Minha família

Superoito, o rei da comédia

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Não sou um homem engraçado.

Mas sempre achei que sim. Sempre acreditei que esse fosse o caso. Desde muito cedo, ainda bem pequeno, quando aprendi a fazer barulhos estridentes com os beiços, encher minhas bochechas de ar até que quase explodissem, esticar a língua até o queixo e dançar feito um macaco dopado, com braços de fantoche. Minha mãe sorria. Minha avó rendia-se a elogios. “Esse menino é uma graça!”. Minhas tias obesas, que me apelidaram de Guigo, exclamavam bobagens superlativas. “Guigo é o máximo”. “Guigo é um menino muito esperto”. E aposto que, em segredo, admitiram: “Guigo é o novo Jerry Lewis!”.

Não tenho lembranças muito precisas daquela época – dois anos de idade! -, mas sei bem (como se fosse hoje) que eu sentia um tipo muito caloroso de satisfação quando as pessoas gostavam das minhas piadas. Meu troféu eram as risadas soltas, francas, demoradas. Eu me enchia de vaidade mesmo quando recebia sorriso com os truques mais tolos – e, nos meus primeiros anos de vida, quase todas as minhas gozações envolviam barulhos escatológicos.

Talvez minhas tias tenham encenado tudo com muito talento (ou simplesmente me mimado, já que Guigo era o homenzinho da casa), mas elas me convenceram de que eu era o rei da comédia. Aos cinco anos, eu contava anedotas com alguma habilidade. Era inaflível: eu sabia como criar uma atmosfera cruel de suspense e, depois, ir torturando as minhas vítimas até a frase final, hilariante e inesperada. Meu saquinho de gags não tinha fundo quando, no colégio, eu camuflava minha timidez na hora do recreio, contando histórias quilométricas, enervantes, que terminavam num golpe genial de humor barato, sujo, desaconselhável para menores.

Isso até os dez anos de idade, quando me entediei com as gracinhas de salão e decidi investir pesado no sarcasmo. Eu era o horror da ironia, das alfinetadas, dos comentários ácidos, das fofoquinhas malvadas. Acredito até que exorcizei toda a minha rebeldia adolescente nesses atos explícitos de escárnio. O poder de soltar a última gargalhada cínica fazia com que eu me sentisse um rapazinho muito inteligente, mas era um dom incompreendido. Mais tarde, notei que minha vocação era interpretada como arrogância.

Pior: notei que, ilusões à parte, não sou, nunca fui um homem engraçado.

Talvez todos os meus traumas de juventude tenham brotado aí, no dia em que encarei o espelho imaginário e percebi que nunca fui um bom palhaço. E que, para que crescesse como um adulto mais ou menos apresentável, eu não deveria me esforçar tanto para soar como um comediante decadente trancado num reality show de fiascos da stand-up comedy.

Toda a minha disposição para a sobriedade, porém, nunca vingou. O meu “eu palhaço” já havia devorado o meu “eu sisudo” e não havia nada que eu pudesse fazer para alterar esse placar. Uma guerra perdida. Daí que segui com esse jeito meio torto e vergonhoso, rindo das minhas próprias piadas e aproveitando todas as brechas do cotidiano para bolar trocadilhos e paródias que nunca sobreviveriam aos rascunhos de uma sitcom vagabunda.

Um humorista amador compulsivo, é claro, incomoda muita gente. Minha namorada detesta meu humor, que ela chama de “amargo e sacana”. Meus colegas de trabalho riem por educação. Meus amigos pedem para eu maneirar. Minha mãe é minha mãe. Minha irmã, como de costume, está pouco se lixando. Minhas tias escafederam-se no universo. E não converso com meu pai há uns seis meses.

O único que parece compreender essa compulsão é, curiosamente, meu padrasto. Digo curiosamente porque meu padrasto foi o homem que me ensinou a grande lição: bom mesmo é ser sério. Minha meta sempre foi simular o temperamento do sujeito. A ranzinzice elegante, a sobriedade à prova de deslizes morais, as risadas selecionadas com rigor. Um adulto feito. Esse era meu plano: vestir os sapatos muito bem engraxados do meu padrasto.

Daí o aspecto curioso dessa trama: desde que começou a perder a memória, consumido lentamente por uma das doenças mais terríveis do planeta, meu padrasto deixou de vestir os próprios sapatos. É um senhor de 55 anos que, a cada mês, regride algumas estações. Os momentos mais doloridos são aqueles em que ele próprio percebe que perdeu o controle das próprias ações. Não sabe (porque não consegue) mais tomar as decisões que, há alguns meses, pareciam automáticas. Quando percebe os sinais da própria doença, tranca o rosto e embranquece, depois fica quase amarelado, se recolhe no canto do sofá e (ele não diz, mas eu sei) se sente estúpido.

Tento passar muito tempo perto do meu padrasto porque sei que, nos dias mais desesperadores, ele precisa das pessoas que o amam naturalmente, sem esforço ou pena. Nos últimos meses, entendi que a melhor forma de lidar com a situação é tratá-la sem muita cerimônia. Conhecemos a doença intimamente: ela se instalou na nossa sala, ela sabe o caminho do quarto, ela brinca com nossos cachorros e, por isso, é inevitável que a encaremos como uma visitante desagradável, mas que chegou para ficar.

Quando encontro meu padrasto, o que nos une é (notem a ironia da coisa!) exatamente aquilo que nos afastava: o humor débil, ingênuo, paspalhão. Contar piadas nos distrai. Fazer graça de tudo (dos filmes que passam na tevê, das notícias narradas pelos jornais, nas trapalhadas dos nossos cachorros) nos aproxima de tal forma que começo a acreditar numa inversão de papéis que me parece bizarra: eu, o palhaço, virei exemplo para meu padrasto, o homem seríssimo.

Admito que, num primeiro momento, minha reação diante dessa nova mise-en-scene foi de total desconforto. Quando alguém repara que eu sou capaz de rir das minhas próprias piadas, fico envergonhado e peço desculpas. “Perdão, não consigo evitar.” Ver meu padrasto sorrindo com meu besteirol raquítico me deixa encabulado – mas, em segredo, também orgulhoso. É como se eu tivesse recuperado o narcisismo infantil que invadia a minha alma quando as minhas tias batiam palmas todas as vezes em que eu poluía a sala de estar e, logo depois, gritava babacamente: “Minha mão não está amarela!”

Com meu padrasto, eu volto a ser o rei da comédia. Um reizinho, vá lá. Um papel que aceito integralmente já que, nesse caso, é quase tudo o que posso oferecer a ele. A doença terrível nos deixa fracos, tensos, sem norte, sem chão, atados uns nos outros à espera de um futuro vazio. As esperanças existem, mas são traiçoeiras – preferimos não nos apegar a elas.

Daí que as risadas nos ajudam, estão na nossa torcida. A casa fica cheia quando gargalhamos. Sofremos com as luzes apagadas e sorrimos quando elas estão acesas. São os holofotes do palco. Até revezamos: eu sou o ator e meu padrasto está na plateia; meu padrasto é o ator e eu estou na plateia.

A risada do meu padrasto – e eu ainda não a conhecia! – hoje é meu ganha-pão e meu modelo. É meu remédio. O homem sorri de um jeito meio patético, engasgando, com os olhos fechados e os ombros girando freneticamente. É uma reação sem maldade ou culpa. Um riso sem destino, sem futuro, sem cobranças, arregaçado, soltinho na atmosfera.

É bonito de ver. E são nesses momentos ainda tão estranhos que eu – um homem nada engraçado – faço força para não chorar.

Superoito e o fio da tragédia

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Sim, eu estava em Angra dos Reis entre os dias 30 de dezembro de 2009, quando pancadas insistentes de chuva começaram a descamar o balneário, e 3 de janeiro de 2010, o domingo em que conseguimos finalmente tirar os carros da garagem e, num passeio melancólico de não mais que 15 minutos, desviamos dos morrinhos de lama, das pedras pontiagudas cuspidas no asfalto e das vias bloqueadas (eram três, todas estreitas) para abandonar apressadamente uma cidade que…

…uma cidade que, naquela manhã, vinha para cima das pessoas, de todas as pessoas, atacava-nos com o muque de um terrível paradoxo: o céu brilhante de tanto azul (sem nuvens, lindo), o mar quase vermelho (de tanto barro), os turistas nas lanchas, as crianças de bicicleta, gente apreensiva gesticulando nas varandas de casas que se equilibravam perigosamente nas encostas, postes tortos, fios soltos nas calçadas, crateras nas curvas, jet skis e piscinas lá longe, uma menina com um balde vermelho na cabeça, cerveja gelada no boteco, futebol no campinho e o vulto de um trator. É pegar ou largar, a cidade dizia. Permaneça ou fuja, que sou estranha e incompreensível e contraditória e você não me entenderá.

Decidimos fugir. Essa paisagem em scope ficou para trás quando tomamos a rodovia e seguimos ao atalho que dava para a Via Dutra.

Você quer o relato objetivo da aventura? Então tome: eu e cinco pessoas muito queridas estávamos hospedados numa casa a poucos quilômetros do centro. Como quase todas as casas da região, ela foi construída a poucos passos da encosta. Uma bela encosta, por sinal: árvores altas e exóticas, de todo tipo, uma vegetação robusta que sempre associei ao cheiro úmido que antecipa as chuvas. O cheiro lembrava a minha infância. Algumas pessoas ergueram casas elegantes e chamativas sobre o morro – não para copiar os miseráveis que se empilhavam nas favelas próximas, mas talvez para que a paisagem da Praia do Retiro enchesse as janelas todas as manhãs, com os jet skis, as lanchas e todos os outros acessórios da boa vida. Não sei explicar: há pessoas que curtem viver perigosamente, nas encostas, em meio às árvores, ali num poleiro privilegiado, e prefiro parar esse raciocínio por aqui e voltar ao relato objetivo dos fatos.

Chegamos à casa na noite do dia 28, uma segunda-feira. No dia seguinte, tomei banho de mar e fiquei queimado de sol. Tudo muito comum e desinteressante. Minhas costas ainda ardiam quando, na quarta-feira, começamos a sentir uma chuva fina, fria. O céu fechou em camadas infinitas de cinza e os turistas guardaram os jet skis para jogar baralho, tirar sonecas, ler livros e fazer os planos para o réveillon. “Que pena. Essa chuva…”, lamentavam. Mas ninguém parecia preocupado com ela, a chuva, que não caía com a potência de um tsunami. Era uma chuvazinha de nada. Está certo que, de vez em quando, o chuvisco engrossava e virava um chuvão. Mas depois voltava ao normal, àquela aguazinha sem graça, que precisaria comer muito feijão para botar alguém pra correr.

Na manhã do dia 31, estranhei a persistência da chuva. Ela simplesmente continuava. Continuava. Fraca, tímida, mas firme na labuta. Sugeri (juro que sugeri!) que fizéssemos um filme de horror sobre a chuva que nunca para. Um filme chamado A chuva que nunca para. Ninguém achou muita graça. Mas estávamos certos de que o sol voltaria a brilhar e de que (quem sabe?) a noite de ano-novo seria luminosa. Por volta das 19h, acabou a energia elétrica. Às 21h, recebíamos os primeiros telefonemas: “Parece que o caso aí de emergência, tome cuidado” (era minha mãe). “As estradas estão fechadas, parece que caiu uma encosta na rodovia” (era outra pessoa, não lembro quem). “Parece que parece que parece que parece que a coisa está feia, mas parece que parece que talvez pareça que” (tudo parecia, nada era).

Jantamos à moda medieval, iluminados por um santo lampião e nos embalos de uma trilha sonora orquestrada por grilos e ondas do mar. Os encantos selvagens da natureza, sem óculos 3D. Os vizinhos trouxeram um som portátil que espantou um pouco o clima de frustração. À meia-noite, vimos a queima de fogos mais sombria da história: explosões coloridas engolidas pela neblina, pipocos amarelados numa ilha perdida, cores meio mudas, já que a chuva (cada vez mais feroz) minimizava o impacto dos sons. As pessoas, coitadas, deixaram de lado até um ritual dos mais sagrados: pular três ondinhas do mar. Esquecemos de brindar. Trocamos champanhe por água-com-açúcar. No início da madrugada, fomos todos dormir, fulos da vida com a vida.

Antes de deitar, ouvi um barulho que em nada soava assustador. Era um baque abafado. Depois do baque, um sopro gordo de vento atravessou a janela (como se produzido por um dragão de desenho animado).

Logo descobrimos que uma árvore havia desabado no quintal da casa onde estávamos hospedados. Os galhos grossos (de quase 10 metros de largura) desceram a encosta, deitaram sobre a fiação elétrica, entortaram dois postes e foram parar exatamente à frente do nosso portão, bloqueando a passagem. Para nosso azar, não havia como sair de casa (e, com o estrago na fiação, ficaríamos sem luz por mais um tempo). Para nossa sorte, as duas outras árvores que quase cederam continuavam se equilibrando no barro de uma encosta que havia (também para nossa sorte) descolado só um pouquinho.

Todos estávamos tensos quando fomos dormir. “Com essa chuva, e as outras árvores? E a encosta? E se?” Ainda assim, deitamos. Não havia o que fazer. Tínhamos medo, mas não contávamos com possibilidades terríveis. Pouco antes de tudo isso, na manhã daquele 31, saímos de carro para o centro da cidade e, numa ladeira íngreme, quase fomos levados por uma carreta velha que, pouco antes de se chocar contra o nosso carro, fez um desvio acelerado e colidiu numa parede. Seria muita tragédia para um dia só, eu pensei. E já havíamos passado muito tempo dançando no fio da tragédia. Deveria haver uma lógica nisso tudo, na nossa vida, e essa lógica possivelmente permitiria um pouco de sorte a quem havia vivido duas quase-catástrofes em menos de 24 horas. Isso sim faria algum sentido!

Passamos o primeiro dia do ano olhando para um portão trancado, preso dentro da barriga de uma árvore morta. Não parecia muito engraçado.

Mas, de uma perspectiva menos pessimista, era sim muito engraçado. Era! Sem energia elétrica (e impedidos de sair até para comprar o jornal), não sabíamos nada sobre a dimensão de uma tragédia que era narrada a conta-gotas, com tons de exagero e nonsense. “Parece que morreram 200 pessoas numa pousada”, comentou um sujeito que havia seguido de lancha até a cidade. “Parece que fecharam a rodovia, e pra não abrir tão cedo, talvez semana que vem”, arriscou o outro. “Dizem que os homens da Defesa Civil estão chegando pra tirar a árvore e abrir o portão, mas só semana que vem”, prometiam. Enquanto ninguém aparecia para resolver o problema, tomávamos banho de piscina e tostávamos ao sol, mais ou menos felizes, mas nunca completamente felizes, com o momento de descanso (era nossa folga e éramos filhos de deus). Vi até uma cena que era puro surrealismo: uma mulher de biquíni verde, tristíssima, concentradíssima, de pé sobre uma prancha de surfe, flutuando lentamente sobre o mar plácido e marrom. Era um sonho. Era um pesadelo. Era algo inexplicável.

Abreviando o caso: a luz não voltou, os homens da Defesa Civil não chegaram, o jornal não veio e ficamos completamente alienados por 24 horas. As informações faziam eco por telefone, e truncadas. “Não vi o noticiário, meu filho.” “Mas por que, mãe?”, eu perguntava. “É que me assusto.” “Mas mãe…” E o cabo-sem-fio continuava a dissolver notícias que pareciam falsas de tão mirabolantes. 500 mortos numa pousada? Que pousada grande.

Na manhã de sábado, alguém decidiu fazer um passeio de bicicleta no fundo do apocalipse. Das cinzas do armagedom, a boa alma trouxe o jornal.

E que notícias! Era tudo tão horrível que parecia não ter acontecido. Aquela chuva boba havia criado avalanches de terra que, na noite em que a árvore caiu no quintal, aniquilou cerca de 50 pessoas. Todos corríamos risco: os da favela e os da beira-mar, os que estavam em pousadas e os que moravam perto de pousadas. A Defesa Civil pedia para que os turistas deixassem a cidade, mas não parecia ter nenhum conselho para os turistas que queriam deixar a cidade, mas estavam impedidos de sair de casa. Que Buñuel morresse de raiva: ainda havia macarrão e molho de tomate – de fome e sede nós não morreríamos.

Diante das páginas do jornal, me assustei com a ideia de que, sem o registro oficial, eu provavelmente não teria sentido a tragédia de que – em alguma medida – eu fazia parte. Depois de ter assistido às notícias da tevê, minha mãe parecia outra pessoa: estava transtornada, chorando e soluçando e gemendo ao telefone.

– Tiago, vocês foram se meter no meio de uma notícia! – minha mãe estava assombrada com aquilo tudo.

– Mas mãe, eu não sinto como se estivesse no meio de uma notícia.

– É que você não tem a noção.

– Não tenho, mãe.

– As pessoas morreram.

– Elas morreram.

– E você quase morreu.

– Não sei se foi isso o que aconteceu. Nunca se sabe.

– Um moço de 30 anos desapareceu.

– Eu estou bem aqui.

À tarde, quando os homens da Defesa Civil chegaram (com tratores e serras a diesel), começamos a notar o que (não) havíamos vivido.

– Resgatamos cinco corpos. Muitos mortos. Vocês foram sortudos. Estão dentro de casa. Tem de tudo aí pra baixo. Árvore esmagando os carros. Árvore quebrando telhados. Pedras desse tamanhão assim. Hoje cedo, fizemos dois partos numa lancha – narrou o chefe da equipe, que usava óculos Ray Ban modelo 1978 e, com um topete generosamente branco, parecia o personagem de uma série de tevê prestes a ser criada.

Não entendi onde os partos aquáticos se encaixavam na trama, mas a narrativa contada por aquele homem, vestido num macacão alaranjado e pronto para a guerra atômica, começaram a nos tragar para a cidade. O coração da selva. Quando a Defesa Civil foi-se embora e abrimos o portão, vimos a cidade. E foi só aí que sentimos a cidade. O cheiro da cidade. Um ar de ressaca. Uma impressão de medo. Depois, a sensação de que a tragédia havia passado de raspão. E que estávamos vivos graças a uma conjunção muito delicada de fatores. E se os troncos que caíram a alguns centímetros da janela do meu quarto tivessem se aproximado um pouco mais, um pouquinho mais, alguns centímetros? E se a encosta tivesse lambido o asfalto com a força com que desabou sobre as cinco casas de lha Grande? O que faríamos? Para onde correríamos? De que janela saltaríamos? Estaríamos acordados? Daria tempo? Seríamos fortes? Quem sofreria mais? Quais traumas seriam os mais intensos? Que história contaríamos? Que relevância teria a nossa história? Em quanto tempo ela seria esquecida? Como sairíamos no jornal?

E se?

Na verdade, estávamos à margem de qualquer matéria de jornal. Talvez por isso, um pouco aliviados. Se algum jornalista nos abordasse para saber sobre a nossa experiência, diríamos simplesmente: “Mas não aconteceu nada! Estamos muito bem! Foi um feriado um pouco tenso, mas saímos dele sem arranhões. Veja: estamos respirando!” Tudo muito limpo e civilizado. Quase nada aconteceu. Não havia motivo para virarmos celebridades-relâmpago.

De volta a Brasília, narrei o caso a algumas pessoas curiosas. Dez, quinze pessoas. A mesma ladainha. A casa, a árvore, a falta de luz, a encosta, a cidade esvaziada, as rodovias fechadas, o medo de morrer. Meus amigos ficaram verdadeiramente espantados com a situação, mas tenho poucos amigos. Alguns deles fizeram piadas, o que me deixou menos preocupado com a minha própria vida: rir do quase-desastre mostrava para mim que ele, o quase-desastre, estava cada vez mais longe do meu alcance, como que perdido numa realidade inventada por softwares de efeitos visuais. E, distante dele, eu poderia cumprir as atividades do cotidiano de uma forma mais leve e despreocupada, e não prestes a correr para a sala do cafezinho com medo de que uma encosta desabasse sobre o meu computador. Eu não estava perturbado por nada daquilo. Repeti três vezes, no banheiro: eu não estou perturbado, eu não estou perturbado, eu não estou perturbado.

Quando voltávamos para São Paulo, pela estrada, um dia antes, alguém comentou que eu não tinha demonstrado nervosismo algum quando vi a árvore caída no nosso quintal.

– Você ficou tão tranquilo, Tiago. Eu mal consegui dormir. Talvez você só se desespere com as pequenas tragédias.

– Deve ser isso – eu respondi (mas menti, já que não entendia ainda nada do que havia acontecido).

A viagem de volta, de carro, durou seis horas. A pista estava menos movimentada do que esperávamos. Parecia inacreditável. Tudo conspirava para a nossa felicidade, enfim. Um desfecho razoavelmente feliz. Não perdi o avião. Quando desembarquei no aeroporto de Brasília, minha mãe chorou, me abraçou e pediu para que eu dormisse em casa. “Não quero perder meu único filho”, ela chantageou, entregue ao papel de mãe total, com aquele jeito dramático que é todo meu. Decidi ficar com eles. Minha mãe, meu padrasto, minha irmã e os cachorros.

Chegamos a tempo do noticiário da meia-noite. “Venha ver o que aconteceu com vocês”, minha mãe exigia. Preferi ler o capítulo de um livro e dormir. Chega de histórias reais, pensei. Mas tombei no segundo parágrafo. Eu estava exausto.

Sonhei com encostas azuis e vermelhas sob um céu verde. Desabando.

Superoito e o dia de visita

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Meu primeiro cachorro: um poodle branco, bagunceiro, indomável, adorável, uma peça, um outsider, um James Dean, não assustava ninguém, tropeçava nas próprias patas, gostava de morder pistolas de brinquedo (amarelas e azuis), preferia filé a ração, dava piruetas. Morreu atropelado por um fusca.

O nome dele era Cherri.

Eu, um menino de 10 anos, adorava meu cão. Por dois ou três meses, ele foi um dos meus melhores amigos (não o melhor, que aí seria exagero). Meu confidente. Depois que mataram o bicho, resolvi: em homenagem ao Cherri, Tiago Superoito não teria outro cão.

Era uma promessa tola e sem sentido. Mas, ainda que não de propósito, acabou acontecendo exatamente assim. Cresci trancado em apartamentos. Pelos cães, desenvolvi certa repulsa. Me convenci de que eu era alérgico a pelos. E que gastar uma fortuna com animais de estimação era uma atrocidade politicamente incorreta (aos 17, entrei numas de salvar o planeta).

Quando nos mudamos para uma casa, depois de muito tempo, deus apontou para minha família e pregou uma daquelas peças divertidíssimas que ele, o todo-poderoso, ama de paixão: nos condenou à convivência com dois cães. Santo sarcasmo. Simba, um golden retriever carente e infantilóide. E Hatty, um beagle ranzinza, esnobe e traumatizado por rejeições amorosas (digamos que, na vizinhança, ele era o terror das cadelinhas virgens e indefesas).

Sempre foi fácil lidar com o Simba, um tipo educado e silencioso. Mas, na primeira semana, todos desejávamos que Hatty, o do nome esquisito, morresse atropelado por um fusca. Todos menos minha irmã, que se identificou com malandrinho e o adotou carinhosamente. Um par de jarros.

Nós seis – eu, minha mãe, meu padrasto, minha irmã e os dois cães – vivemos poucas e boas. Nos divertimos. Sofremos. Choramos juntos. Criamos laços. Inventamos sólidos códigos de amizade. Quatro anos depois, veja isto: somos inseparáveis.

Descomplicando a história: Simba e Hatty são dois dos nossos melhores amigos. São chapas. 100% confiáveis.  Entraram na família pela porta da frente. Nada quebraria aquela relação pura e honesta de cumplicidade.

Inexperientes no assunto, descobrimos recentemente que cachorros não vivem para sempre. Foi um choque. Um veterinário desalmado violentou a nossa inocência. Jogou a realidade na nossa cara. Quebrou o encanto. “O Simba tem mais uns três anos de vida pela frente, no máximo. O Hatty, nem isso. São velhos. E estão gordos”, disse.

Naquele momento, desejamos que o veterinário fosse atropelado por um fusca.

Há alguns dias, Hatty ficou doente e teve que ser internado para uma cirurgia na orelha. Pensamos que ele morreria. Estava velho e gordo. Mas o médico avisou que, apesar do risco, não seria um tratamento tão delicado. Nosso cão teria que passar duas semanas num hospital de cães. Descobrimos ali que o preço de hospedagem de um beagle superaria o valor gasto por minha irmã em Buenos Aires, onde passou 15 dias num albergue. Sem pensar nos miseráveis do planeta, decidimos torrar a grana. Tudo pelo bem do nosso cão marrento, sujo, feio e insubstituível.

Não quero soar piegas, mas admito que a casa ficou triste sem o Hatty. O Simba caiu numa crise depressiva e, em sinal de protesto, passou a dormir no piso frio do banheiro. Meu padrasto, que não vai nada bem, sentiu-se um pouco mais perto da morte. Minha irmã decorou a casinha do cachorro com celofane. O veterinário aconselhou que a família visitasse o Hatty e, se possível, levasse o Simba junto. “Os cachorros são amigos, não são?”, instigou. Minha mãe agendou o horário.

Marcamos a aventura para um sábado. A família estava precisando disto: uma aventura. E visitar o Hatty num hospital de cachorros seria intenso.

Explico: o Simba nunca havia saído de casa. Era uma Polyanna, quase. Um menino da bolha. Um Kaspar Hauser. Nasceu e cresceu num gramado cheio de árvores e flores e, quando tivemos que nos mudar, ele apenas fez uma viagem (tensa, barulhenta) a um outro gramado cheio de árvores e flores. Mas imaginamos que um encontro com o Hatty seria a cura para uma crise melancólica que se arrasta desde que o beagle foi internado. Secretamente, também acreditávamos que aquele passeio nos ajudaria a superar a crise de uma família despedaçada e perplexa.

Quem diria, ahn: o Hatty, um estorvo, teria a chave para a nossa paz de espírito?

Obviamente, não. Mas gostávamos de nos enganar. Daí que entramos todos no carro. Nos bancos da frente, minha mãe (ao volante) e meu padrasto (que, com lapsos constantes de memória, já esquece alguns trajetos). Logo atrás, minha irmã, o Simba e eu. A viagem duraria cerca de 20 minutos – tempo suficiente para que o Simba fizesse da minha camisa um babadouro. Ele estava tão nervoso (talvez emocionado?) diante de todas aquelas imagens aceleradas exibidas na janela. Era comovente. As árvores, as ruas, as casas, as placas de trânsito, os outros cachorros, os outros carros, as bicicletas, os viadutos, as rodovias, os cruzamentos, nuvens no formato de osso, as corujas e os sacos de lixo. Um mundo novo se abriu para nosso inocente golden retriever.

Quando chegamos no hospital, a cena parecia patética. Não era eu quem guiava o Simba na coleira vermelha, mas nosso cão me lançava de um lado para outro, excitado com aquele novo ambiente. A alegria do cachorro era contagiante. Nos alegramos com ele. E, quando entramos na enfermaria dos cães – que era triste e fedorenta, solitária, uma prisão -, não ficamos incomodados com o fato de que esperaríamos o Hatty num cercadinho inóspito, que fedia a mijo e que mais parecia a jaula de um elefante.

Esperamos. E esperamos. “Trouxe a máquina, Tiago?” “Trouxe, mãe” “O médico avisou que o Hatty tá fraco” “Eu sei, mãe. Seremos fortes” “Sem piadas, Tiago” “Ok, mãe. Faça uma pose, faça”.

Quando abriram a jaula, foi impossível achar graça. Suspiramos de tristeza. Hatty, o cão mais cínico e insensível do mundo agora parecia um ser deplorável, manco e nanico, que só sabia tremer e chorar. O beagle, que sempre rejeitou carinho, agora corria para os braços da minha mãe, que também parecia inconsolável. “O que fizeram com você, Hatty?”, ela suplicava. Com a cabeça protegida por curativos, o cão-múmia parecia verdadeiramente abandonado. Aquilo partiu nossos corações.

(Minto: o coração do Simba parecia pegar fogo. De alegria. De excitação. Para ele, aquele era o primeiro dia do resto de uma vida. Quando Hatty entrou no cercadinho, o amigo latia para uma cadela pincher com a pata quebrada)

Não digo que o sofrimento do nosso cão tenha unido nossa família. Seria bobagem. Nem que tenha acentuado nosso drama. Nada disso. O veterinário garantia que o cachorro seria curado. Confiávamos nele. Aquele passeio, no fim das contas, não teria nenhuma importância prática. Para o Simba, a ausência do Hatty não parecia incomodar muito (ele queria alguma companhia, qualquer companhia).

Enquanto eu tirava fotos da minha mãe e da minha irmã, notei que meu padrasto estava encolhido no canto do cercadinho, observando nossos movimentos como quem busca algum conforto. Por 15 ou 20 minutos, estávamos preocupados com outro assunto que não doenças, tragédias e solidão.

Quando finalmente nos enchemos daquilo, o veterinário avisou que teríamos que sair lentamente do cercadinho. Um de cada vez. Saímos eu e meu padrasto. Ficamos alguns minutos naquela posição estranha: de longe, observávamos minha mãe e minha irmã trancadas numa jaula, agachadas, acariciando um cão moribundo. Trancadas numa jaula. Agachadas! Olhei para meu padrasto e ri. Ele riu de volta. Os cães todos latiam. Rimos alto.

Envergonhada com a cena, minha mãe pediu silêncio. Mas não obecedemos. Não daquela vez. Estávamos bem. Fazia sol. Era um dia lindo. Um sábado. O cão não morreria. E aquela era a nossa ideia de uma grande aventura.