. Um projeto experimental com alguns respiros pop.
Para provar que não fujo dos desafios, ouvi o disco da forma como o The Knife recomenda no site da banda: com headphones e máxima concentração. É uma viagem insólita e entediante, adianto, mas que faz justiça ao caráter exploratório do conceito. Fica evidente que o The Knife se embrenhou por territórios desconhecidos (há trechos de passarinhos ou cachoeiras que foram gravados na Amazônia!) e aprendeu algo sobre ópera. Várias das canções são interpretados com pompa e agudos agudíssimos. As letras traduzem o espírito de descoberta e espanto que, sim, está no coração de A origem das espécies.
Ouvi o álbum de uma vez só, como se não houvesse como comprar ingressos para outras sessões, e saí do espetáculo com a impressão de que fui recompensado pelo esforço. A primeira metade do disco, talvez de propósito, soa quase impenetrável: ruídos minimalistas são sobrepostos a som ambiente e colorido new age, distorcidos por sopranos e valorizados por um registro curioso da natureza (há uma faixa que flagra um passarinho aprendendo a cantar, em diferentes estágios).
O segundo CD, mais amistoso, inclui uma canção arejada que poderia entrar no próximo álbum pop do The Knife, Colouring of pigeons, e mais divagações sobre biologia, sementes e as relações entre Darwin e a filha Anne.
Se o objetivo era captar a dimensão quase asfixiante da obra monumental de Darwin, o The Knife chegou perto. Tomorrow, in a year é um gigante construído com pedacinhos delicados. Apresenta, para os mais pacientes, um jeito inusitado de olhar o mundo, como se pela primeira vez. Não é um disco que eu ouviria várias vezes (talvez duas faixas e olhe lá), mas aposto que ele não quer ser ouvido várias vezes. Não é um álbum pop. Depois do primeiro contato, a tendência é que a sensação de familiaridade dilua a aura de mistério que cerca esse sonho de Darwin.
Então, e falo sério, siga meu exemplo: não ouça novamente. Desista. Fique com o primeiro gosto. E, exaurido, contente-se com as boas e más lembranças dessa estranha, impossível expedição.
Ópera escrita pelo The Knife, com Mt. Sims e Planningtorock. 15 faixas. Lançamento Rabid Records. Qualquer nota/10 (mentira, é 6).