Minimalismo

We’re new here | Gil Scott-Heron & Jamie xx

Postado em

Meu primo mais crescido – o primo que imitávamos, o primo que venerávamos, o primo que queríamos ser quando um pouco mais velhos – fazia música. Sim. Não que ele soubesse algo sobre a técnica do violão ou da guitarra (era um vexame até no pandeiro, que todo mundo pensa que sabe tocar), mas entrou para a nossa história como o sujeito das melodias fantásticas, o chapa da ginga, o bacana e o máximo.

Ok, sem rodeios: meu primo era funkeiro.

Funk carioca, manja? Início dos anos 90, ‘o que eu quero é ser feliz’, o som ingênuo e tosco que invadia as festinhas e puxava as meninas para dançar passinhos coreografados. Lembra? Lembra? Eu lembro.

E lembro porque meu primo foi um dos tantos aspirantes a Claudinho, a Buchecha, a MC Qualquer Coisa – no bairro onde morávamos, no Rio de Janeiro, era um sonho que toda uma comunidade de petizes parecia compartilhar. Mas meu primo, como acontecia muito, tombou na pista. Abandonou o batidão para cuidar das três filhas, trocou de esposa duas vezes, trabalhou para encher panelas, até fez de conta que nunca pensou em ser médico, mas tudo isso é outra história e cá estamos fugindo novamente do assunto.

Voltemos ao funk, que este é um post sobre o funk.

Para meninos como eu, o funk não era nada. Era uma brincadeira, no máximo uma boa bobagem, uma distração, uma troça. Ao mesmo tempo, era um mundo. Era uma música, sim, mas não qualquer música. Era uma música que parecia ser nossa, dos garotos da periferia, dos subúrbios, dos bairros pequenos. Parecia brotar dentro dos nossos quartos. E às vezes brotava mesmo.

Testemunhei pelo menos três músicas nascendo – e nascendo de parto normal, na varanda do meu primo. Ele sorridente, malandro, sobrepondo batidas singelas e criando versinhos tolos, depois gravando as camadas e exibindo o mix a meninos perplexos, abismados, estupefatos com a novidade: ‘diga a verdade, primo, foi você quem fez? Você? De verdade?”

Era o barulho de uma revelação. Pedíamos para que ele rodasse a música de novo. A mais ordinária. A mais vazia. A mais barata. E rodava de novo. Mais uma vez, e a danada rodando, grudando nos nossos pensamentos, se instalando para sempre.

Lembro daquela sensação febril. De querer engolir uma música. De querer papar a canção com ketchup, maionese e fritas. De querer tomá-la e não devolvê-la. Roubo. Coisa feia e suja. Um susto. Ouvir os funks ridículos do meu primo – que nem funk eram, meu primo nem sabia quem era George Clinton ou James Brown – fez de mim um devoto da arte pueril e anêmica, que nasce quase por acidente, que não tem valor algum, que nos agride inocentemente. Tudo isso, percebi naquela época, pode ser algo belo.

E (pode parecer uma heresia, mas não consigo evitar) lembro dos funks do meu primo – em frangalhos, ocos, mas, na minha infância, mais inspiradores que a sétima de Beethoven – a quando ouço discos como a estreia de James Blake (meu favorito de 2011, por enquanto) e estes remixes de Jamie xx para Gil Scott-Heron.

Não porque são discos paupérrimos, juvenis – nada mais distante da realidade. Mas porque eles provocam em mim o tipo de entusiasmo ingênuo, de criança, que aquelas aberrações domésticas provocavam. São discos que apontam para nossas fuças e dizem: eu sou um pouco como você; e você, se tivesse um pouco mais de talento, poderia ter me criado.

São álbuns que podem despertar uma intensa impressão de proximidade (ainda que falsa). Existe um quê de motivação punk nesses projetos. Do it yourself. No caso de Jamie xx, ainda mais. Temos aqui um disco incomum de remixes, que só encontra pontos de contato nos mashups de Danger Mouse, especialmente The grey album. Com a arrogância feliz de um adolescente, Jamie desmonta e reinventa o linguajar de Scott-Heron.

Um daqueles discos complicados que soam fáceis, sim. Mais do que isso, um daqueles discos atrevidos, que impõem uma identidade à prática do decalque, do “recortar e colar”. Eu admiro.

Desde a estreia do The xx, Jamie exercita um pop lacunar e sutil. É com essa palheta de cores escuras que ele cria uma atmosfera onde os versos, a fala de Scott-Heron se movimentam e respiram. Isso sem a necessidade de preencher todos os espaços, todas as crateras que marcam as canções do sujeito que, há um ano, lançou o assombrado I’m new here.

Aquele é um disco, aliás, que ainda me perturba um pouco. Não consigo escrever sobre ele, talvez por me parecer autoexplicativo. O que temos é a voz de um velho poeta americano, que viveu muito, que talvez nem esteja mais tão lúcido quanto imaginamos (hematomas expostos) – isso, a voz, as ideias, as lembranças, e quase nada mais. Mas, diante desse retrato saturado, por que cobraríamos mais? (eis a questão).  O que o inglezinho Jamie faz é se apropriar desse discurso, desse “personagem”, e inseri-lo num filme. Que poderia se chamar No silêncio da noite.

A exemplo dos álbuns de Blake e do The xx. há uma mise-en-scene noturna, fantasmagórica, ao redor dessas canções. Tal como Blake, Jamie se limita a apontar pequenas variações entre uma faixa e outra, ainda que, aqui, a eletrônica minúscula saia dos limites do dubstep para às vezes soar como a arquitetura de uma colagem do DJ Shadow: camadas de samplers sujos, mofados, colhidos de uma antiga coleção de vinis.

Os três momentos mais diretos do disco, que renderiam singles excelentes, mostram as oscilações de uma obra que, numa primeira audição, soa uniforme (às vezes irritante de tão uniforme; se você cair em tédio, eu entenderei). My cloud, o algodão-doce do parquinho, é trip hop manso, acolchoado. Já NY is killing me mergulha em paranoia, sob chuva de pedras digitais. O disco termina com, I’ll take care of U, uma faixa que leva ao pé da letra um ensinamento de Heron: “Jazz music is dance music”. E não é? Jamie dá uma risada de moleque e entra na pista.

Não dá para dizer que é um disco inventivo, que entusiasma pela originalidade. Que nos leva a recantos desconhecidos. Essas canções, no entanto, têm algo de espontâneo, de lúdico (é apenas música pop, não é nada muito importante, mas essa besteira pode acabar salvando as nossas vidas), que me leva às tardes em que meu primo reunia os meninos na varanda para apresentar a criação da semana. Silêncio total. Três minutos depois, ele deixava de ser gente – e se transformava no nosso herói.

Disco de remixes de Jamie xx, a partir do repertório de I’m new here, de Gil Scott-Heron. Produzido por Jamie xx. Lançamento XL Recordings. 8/10

Realism | The Magnetic Fields

Postado em Atualizado em

Desde o excelente 69 love songs, de 1999, o Magnetic Fields faz discos que, além de exercitar o estilo (inconfundível) de Stephin Merritt, podem ser interpretados como comentários sobre música pop. Distortion, de 2008, poderia muito bem ter recebido o apelido de Estudando o noise. E este novo, Realism, de Estudando o folk.

O rigor com que Merritt desenvolve esses projetos é digno de tese acadêmica: Distortion cita Psychocandy, do Jesus & Mary Chain; Realism faz referência ao trabalho do produtor Joshua Rifkin, de discos da Judy Collins. Mas o tom irônico das canções, e o minimalismo dos arranjos, nos faz cogitar se seriam brincadeiras com a nossa cara.

O que não deixa de ser fascinante. O disco lançado após 69 love songs (aos que não conhecem, um álbum triplo só de supostas canções de amor), i, era uma viagem em torno do pronome I (eu) — nem por isso, no entanto, um projeto confessional. Merritt joga com a ideia do “álbum conceitual” como quem cria pequenas instalações de arte contemporânea.

A sorte dele (e a nossa) é que esse jogo foi levado a sério. A partir de 69 love songs, o estilo telegráfico (e quase blasé, mas também doce, às vezes melancólico) de Merritt calhou de combinar com os gostos de uma nova geração nova-iorquina. Há sinais de Magnetic Fields no terceiro disco do Strokes e no segundo do Vampire Weekend. De alguma forma, as duas bandas colorem as ilustrações pontilhadas de Merritt.

Concebido como o “outro lado” de Distortion (num primeiro momento, os discos seriam chamados de True e False), Realism foi gravado com instrumentos acústicos e arranjos ora de canções folclóricas, ora com climas etéreos tão típicos do folk britânico do fim dos anos 1960. Às vezes soam como hinos de torcida, trilhas de filme de pirata, cantigas natalinas. Variações do tema.

As letras seguem misturando veneno com adoçante. You must be out of your mind poderia ter entrado em 69 love songs — e, sim, as situações narradas são de um realismo cruel. “Você acha que pode deixar o passado para trás? Você deve estar fora de si. Você acha que pode simplesmente apertar o rewind? Você deve estar fora de si, filho”, aconselha Merritt, com um sorrisinho no canto da boca.

Como em Distortion, os fãs da banda vão encontrar três ou quatro canções que estão à altura de tudo o que Merrit fazia há 10 anos — e isso, isso, garantirá ao disco alguma bajulação. Concordo que a existência de um compositor como Merrit é motivo de celebração. Mas até eu, que considero 69 love songs um dos 10 melhores discos dos anos 1990, desconfio que a banda está usando um ou outro gancho formal para desviar a nossa atenção do fato de que as novas composições são apenas ok.

Talvez no formato de um álbum duplo, o jogo de opostos criado por Merritt em Distortion/Realism soaria mais provocativo. Do jeito como se apresenta, fica flutuando entre o metapop esperto e a brincadeira inofensiva. Decepciona um pouco. Mas, até nisso, o sujeito é coerente: difícil escolher qual desses dois discos é o menos frustrante.

Nono álbum do Magnetic Fields. 13 faixas, com produção de Stephin Merritt. Lançamento Nonesuch Records. 6/10