Minha vida

(e-mail para um amigo que mora longe)

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R.,

É você mesmo?

Li o seu e-mail três vezes e ainda não me recuperei da surpresa estranha que é receber notícias suas. Escreva mais, meu velho. Por favor. Escreva hoje.

Quanto tempo mesmo? Ainda tentando calcular. Uns 10, 11 anos, tudo isso? Uma década! Uma década que não nos falamos? Acho que menos. Talvez mais. Lembro de quando você mandou um e-mail contando que estava na Austrália e que a comida era ruim, e que os cangurus saltitavam na rua, brincavam entre os carros. Quando foi? Uns seis anos? Nem consigo fazer as contas.

Pois é, meu amigo: por aqui, a noção de tempo está embaralhada. Você escreveu pra dividir esses problemas, essas aflições todas, e entendo quando você diz que não é capaz de falar sobre o assunto com as pessoas mais próximas, com seus roommates aí de Londres (e agora você está em Londres!). Acho até engraçado (e estou pensando em humor amargo) que você tenha decidido entrar em contato exatamente agora, quando minha vida também se transformou num questionário arrepiante, à espera das respostas breves e exatas que não encontro em lugar algum.

Não deixa de ser uma dessas coincidências malucas e incríveis.

Você não imagina o tumulto que o seu texto provocou na minha vidinha mediana. As suas palavras me atiraram de volta a uma época que sempre encarei com muita tristeza – e, quando lembro, tudo o que vem à minha cabeça é uma cena lenta e interminável, um plano fixo: eu dentro do meu quarto, trancado no apartamento, olhando através da janela do terceiro andar. Mas talvez essa tenha uma imagem que eu tenha polido e lustrado dentro da minha cabeça infeliz durante esse tempo todo. Você me lembrou dos amigos que me acompanharam naquela época e do quanto eu sinto a falta deles, de vocês.

Éramos quatro? Ou cinco? Onde os outros foram parar? Por que nos perdemos uns dos outros? Por que não mantivemos contato? Você diz que o F. está casado e tem uma filha de dois anos, se formou em engenharia e toca numa banda de metal. Li esses parágrafos com os olhos cheios d’água, lamentei profundamente não ter acompanhado essa história. Nós todos, cada um para um canto. Quando aconteceu? Você deve lembrar, trocamos trocentos e-mails (tenho alguns deles aqui, guardados). Mas e aí? Escrevemos o centésimo e-mail e decidimos que era hora de apagar as luzes, ir para casa, engatar a terceira marcha? Foi isso?

Soa patético, eu sei: estou num momento difícil.

Você diz: consegui realizar meus sonhos, tenho 30 anos e agora nada acontece. E eu te entendo. Cara, aos 18 você já falava nesse plano de ir morar em Londres, de fazer cursos disso e daquilo, de se aventurar sei lá onde, mundo afora, ao infinito e além! E agora que você está aí, nessa névoa, engolindo fish & chips, com saudade dos amigos perdidos, triste feito um vira-lata, escrevendo pra um sujeito que não está perto há uma década, que se transformou noutra pessoa (e essa pessoa, acredite, nem sabe mais quem ela própria é). E desabafando sobre detalhes da sua vida que você revelaria quando tínhamos 19! É estranho.

Mas cara: é bom saber sobre você. Dá um certo alívio. Havia um momento da minha vida que eu queria deixar tudo para trás. Hoje, quero recuperar as lembranças e guardá-las comigo. Mas, claro, é triste notar que estamos os dois naufragando. Triste e bizarro – éramos os mais corretinhos, os mais estudiosos do grupo. Tenho certeza: você também não imaginava, lá no passado pré-histórico da nossa adolescência, que nossos 30 anos seriam tão incertos. Everything in its wrong place. Uma ponte quebrada. A sensação de que a vida nem começou, que está tudo indefinido. Nós perdemos, meu amigo: perdemos o sorteio, ficamos com o Futuro Difícil e não com o Futuro Próspero ou com o Futuro Tranquilo. Azar o nosso.

Você não sabe nada sobre os últimos sete anos da minha vida, então aí vai um resumo em fast-forward: por todo esse tempo, namorei a mulher que eu acreditava ser a Mulher da Minha Vida (com maiúsculas), até o dia em que notamos o quão errada estava a relação. Foi quando entendi que ela havia se transformado na Mulher do Meu Passado. Terminamos há três meses, todos os planos descartados, e-mails fofos nas devidas lixeiras virtuais, e hoje tudo o que tenho é um sentimento que não consigo definir. Não é só saudade, não é (definitivamente) amor, não é medo de ficar só, não é melancolia, não é dor de cotovelo (ela está namorando), talvez um pouco de frustração, paralisia sentimental, trauma, cansaço. Talvez outra coisa mais grave.

Entendo quando você diz que se sente despreparado para a vida. Acontece comigo, hoje mais do que nunca. Você diz: fico com a impressão de que não fui educado para perder, que fui mimado pelos meus pais e pelos professores, pelas namoradinhas, por todo mundo. Que todos garantiam que as coisas iriam terminar bem. E que isso era uma mentira, mas uma mentira que nos confortava (ou que pelo menos nos fazia pensar em outros assuntos). Você diz que sofreu muito quando o seu pai morreu, e que tudo em Londres parece artificial e distante, e que você foi tão longe que não sabe mais onde está, e que você cresceu sem se tornar adulto. E agora tem 30 anos. É.

Não sei o que aconselhar (talvez você deva fazer como eu faço: ocupar o tempo, trabalhar, ler livros, ver filmes, escrever, se desgrudar de si próprio). Mas posso contar minha história? Nesses três meses de separação, algo imprevisto aconteceu: quando finalmente decidi parar de me preocupar com o futuro, pequenos fatos extraordinários acabaram me atropelando. Tirei férias para me isolar das pessoas e, para minha surpresa, descobri os melhores amigos do mundo, pessoas que me entendem e gostam de mim (hoje o drama é outro: eles moram longe, em outra cidade, e isso me entristece e perturba).

Parece um conto de fadas boboca, mas não estou exagerando. Eles, os amigos, me ensinaram que posso começar uma outra vida, uma outra rotina, e uma vida mais saudável do que aquela que eu levava com a minha ex-namorada. Antes, eu estava trancado num namoro cinzento, vivendo uma solidão confortável, um tédio aconchegante. Eles, os amigos, não sabem a importância que tiveram nesse processo todo: me ensinaram que ainda respiro, que a minha história segue. Hoje me sinto um pouco otimista, menos aflito.

Não quero ditar uma fórmula: faça amigos e seja feliz. Não. Não acredito nisso. E eu não estou feliz. Livros de autoajuda me fazem cócegas, sério. As coisas são menos práticas, sabemos disso. Você está em Londres há pouco tempo, talvez seja uma questão de adaptação a um ambiente hostil (aposto que nada aí é mais desesperador ou silencioso do que os domingos em Brasília, estou certo?). Pode ser que as coisas mudem aos 35, quando nos descobriremos sábios e lúcidos. Pode ser que o Futuro Difícil vá se transformar subitamente num Futuro Estável, e marcaremos um encontro com os amigos de colégio para mostrarmos a eles que triunfamos. Pode ser que aconteça.

Por enquanto, só sei o seguinte (e mil desculpas pelo e-mail infinito; nesses 10 anos me descobri um escritor prolixo): tudo o que aconteceu de ruim comigo mostrou que não há cordões de segurança me prendendo ao teto do teatro. Pode ser uma noção assustadora, num primeiro momento. Mas estou começando a me entender com ela.

Abraço (e não desapareça),
Tiago.

Superoito e a morte do cão

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Meu cachorro, o beagle encardido e magricelo, morreu.

Recebi a notícia do modo mais frio. Uma mensagem de celular. “O cão morreu”. O motor estava ligado e permaneceu assim por uns três, quatro minutos. Nenhum movimento, apenas o zumbido irregular de todas as manhãs. As peças chacoalhando preguiçosamente, aos soluços. Uma névoa seca, alaranjada, borrando a paisagem. Um vulto desceu no retrovisor. E eu agarrado ao volante, fixo e tenso, como quem resolve acelerar para dentro de um tufão.

Depois consegui sair do estacionamento e o dia, que deveria ter seguido mais ou menos como os outros, começou a me parecer hostil. O que havia acontecido?

Telefonei para minha irmã e ela improvisou o obituário. O cão, que estava internado há uma semana em um hospital canino, sofria de uma infecção renal que o maltratava a cada dia. Era pele e osso, o pobre mamífero. Mal se aguentava sobre as quatro patas. Quando fazia frio, ele se encolhia feito um tufo de lã enrolado num graveto. “Era a hora”, minha irmã explicou. “Mais cedo ou mais tarde…”, continuou. E eu preenchi as lacunas. Ficamos em silêncio. Dizer o quê? Murmurei algo como “é uma pena, mas…”, e continuamos naquele passo, fazendo rodeios no reino do subentendido.

Certamente havia um ritual a ser seguido em casos como esse. Quando um cachorro morre, o que se faz? Eu não sabia. Até hoje, meus cãos não morriam. Eles não morriam. Obviamente, todos, sem exceção, partiram dessa para uma pior. No entanto, não acompanhei as etapas finais, as agonia dos últimos dias.

Meu primeiro cachorro, um poodle muito peralta, mudou-se para a casa de uma dentista e não mandou notícias. Os cães da minha avó morriam à rodo, atropelados, espremidos e alargados feito massa de macarrão, lançados à estratosfera sempre que se atreviam a desfilar numa avenida perigosíssima que começava lá no início do mundo e terminava no juízo final. Eram uns infelizes, uns sem-futuro.

Desde pequeno, me convenci de que, como acontece com as pessoas, cães morrem todos os dias, atropelados ou não. E cães geralmente somem muito antes das pessoas (e bem depois dos peixes, por exemplo).

Hoje descobri (tarde demais?) que nenhuma dessas certezas se sustenta quando o cão que morre é o seu cão.

O que senti, para ser sincero, foi um misto de tristeza e constrangimento. Primeiro a tristeza, depois do constrangimento. Em seguida, os dois juntos. Constrangimento por ter me sentido tão triste com a notícia, com aquela mensagem lacônica de celular. Desconfio até que chorei um pouco, umas fungadas descontroladas que se perderam dentro do barulho do carro, mas me recuso a confirmar essa informação. Suspeito até que cheguei a pensar em algo muito sentimental e tolo como “meu cãozinho!”, mas não, isso não deve ter acontecido.

Me surpreendi, isso sim, com a intensidade desses sentimentos. Todo aquele drama por conta de um beagle temperamental? Um animalzinho ranzinza e feioso, que, ao contrário do meu golden retriever (esse sim, um gentleman), sequestrava minhas cuecas e se entortava no vão da porta para mijar no tapete da sala? Do que eu sinto tanta falta?

Talvez eu sofra com as memórias onde o beagle aparece. Meu padrasto na varanda, a melancolia em pessoa, já adoecido e perplexo com a doença, acarihando aquelas patas quase invisíveis. Ou o dia em que, internado no hospital canino para tratar das orelhas, o beagle reuniu minha família inteira dentro de um cercadinho fedorento, de ladrilhos sujos, como bichos no zoológico. E, mesmo sem querer, foi o responsável por uma daquelas cenas lindas e ridículas que resumem a existência.

Pode ser (não descarto a hipótese) que tenha a ver com a ausência dele, o espaço em branco que o cão deixou. Isso, de alguma forma, me machuca.

Há três anos, adotamos o beagle. Nenhum outro dono queria saber dele. O cão era inofensivo porém arruaceiro. Só fazia o que dava na telha. Montava nas cadelas dos vizinhos e devorava as plantas do jardim. Era uma peste. Nos primeiros dias, ele travou guerras desastradas com meu golden retriever. Perdeu todas. Semanas depois, um não conseguia viver longe do outro. Melhores amigos para sempre.

Assim que o beagle foi levado ao hospital, meu golden retriever se recusou a dormir fora de casa. Era uma novidade. Mais educado e metódico do que qualquer pessoa que conheci, o cachorrão só entrava em casa em dias de tempestade ou jogos de futebol (ele teme os fogos de artifício como quem se arrepia com imagens de explosões atômicas). Sem o beagle, no entanto, ele resolveu nos desobedecer. Eis o legado do cachorro morto: a desobediência.

Daí que compramos outro cão: um labrador de quatro meses que, talvez à procura de uma saída, cava buracos profundos na terra e continua cavando.

Ainda um tanto estremecido (e envergonhado: cães morrem todos os dias), telefonei para minha mãe. Ela soava miúda. “Chorei a manhã inteira”, confessou. “É complicado…”, eu arrisquei. “Mas é só um cachorro, Tiago. E tudo o que vem acontecendo com a gente…”, e ela quase continuou, mas ainda é difícil chegar ao assunto número um. “Não era só um cachorro”, eu consertei. E eu, novamente: “Tudo o que está acontecendo talvez nem tenha a ver com isso, com o cachorro, sabe? O cachorro estava morrendo há semanas, estava fraco, então não tem a ver”. “Pois eu acho que tem sim”, minha mãe disse, com muita convicção, e eu acreditei nela. Desligamos o telefone quase ao mesmo tempo.

Eu não disse mais nada. Nem ela. Tentei mudar de assunto e perguntei sobre meu padrasto. Era a questão de todas as noites. “Como ele está?” E a resposta costuma ser: “Como sempre”. Uma resposta falsa, mas reconfortante. No dia anterior, ele se perdeu no caminho de uma loja que conhecia melhor do que todos nós. Antes disso, perto da barbearia onde ele corta o cabelo, meu padrasto olhou para mim (olhos vazios) e perguntou: “O que estamos fazendo aqui?”

Os flocos de memória se desintegrando como pulgas sob uma chuva de inseticida.

O que estamos fazendo aqui? O que estamos fazendo aqui? Eu forcei um sorriso. Está tudo ok, meu sorriso dizia. Mas meus ombros pesavam. “Cortar o cabelo, lembra?”, eu tentei orientá-lo. E ele (olhos vazios) respirou fundo.

Hoje pela manhã, quando soube de notícia, parece que meu padrasto chorou. Dizem que ele chorou. Deve ter chorado, ou sentido o mesmo vulto terrível que me paralisou ao volante por alguns minutos. Deve ter acontecido. Mas não conheço quem confirme a informação.

Superoito e a praga dos gafanhotos

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Quando imagino o fim do mundo, não temo inundações, explosões nucleares, vulcões esquentadinhos, loucos varridos ou hordas de zumbis. A ideia de apocalipse só me parece verdadeiramente terrível quando inclui pragas de insetos.

Aos 11 ou 12 anos, nas aulas de religião, meus ossos tilintavam de pânico ao notar a aproximação da mais sinistra entre as passagens bíblica. Aquela em que o todo-poderoso evoca um vento oriental que infesta de gafanhotos as manhãs e as noites do Egito.

Lembro que a Bíblia, muito objetivamente, relata os prejuízos financeiros provocados pela maldição: nenhuma verdura nas árvores, nem erva do campo. Mas, naquelas páginas, não havia nada, absolutamente nada, sobre a dona de casa que jogava gamão quando, subitamente, se viu atacada por bichinhos esverdeados. Gafanhotos saltitando entre os fios de cabelo, gafanhotos nas orelhas, gafanhotos nas narinas, gafanhotos sob a camisola, gafanhotos boca adentro, gafanhotos e gafanhotos e malditos gafanhotos.

As entrelinhas da Bíblia são um pesadelo.

O que mais me impressiona minha incapacidde para lidar com essa possibilidade. Nunca fui maricas para insetos. Sou o homem da casa e, por isso, eu mato as baratas. Comigo, nenhum mosquito pode. Sou um destruidor de lares quando o assunto é vespa e não sinto nojo ao tropeçar em lesmas. Acho até engraçadinho! Meus nervos são blindados. Na adolescência, me agradava a sensação de trancar mariposas na palma da minha mão só para mostrar às menininhas apavoradas que eu me qualificava, sim, como um baita de um homem.

Mesmo naquele tempo, no entanto, eu apostava (com medo, muito medo) que os insetos seriam os primeiros a nos enxotar deste planetinha vil. Eles viriam em torrentes. Eles cuspiriam líquidos amargos. Eles fariam barulhos nauseantes. E entrariam nos nossos orifícios. E aí o mundo acabaria, já que não suportaríamos a humilhação.

Qual não foi meu espanto quanto, há três dias, ao chegar em casa, notei que meu pequeno apartamento estava tomado por gafanhotos. Dois, três, quatro gafanhotos. Um deles acomodado no meu sofá amarelo. O outro admirava o monitor do meu laptop, que piscava em azul e verde. Havia um na geladeira, dois na escrivaninha. Todos verdinhos, aparentemente pacíficos, idênticos, mais ou menos como uma coleção de origamis criada por um sujeito perfeccionista e desocupado. Miniaturas do armegedom.

Em um primeiro momento, decidi matá-los todos com uma lufada de inseticida. Mas pensei novamente: não é assim que se trata bichinhos tão perfeitinhos e (aparentemente) inofensivos. Se eles resolveram visitar o meu apartamento, eu deveria encará-los como hóspedes desavisados, mas inocentes. Nada de declarar guerra ao inimigo antes da hora. Vertebrados ou não, somos seres civilizados. Cuidadosamente, tentei capturá-los com a pá vermelha. Me aproximei muito lentamente, muito discretamente, muito carinhosamente, muito mais Obama do que Bush, mas todos eles saltitaram, criaram uma confusão infernal. O que me obrigou a avançar sobre a lata de inseticida e, certeiro feito um GI Joe, provocar uma chacina verde na minha sala de estar.

Em vão. No dia seguinte, encontrei mais cinco gafanhotos, dois deles na cozinha. No corredor para o apartamento, encontrei cadáveres de insetos que não resistiram ao confronto com os humanos. Pobrezinhos. E estúpidos, os coitados: no posto de gasolina, perto aqui de casa, vários ainda voam intrépidos em direção à luz e, exaustos, caem fritos no jardim.

No início da noite, a aglomeração de seres verdes era tão vistosa que fechei as janelas do carro para não ser surpreendido por um filhote descuidado. A cena me hipnotizou. Então é isso? O fim do mundo começará pelo meu bairro? Nós, os tranquilos moradores desta região tão silenciosa e pacata, estamos fadados a inaugurar a temporada infernal da humanidade? Seria mais uma entre tantas ironias divinas com que nos acostumamos a viver?

Juro que percebi apreensão, quase desespero, muito mais do que nojo, nos olhos dos outros motoristas. Por mil gafanhotos!, os olhos protestavam. Ninguém parecia acreditar no fenômeno (que, para os moradores, soava como uma completa novidade, nunca antes na história!). Era uma ferroada na nossa rotina, um rasgo na sucessão tão previsível de acontecimentos que organiza a nossa existência. Na fila do sinal de trânsito, os insetos esbarravam nos nossos vidros, lambuzavam o asfalto. Cobravam reações, respostas. Mas a que perguntas? O que eles querem de nós? De onde eles vêm? Por quanto tempo eles ficam?

Seriam eles o resultado de um corte abrupto na cadeia alimentar de um predador? Ou um indicativo de que o pior ainda estava por vir (na próxima semana: gafanhotos mais gorduchos e irritadiços, talvez)?

Estávamos confusos.

Os gafanhotos nos obrigaram a pensar no nosso futuro. O que acontecerá depois? Eles nos atiçaram a raciocinar sobre o funcionamento da natureza, que quase nunca interfere no nosso cotidiano. O que acontece agora?

Ao tirar o lixo, agorinha, ouvi a conversa das vizinhas: “Eles são fraquinhos. Use uma revista ou o chinelo. Eles nem ligam. Ficam paradões. São umas coisinhas.” E, naquele zum-zum-zum de superlativos e diminutivos, comecei a me simpatizar pelos tolos insetos que não oferecem resistência, que são banais, uns equívocos dos deuses, meras perturbações. Uns descerebrados que arriscam tudo por alguns minutos diante da luz branca que queima em nossos apartamentos muito limpos e práticos.

Minha hipótese é que, como acontece com outros insetos menos extravagantes, os nossos gafanhotos também desaparecerão misteriosamente em duas ou três semanas. Não sentiremos falta e, pouco depois, não nos lembraremos desses incômodos visitantes. Estaremos preocupados com outros assuntos. Ou (como acontece frequentemente) tentaremos nos preocupar com coisa alguma. E aquela bizarra imagem de fim de mundo – pragas, eventos inexplicáveis da natureza, gafanhotos pueris em plena cidade grande – ficará guardada no mesmo compartimento do nosso cérebro que armazena flashes de acidentes de trânsito e cenas de filmes ruins.

“Sempre tentei não pensar no futuro”, foi o que minha mãe disse, hoje cedo. Almoçávamos juntos. Quando ela afirmou aquilo, aquela frase (um tipo de conclusão desiludida que não se comunica aos filhos), lembrei dos gafanhotos que me esperavam no apartamento. A confissão me assombrou. Eu sempre evitei fazer planos e, como ela, só agora me dei conta disso. Desse meu traço de personalidade. Dessa minha resistência a imaginar o porvir. Desse desinteresse pelo amanhã. Soou como uma revelação: seria herança materna? Seria genética a doença de não querer olhar para frente?

O que assusta a minha mãe são as cenas dos nossos próximos capítulos. Nossa vida, parte 2. A doença do meu padrasto – e ela não o abanona, não o abandonará – faz com que pensemos no assunto. O futuro está aqui, mais próximo do que nunca. Ele nos vigia. Ele nos instiga. Ele é o gafanhoto no televisor; uma anomalia, um invasor. Diante dele, não sabemos o que fazer. O encaramos com perplexidade. Não entendemos nada, somos crianças – devemos torcer para que ele suma? Ou aceitá-lo como um hóspede permanente?

Sabemos que está na hora de, pelo menos, refletir sobre o drama em que estamos metidos. Mas não são poucas as vezes em que nos pegamos desviando do tema, mudando de assunto. “Conte sobre aquele caso do trabalho”, a mãe provoca. E eu, o filho, narro a anedota mais risível. Reclamo das contas que devo pagar e do mecânico que perdeu a peça do carro e do preço do cereal e das pequenas doenças que não nos atrapalham. Tenho que tomar a vacina e planejar a viagem. Nos irritamos com o que nos parece trivial e falamos sobre isso. Falamos muito, mais do que queremos falar. Isso até o instante em que o grande tema se instala. Aí a cortina cai; encerra-se o espetáculo da normalidade. Voltamos a ser pessoas muito perdidas, bichinhos ao redor da lâmpada, eu e ela.

Mas raros são os dias em que chegamos a tanto. Somos daqueles que deixam para outra ocasião. Sempre. Depois de matar o último gafanhoto, fechei as janelas da sala, do quarto e do banheiro. Isolei o vão da porta com o tapete e um pano de chão. Apaguei a luz do corredor e torci para que os insetos não encontrassem uma fresta. Fiquei em silêncio por meia hora, à espera de que algo inesperado acontecesse. Nada aconteceu. Nada. Era uma noite como as outras. Dentro do apartamento, o planeta ainda girava.

Primeiro pensei: por enquanto. E depois: antes assim.