Meu padrasto
Os discos da minha vida (41)
A saga dos discos que afligiram a minha vida chega a um episódio febril. No capítulo de hoje, este blogueiro (com a cabeça ardendo de preocupação) dá um pause na rotina tumultuadíssima e cumpre com certo atraso o compromisso amplamente babaca de listar mais dois discos de uma lista que contém 100 álbuns selecionados de acordo com critérios muito pessoais.
Há boatos de que estou perdendo meu tempo: sim, meus chapas, estou mesmo. E essa perda descontrolada de punhados e punhados de tempo me põe numa agonia sem fim. A impressão é de que, quando corro meus dedos neste blog, mexo num cadáver. Meio mórbido, eu sei.
Minha vida anda tão complicada que renderia muitos posts sentimentais sobre temas que me deixariam envergonhado no dia seguinte. Prefiro ficar na minha. Meu coração vai bem, batendo e batendo feliz, mas o resto está quebrando. Espero que essa sensação ruim vá embora no fim dessa fábula dark. Por enquanto, o Tiaguinho aqui tá no meio da floresta. E é noite.
No entanto, vocês querem saber dos discos e está de hora de irmos de encontro a eles. Ok? A dupla de hoje é, pra mim, fundamental (obviamente). Abrimos o top 20 (oh! negrito!) com uma obra-prima e uma quase obra-prima. E nem vou perder meu tempo batendo na tecla de que são discos importantíssimos, que moldaram meu temperamento, que me educaram e que me deram de comer. Tudo isso tá se tornando muito repetitivo. Para nossa sorte, a jornada se aproxima do fim.
Nem demorou tanto assim, certo? Certo.
020 | The queen is dead | The Smiths | 1986 | download
Passei tanto tempo congelado em I know it’s over, uma hit premonitório sobre os meus 15/16 anos, que só focalizei o disco muito depois, quando minha adolescência já havia terminado. E aqui, ainda, muito firme ao lado dos que consideram este álbum uma espécie de resumo da Mitologia do Rock Britânico, em tudo o que essa história tem de irônica, elegante, cruel, autodepreciativa e, se pensarmos em melodia/refrão, adorável. Conheci o disco mais ou menos na época em que eu ouvia Parklife, do Blur, e foi como descobrir Hitchcock em meio a uma paixão por Polanski. Primeiro senti algum receio, acho que assombrado pelo romantismo um tanto sufocante de Morrissey, depois entendi que não há muito como resistir. Encontrei nessas 10 músicas a minha balança para pesar cada um dos lançamentos do britpop: discos muito esforçados, sim, mas nenhum perfeito como este aqui. Top 3: I know it’s over, There is a light that never goes out, Cemetry gates.
019 | Radio-activity | Kraftwerk | 1975 | download
Meu caso com o Kraftwerk começou muito antes da temporada eletrônica dos anos 1990. Ouvia Radio-activity já aos 10, 11 anos, uma época em que eu tratava a música pop com total despretensão. Nada mais era que um vinil tratado com orgulho por meu padrasto. O velho não sabia explicar absolutamente nada sobre a banda (“uns malucos da Alemanha”, ele dizia), mas considerava a sonoridade “estranha” e ao mesmo tempo “envolvente”. E isso, para mim, naquela época, era o bastante. Lembro de ter passado algumas tardes ouvindo o lado A do álbum, tentando decifrar o que aquilo representava. Muito tempo depois, num show da banda, meus olhos encheram de lágrimas quando eles tocaram Radioactivity. Foi quando eu percebi a importância da música e do disco para a minha vida. Voltei a ele, comprei uma cópia em CD, e sempre que eu ouvia era como assistir a um fantasma pairando. Uma pena: o vinil despareceu, e meu padrasto aparentemente não sente falta alguma dele. Top 3: Radioactivity, Antenna, Ohm sweet ohm.
Após o pulo, confira os discos que já apareceram neste ranking.
Os discos da minha vida (25)
A saga dos 100 discos que conheço como a palma da minha mão chega a um capítulo especialmente doméstico. Vamos esfriar a cabeça e conversar sobre família? Só por um minuto?
Sei que há temas muito mais urgentes (questões sobre gagueira em O discurso do rei, para ficarmos num tópico muito quente), mas este ranking já é grandinho e anda com as próprias pernas. Deixem o moleque ser feliz, ok?
Voltando ao tema: família. Os discos de hoje se aninharam na minha vida graças às influências da minha mãe e do meu padrasto. Eu disse que seria uma listinha muito pessoal, certo? Sejam bem-vindos à sala de estar.
Também são discos que, durante a infância, eu detestava até a morte. Detestava até debaixo d’água. Detestava até com cobertura de chocolate. Detestava até com geleia de framboesa. Detestava. Detestava.
E detestava porque eles sempre estavam lá. Eles sempre estavam rodando na vitrola. Produziam ruídos familiares. Acredito até que fui um pouco alfabetizado por eles. Primeiro em português, depois em inglês. Quando comecei a crescer, e a rejeitar tudo o que pertencia aos meus pais, esses dois discos sofreram muito, pobrezinhos.
A redenção veio muito depois, quando eu fiz 20, 25 anos, e voltei aos álbuns que soavam como parte do meu organismo. Fui ouvir os discos a sério e descobri que eles eram velhos companheiros. Irmãos briguentos, mas adoráveis. Irmãos que desaparecem e depois voltam. Irmãos que, quando a gente menos espera, começam a fazer falta.
É esta a história. Vamos a eles, esses bastardos cheios de glória.
052 | Construção | Chico Buarque | 1971 | download
Entre os discos do Chico, não é aquele de que minha mãe mais gosta (de longe, o preferido é Almanaque), mas é aquele que gravei numa fita cassete e levei comigo. Com o tempo, quando abandonei os traumas de infância e me familiarizei com a discografia inteira do homem, descobri aquele que talvez seja o mais valente dos discos brasileiros. Destemido em tudo: nos arranjos épicos de Rogério Duprat (que o aproximam de uma sonoridade tropicalista, impensável nos álbuns anteriores, muito comprometidos com a tradição do samba), em versos que confrontam o regime militar com uma proximidade quase suicida, nas canções que descortinam um país tomado por um certo mal estar (mas um Brasil também infinitamente lírico, vasto). Tudo isso e sim, claro: um disco mais moderno do que 90% do que é gravado hoje no país. As mães, acredite, têm razão. Top 3: Deus lhe pague, Valsinha, Construção.
051 | The dark side of the moon | Pink Floyd | 1973 | download
O disco favorito do meu padrasto sempre me pareceu de uma pompa insuportável. Lembro que, aos 12 anos, eu reclamava sempre que os sinos começavam a soar na sala – e isso acontecia praticamente todo fim de semana. Era o álbum que, na época, representava tudo o que eu queria combater: os enormes monumentos erguidos por meus pais. Eu me trancava no quarto e ouvia grunge, punk rock. Foi muito tempo depois, quando até o meu padrasto parecia ter se cansado do tilintar da máquina registradora (e de outros efeitos especiais), encontrei nas canções o lado obscuro da minha adolescência. O som que batia à porta do meu quarto. Foi como voltar àquelas tardes tão banais: meu padrasto encostado na janela, sugado por melodias que irradiavam de outro planeta. Uma parte da vida também foi engolida por este disco, e aí não importa mais se acho uma grande de uma chatice cósmica (mas fiquem tranquilos: não é). Top 3: Breathe, Us and them, The great gig in the sky.
Superoito e a morte do cão
Meu cachorro, o beagle encardido e magricelo, morreu.
Recebi a notícia do modo mais frio. Uma mensagem de celular. “O cão morreu”. O motor estava ligado e permaneceu assim por uns três, quatro minutos. Nenhum movimento, apenas o zumbido irregular de todas as manhãs. As peças chacoalhando preguiçosamente, aos soluços. Uma névoa seca, alaranjada, borrando a paisagem. Um vulto desceu no retrovisor. E eu agarrado ao volante, fixo e tenso, como quem resolve acelerar para dentro de um tufão.
Depois consegui sair do estacionamento e o dia, que deveria ter seguido mais ou menos como os outros, começou a me parecer hostil. O que havia acontecido?
Telefonei para minha irmã e ela improvisou o obituário. O cão, que estava internado há uma semana em um hospital canino, sofria de uma infecção renal que o maltratava a cada dia. Era pele e osso, o pobre mamífero. Mal se aguentava sobre as quatro patas. Quando fazia frio, ele se encolhia feito um tufo de lã enrolado num graveto. “Era a hora”, minha irmã explicou. “Mais cedo ou mais tarde…”, continuou. E eu preenchi as lacunas. Ficamos em silêncio. Dizer o quê? Murmurei algo como “é uma pena, mas…”, e continuamos naquele passo, fazendo rodeios no reino do subentendido.
Certamente havia um ritual a ser seguido em casos como esse. Quando um cachorro morre, o que se faz? Eu não sabia. Até hoje, meus cãos não morriam. Eles não morriam. Obviamente, todos, sem exceção, partiram dessa para uma pior. No entanto, não acompanhei as etapas finais, as agonia dos últimos dias.
Meu primeiro cachorro, um poodle muito peralta, mudou-se para a casa de uma dentista e não mandou notícias. Os cães da minha avó morriam à rodo, atropelados, espremidos e alargados feito massa de macarrão, lançados à estratosfera sempre que se atreviam a desfilar numa avenida perigosíssima que começava lá no início do mundo e terminava no juízo final. Eram uns infelizes, uns sem-futuro.
Desde pequeno, me convenci de que, como acontece com as pessoas, cães morrem todos os dias, atropelados ou não. E cães geralmente somem muito antes das pessoas (e bem depois dos peixes, por exemplo).
Hoje descobri (tarde demais?) que nenhuma dessas certezas se sustenta quando o cão que morre é o seu cão.
O que senti, para ser sincero, foi um misto de tristeza e constrangimento. Primeiro a tristeza, depois do constrangimento. Em seguida, os dois juntos. Constrangimento por ter me sentido tão triste com a notícia, com aquela mensagem lacônica de celular. Desconfio até que chorei um pouco, umas fungadas descontroladas que se perderam dentro do barulho do carro, mas me recuso a confirmar essa informação. Suspeito até que cheguei a pensar em algo muito sentimental e tolo como “meu cãozinho!”, mas não, isso não deve ter acontecido.
Me surpreendi, isso sim, com a intensidade desses sentimentos. Todo aquele drama por conta de um beagle temperamental? Um animalzinho ranzinza e feioso, que, ao contrário do meu golden retriever (esse sim, um gentleman), sequestrava minhas cuecas e se entortava no vão da porta para mijar no tapete da sala? Do que eu sinto tanta falta?
Talvez eu sofra com as memórias onde o beagle aparece. Meu padrasto na varanda, a melancolia em pessoa, já adoecido e perplexo com a doença, acarihando aquelas patas quase invisíveis. Ou o dia em que, internado no hospital canino para tratar das orelhas, o beagle reuniu minha família inteira dentro de um cercadinho fedorento, de ladrilhos sujos, como bichos no zoológico. E, mesmo sem querer, foi o responsável por uma daquelas cenas lindas e ridículas que resumem a existência.
Pode ser (não descarto a hipótese) que tenha a ver com a ausência dele, o espaço em branco que o cão deixou. Isso, de alguma forma, me machuca.
Há três anos, adotamos o beagle. Nenhum outro dono queria saber dele. O cão era inofensivo porém arruaceiro. Só fazia o que dava na telha. Montava nas cadelas dos vizinhos e devorava as plantas do jardim. Era uma peste. Nos primeiros dias, ele travou guerras desastradas com meu golden retriever. Perdeu todas. Semanas depois, um não conseguia viver longe do outro. Melhores amigos para sempre.
Assim que o beagle foi levado ao hospital, meu golden retriever se recusou a dormir fora de casa. Era uma novidade. Mais educado e metódico do que qualquer pessoa que conheci, o cachorrão só entrava em casa em dias de tempestade ou jogos de futebol (ele teme os fogos de artifício como quem se arrepia com imagens de explosões atômicas). Sem o beagle, no entanto, ele resolveu nos desobedecer. Eis o legado do cachorro morto: a desobediência.
Daí que compramos outro cão: um labrador de quatro meses que, talvez à procura de uma saída, cava buracos profundos na terra e continua cavando.
Ainda um tanto estremecido (e envergonhado: cães morrem todos os dias), telefonei para minha mãe. Ela soava miúda. “Chorei a manhã inteira”, confessou. “É complicado…”, eu arrisquei. “Mas é só um cachorro, Tiago. E tudo o que vem acontecendo com a gente…”, e ela quase continuou, mas ainda é difícil chegar ao assunto número um. “Não era só um cachorro”, eu consertei. E eu, novamente: “Tudo o que está acontecendo talvez nem tenha a ver com isso, com o cachorro, sabe? O cachorro estava morrendo há semanas, estava fraco, então não tem a ver”. “Pois eu acho que tem sim”, minha mãe disse, com muita convicção, e eu acreditei nela. Desligamos o telefone quase ao mesmo tempo.
Eu não disse mais nada. Nem ela. Tentei mudar de assunto e perguntei sobre meu padrasto. Era a questão de todas as noites. “Como ele está?” E a resposta costuma ser: “Como sempre”. Uma resposta falsa, mas reconfortante. No dia anterior, ele se perdeu no caminho de uma loja que conhecia melhor do que todos nós. Antes disso, perto da barbearia onde ele corta o cabelo, meu padrasto olhou para mim (olhos vazios) e perguntou: “O que estamos fazendo aqui?”
Os flocos de memória se desintegrando como pulgas sob uma chuva de inseticida.
O que estamos fazendo aqui? O que estamos fazendo aqui? Eu forcei um sorriso. Está tudo ok, meu sorriso dizia. Mas meus ombros pesavam. “Cortar o cabelo, lembra?”, eu tentei orientá-lo. E ele (olhos vazios) respirou fundo.
Hoje pela manhã, quando soube de notícia, parece que meu padrasto chorou. Dizem que ele chorou. Deve ter chorado, ou sentido o mesmo vulto terrível que me paralisou ao volante por alguns minutos. Deve ter acontecido. Mas não conheço quem confirme a informação.
Superoito e a praga dos gafanhotos
Quando imagino o fim do mundo, não temo inundações, explosões nucleares, vulcões esquentadinhos, loucos varridos ou hordas de zumbis. A ideia de apocalipse só me parece verdadeiramente terrível quando inclui pragas de insetos.
Aos 11 ou 12 anos, nas aulas de religião, meus ossos tilintavam de pânico ao notar a aproximação da mais sinistra entre as passagens bíblica. Aquela em que o todo-poderoso evoca um vento oriental que infesta de gafanhotos as manhãs e as noites do Egito.
Lembro que a Bíblia, muito objetivamente, relata os prejuízos financeiros provocados pela maldição: nenhuma verdura nas árvores, nem erva do campo. Mas, naquelas páginas, não havia nada, absolutamente nada, sobre a dona de casa que jogava gamão quando, subitamente, se viu atacada por bichinhos esverdeados. Gafanhotos saltitando entre os fios de cabelo, gafanhotos nas orelhas, gafanhotos nas narinas, gafanhotos sob a camisola, gafanhotos boca adentro, gafanhotos e gafanhotos e malditos gafanhotos.
As entrelinhas da Bíblia são um pesadelo.
O que mais me impressiona minha incapacidde para lidar com essa possibilidade. Nunca fui maricas para insetos. Sou o homem da casa e, por isso, eu mato as baratas. Comigo, nenhum mosquito pode. Sou um destruidor de lares quando o assunto é vespa e não sinto nojo ao tropeçar em lesmas. Acho até engraçadinho! Meus nervos são blindados. Na adolescência, me agradava a sensação de trancar mariposas na palma da minha mão só para mostrar às menininhas apavoradas que eu me qualificava, sim, como um baita de um homem.
Mesmo naquele tempo, no entanto, eu apostava (com medo, muito medo) que os insetos seriam os primeiros a nos enxotar deste planetinha vil. Eles viriam em torrentes. Eles cuspiriam líquidos amargos. Eles fariam barulhos nauseantes. E entrariam nos nossos orifícios. E aí o mundo acabaria, já que não suportaríamos a humilhação.
Qual não foi meu espanto quanto, há três dias, ao chegar em casa, notei que meu pequeno apartamento estava tomado por gafanhotos. Dois, três, quatro gafanhotos. Um deles acomodado no meu sofá amarelo. O outro admirava o monitor do meu laptop, que piscava em azul e verde. Havia um na geladeira, dois na escrivaninha. Todos verdinhos, aparentemente pacíficos, idênticos, mais ou menos como uma coleção de origamis criada por um sujeito perfeccionista e desocupado. Miniaturas do armegedom.
Em um primeiro momento, decidi matá-los todos com uma lufada de inseticida. Mas pensei novamente: não é assim que se trata bichinhos tão perfeitinhos e (aparentemente) inofensivos. Se eles resolveram visitar o meu apartamento, eu deveria encará-los como hóspedes desavisados, mas inocentes. Nada de declarar guerra ao inimigo antes da hora. Vertebrados ou não, somos seres civilizados. Cuidadosamente, tentei capturá-los com a pá vermelha. Me aproximei muito lentamente, muito discretamente, muito carinhosamente, muito mais Obama do que Bush, mas todos eles saltitaram, criaram uma confusão infernal. O que me obrigou a avançar sobre a lata de inseticida e, certeiro feito um GI Joe, provocar uma chacina verde na minha sala de estar.
Em vão. No dia seguinte, encontrei mais cinco gafanhotos, dois deles na cozinha. No corredor para o apartamento, encontrei cadáveres de insetos que não resistiram ao confronto com os humanos. Pobrezinhos. E estúpidos, os coitados: no posto de gasolina, perto aqui de casa, vários ainda voam intrépidos em direção à luz e, exaustos, caem fritos no jardim.
No início da noite, a aglomeração de seres verdes era tão vistosa que fechei as janelas do carro para não ser surpreendido por um filhote descuidado. A cena me hipnotizou. Então é isso? O fim do mundo começará pelo meu bairro? Nós, os tranquilos moradores desta região tão silenciosa e pacata, estamos fadados a inaugurar a temporada infernal da humanidade? Seria mais uma entre tantas ironias divinas com que nos acostumamos a viver?
Juro que percebi apreensão, quase desespero, muito mais do que nojo, nos olhos dos outros motoristas. Por mil gafanhotos!, os olhos protestavam. Ninguém parecia acreditar no fenômeno (que, para os moradores, soava como uma completa novidade, nunca antes na história!). Era uma ferroada na nossa rotina, um rasgo na sucessão tão previsível de acontecimentos que organiza a nossa existência. Na fila do sinal de trânsito, os insetos esbarravam nos nossos vidros, lambuzavam o asfalto. Cobravam reações, respostas. Mas a que perguntas? O que eles querem de nós? De onde eles vêm? Por quanto tempo eles ficam?
Seriam eles o resultado de um corte abrupto na cadeia alimentar de um predador? Ou um indicativo de que o pior ainda estava por vir (na próxima semana: gafanhotos mais gorduchos e irritadiços, talvez)?
Estávamos confusos.
Os gafanhotos nos obrigaram a pensar no nosso futuro. O que acontecerá depois? Eles nos atiçaram a raciocinar sobre o funcionamento da natureza, que quase nunca interfere no nosso cotidiano. O que acontece agora?
Ao tirar o lixo, agorinha, ouvi a conversa das vizinhas: “Eles são fraquinhos. Use uma revista ou o chinelo. Eles nem ligam. Ficam paradões. São umas coisinhas.” E, naquele zum-zum-zum de superlativos e diminutivos, comecei a me simpatizar pelos tolos insetos que não oferecem resistência, que são banais, uns equívocos dos deuses, meras perturbações. Uns descerebrados que arriscam tudo por alguns minutos diante da luz branca que queima em nossos apartamentos muito limpos e práticos.
Minha hipótese é que, como acontece com outros insetos menos extravagantes, os nossos gafanhotos também desaparecerão misteriosamente em duas ou três semanas. Não sentiremos falta e, pouco depois, não nos lembraremos desses incômodos visitantes. Estaremos preocupados com outros assuntos. Ou (como acontece frequentemente) tentaremos nos preocupar com coisa alguma. E aquela bizarra imagem de fim de mundo – pragas, eventos inexplicáveis da natureza, gafanhotos pueris em plena cidade grande – ficará guardada no mesmo compartimento do nosso cérebro que armazena flashes de acidentes de trânsito e cenas de filmes ruins.
“Sempre tentei não pensar no futuro”, foi o que minha mãe disse, hoje cedo. Almoçávamos juntos. Quando ela afirmou aquilo, aquela frase (um tipo de conclusão desiludida que não se comunica aos filhos), lembrei dos gafanhotos que me esperavam no apartamento. A confissão me assombrou. Eu sempre evitei fazer planos e, como ela, só agora me dei conta disso. Desse meu traço de personalidade. Dessa minha resistência a imaginar o porvir. Desse desinteresse pelo amanhã. Soou como uma revelação: seria herança materna? Seria genética a doença de não querer olhar para frente?
O que assusta a minha mãe são as cenas dos nossos próximos capítulos. Nossa vida, parte 2. A doença do meu padrasto – e ela não o abanona, não o abandonará – faz com que pensemos no assunto. O futuro está aqui, mais próximo do que nunca. Ele nos vigia. Ele nos instiga. Ele é o gafanhoto no televisor; uma anomalia, um invasor. Diante dele, não sabemos o que fazer. O encaramos com perplexidade. Não entendemos nada, somos crianças – devemos torcer para que ele suma? Ou aceitá-lo como um hóspede permanente?
Sabemos que está na hora de, pelo menos, refletir sobre o drama em que estamos metidos. Mas não são poucas as vezes em que nos pegamos desviando do tema, mudando de assunto. “Conte sobre aquele caso do trabalho”, a mãe provoca. E eu, o filho, narro a anedota mais risível. Reclamo das contas que devo pagar e do mecânico que perdeu a peça do carro e do preço do cereal e das pequenas doenças que não nos atrapalham. Tenho que tomar a vacina e planejar a viagem. Nos irritamos com o que nos parece trivial e falamos sobre isso. Falamos muito, mais do que queremos falar. Isso até o instante em que o grande tema se instala. Aí a cortina cai; encerra-se o espetáculo da normalidade. Voltamos a ser pessoas muito perdidas, bichinhos ao redor da lâmpada, eu e ela.
Mas raros são os dias em que chegamos a tanto. Somos daqueles que deixam para outra ocasião. Sempre. Depois de matar o último gafanhoto, fechei as janelas da sala, do quarto e do banheiro. Isolei o vão da porta com o tapete e um pano de chão. Apaguei a luz do corredor e torci para que os insetos não encontrassem uma fresta. Fiquei em silêncio por meia hora, à espera de que algo inesperado acontecesse. Nada aconteceu. Nada. Era uma noite como as outras. Dentro do apartamento, o planeta ainda girava.
Primeiro pensei: por enquanto. E depois: antes assim.
Superoito, o rei da comédia
Não sou um homem engraçado.
Mas sempre achei que sim. Sempre acreditei que esse fosse o caso. Desde muito cedo, ainda bem pequeno, quando aprendi a fazer barulhos estridentes com os beiços, encher minhas bochechas de ar até que quase explodissem, esticar a língua até o queixo e dançar feito um macaco dopado, com braços de fantoche. Minha mãe sorria. Minha avó rendia-se a elogios. “Esse menino é uma graça!”. Minhas tias obesas, que me apelidaram de Guigo, exclamavam bobagens superlativas. “Guigo é o máximo”. “Guigo é um menino muito esperto”. E aposto que, em segredo, admitiram: “Guigo é o novo Jerry Lewis!”.
Não tenho lembranças muito precisas daquela época – dois anos de idade! -, mas sei bem (como se fosse hoje) que eu sentia um tipo muito caloroso de satisfação quando as pessoas gostavam das minhas piadas. Meu troféu eram as risadas soltas, francas, demoradas. Eu me enchia de vaidade mesmo quando recebia sorriso com os truques mais tolos – e, nos meus primeiros anos de vida, quase todas as minhas gozações envolviam barulhos escatológicos.
Talvez minhas tias tenham encenado tudo com muito talento (ou simplesmente me mimado, já que Guigo era o homenzinho da casa), mas elas me convenceram de que eu era o rei da comédia. Aos cinco anos, eu contava anedotas com alguma habilidade. Era inaflível: eu sabia como criar uma atmosfera cruel de suspense e, depois, ir torturando as minhas vítimas até a frase final, hilariante e inesperada. Meu saquinho de gags não tinha fundo quando, no colégio, eu camuflava minha timidez na hora do recreio, contando histórias quilométricas, enervantes, que terminavam num golpe genial de humor barato, sujo, desaconselhável para menores.
Isso até os dez anos de idade, quando me entediei com as gracinhas de salão e decidi investir pesado no sarcasmo. Eu era o horror da ironia, das alfinetadas, dos comentários ácidos, das fofoquinhas malvadas. Acredito até que exorcizei toda a minha rebeldia adolescente nesses atos explícitos de escárnio. O poder de soltar a última gargalhada cínica fazia com que eu me sentisse um rapazinho muito inteligente, mas era um dom incompreendido. Mais tarde, notei que minha vocação era interpretada como arrogância.
Pior: notei que, ilusões à parte, não sou, nunca fui um homem engraçado.
Talvez todos os meus traumas de juventude tenham brotado aí, no dia em que encarei o espelho imaginário e percebi que nunca fui um bom palhaço. E que, para que crescesse como um adulto mais ou menos apresentável, eu não deveria me esforçar tanto para soar como um comediante decadente trancado num reality show de fiascos da stand-up comedy.
Toda a minha disposição para a sobriedade, porém, nunca vingou. O meu “eu palhaço” já havia devorado o meu “eu sisudo” e não havia nada que eu pudesse fazer para alterar esse placar. Uma guerra perdida. Daí que segui com esse jeito meio torto e vergonhoso, rindo das minhas próprias piadas e aproveitando todas as brechas do cotidiano para bolar trocadilhos e paródias que nunca sobreviveriam aos rascunhos de uma sitcom vagabunda.
Um humorista amador compulsivo, é claro, incomoda muita gente. Minha namorada detesta meu humor, que ela chama de “amargo e sacana”. Meus colegas de trabalho riem por educação. Meus amigos pedem para eu maneirar. Minha mãe é minha mãe. Minha irmã, como de costume, está pouco se lixando. Minhas tias escafederam-se no universo. E não converso com meu pai há uns seis meses.
O único que parece compreender essa compulsão é, curiosamente, meu padrasto. Digo curiosamente porque meu padrasto foi o homem que me ensinou a grande lição: bom mesmo é ser sério. Minha meta sempre foi simular o temperamento do sujeito. A ranzinzice elegante, a sobriedade à prova de deslizes morais, as risadas selecionadas com rigor. Um adulto feito. Esse era meu plano: vestir os sapatos muito bem engraxados do meu padrasto.
Daí o aspecto curioso dessa trama: desde que começou a perder a memória, consumido lentamente por uma das doenças mais terríveis do planeta, meu padrasto deixou de vestir os próprios sapatos. É um senhor de 55 anos que, a cada mês, regride algumas estações. Os momentos mais doloridos são aqueles em que ele próprio percebe que perdeu o controle das próprias ações. Não sabe (porque não consegue) mais tomar as decisões que, há alguns meses, pareciam automáticas. Quando percebe os sinais da própria doença, tranca o rosto e embranquece, depois fica quase amarelado, se recolhe no canto do sofá e (ele não diz, mas eu sei) se sente estúpido.
Tento passar muito tempo perto do meu padrasto porque sei que, nos dias mais desesperadores, ele precisa das pessoas que o amam naturalmente, sem esforço ou pena. Nos últimos meses, entendi que a melhor forma de lidar com a situação é tratá-la sem muita cerimônia. Conhecemos a doença intimamente: ela se instalou na nossa sala, ela sabe o caminho do quarto, ela brinca com nossos cachorros e, por isso, é inevitável que a encaremos como uma visitante desagradável, mas que chegou para ficar.
Quando encontro meu padrasto, o que nos une é (notem a ironia da coisa!) exatamente aquilo que nos afastava: o humor débil, ingênuo, paspalhão. Contar piadas nos distrai. Fazer graça de tudo (dos filmes que passam na tevê, das notícias narradas pelos jornais, nas trapalhadas dos nossos cachorros) nos aproxima de tal forma que começo a acreditar numa inversão de papéis que me parece bizarra: eu, o palhaço, virei exemplo para meu padrasto, o homem seríssimo.
Admito que, num primeiro momento, minha reação diante dessa nova mise-en-scene foi de total desconforto. Quando alguém repara que eu sou capaz de rir das minhas próprias piadas, fico envergonhado e peço desculpas. “Perdão, não consigo evitar.” Ver meu padrasto sorrindo com meu besteirol raquítico me deixa encabulado – mas, em segredo, também orgulhoso. É como se eu tivesse recuperado o narcisismo infantil que invadia a minha alma quando as minhas tias batiam palmas todas as vezes em que eu poluía a sala de estar e, logo depois, gritava babacamente: “Minha mão não está amarela!”
Com meu padrasto, eu volto a ser o rei da comédia. Um reizinho, vá lá. Um papel que aceito integralmente já que, nesse caso, é quase tudo o que posso oferecer a ele. A doença terrível nos deixa fracos, tensos, sem norte, sem chão, atados uns nos outros à espera de um futuro vazio. As esperanças existem, mas são traiçoeiras – preferimos não nos apegar a elas.
Daí que as risadas nos ajudam, estão na nossa torcida. A casa fica cheia quando gargalhamos. Sofremos com as luzes apagadas e sorrimos quando elas estão acesas. São os holofotes do palco. Até revezamos: eu sou o ator e meu padrasto está na plateia; meu padrasto é o ator e eu estou na plateia.
A risada do meu padrasto – e eu ainda não a conhecia! – hoje é meu ganha-pão e meu modelo. É meu remédio. O homem sorri de um jeito meio patético, engasgando, com os olhos fechados e os ombros girando freneticamente. É uma reação sem maldade ou culpa. Um riso sem destino, sem futuro, sem cobranças, arregaçado, soltinho na atmosfera.
É bonito de ver. E são nesses momentos ainda tão estranhos que eu – um homem nada engraçado – faço força para não chorar.
Superoito e a ordem no caos
Tenho a impressão de que meus sonhos contam uma história. Desconfio que, se fosse possível organizá-los em ordem cronológica, como quem forma um quebra-cabeça de milhares de peças, eles narrariam uma saga. Minha saga. As peripécias da minha existência. Com tintas surrealistas. E desfechos quase sempre surpreendentes.
O problema é que não lembro de todos os sonhos. Daí as lacunas entre um capítulo e outro. Espaços em branco. Buracos negros. Crateras que nunca serão preenchidas, coisa e tal (a menos que os cientistas inventem uma forma de escanear nossa consciência em busca de fragmentos de sonhos invisíveis, mas acho difícil).
Gosto quando lembro dos meus sonhos e adoro interpretá-los. Principalmente na hora do jantar. Minha mãe, que é psicóloga, costuma ajudar. Dá boas dicas. Geralmente cita Freud para interpretar as cenas mais abstratas. Duvido que ela acredite em Deus. Mas tenho quase certeza de que minha mãe tem fé em Freud.
Os sonhos recorrentes sempre me espantaram. Ainda me espanto com eles. Nesses casos, suspeito que meu cérebro esteja atuando por conta própria, sem minhas ordens. Um free-lancer. Um microcomputador que aprendeu as delícias do livre-arbítrio. Um CPU fantasma! Há duas semanas sonho com o mesmo tema. Quase todos os dias. Meu subconsciente, de vez em quando, é meio burrinho, coitado: funciona como um LP arranhado.
O sonho de ontem explica todos os outros sonhos recentes, que reprisam uma mesma aflição. Aconteceu assim: eu estava num transatlântico, em alto mar, vestido com uma camisa muito extravagante e improvável (amarela, brilhante, com coqueiros e um laguinho) e sunga preta. O sol queimava minha testa, mas eu me recusava a pular na piscina. Eu preferia ficar sentado numa mesa de rodinhas, sozinho, jogando cartas (quem me conhece sabe que odeio jogar cartas, mas sonhos são sonhos são sonhos). Meu adversário na brincadeira não estava ali. Eu esperava que ele retornasse para que continuássemos a partida.
Havia 10 ou 12 pessoas na piscina. Todas muito contentes. Estávamos de férias, aparentemente.
Meus sonhos sempre começam felizes e terminam tensos, apocalípticos. Aquele não era exceção. Minha mãe, que usava um maiô verde-escuro muitíssimo brega, parecia nervosa quando se aproximou da minha mesa. Ela bebia um drink cor-de-rosa e tinha uma notícia séria para contar. Preferiu falar baixo, talvez para não estragar o dia dos outros passageiros.
– Tiago, seu padrasto está doente – ela disse.
– Como assim? – perguntei. Minha testa ardia.
– Ele machucou os braços. Não pode comandar o navio.
– Mas ele estava comandando o navio? O nosso navio?
– Sim, obviamente. Ele era o comandante do nosso navio.
– Meu Deus.
– Você não acredita em Deus, Tiago.
– Mesmo assim. Meu Deus. Ele era o comandante do navio?
– Sim, sim. E está doente. Não consegue mover os braços. Por isso não pode mais comandar o navio.
– E não existe um copiloto no nosso navio, mãe? Sempre existe um copiloto.
– Não existe um copiloto.
– Piloto automático?
– Não.
– Talvez seria possível… Usar os pés?
– Ele tem cãibra.
– Cãibra?
– Tiago, estamos perdidos. Eu, você e as 60 ou 70 pessoas que estão se divertindo à beça neste navio.
– São 60 pessoas?
Minha mãe me olhou com ar de cansaço. Deixou a toalha na mesa, espalhou as cartas do baralho, abandonou o drink exótico e correu para a piscina. Deu um mergulho. Olhei para o horizonte e vi um clarão atômico. Acordei.
Nos outros sonhos, a situação muda superficialmente: o carro, a motocicleta, a bolsa de valores, o controle de energia elétrica da cidade – tudo no mundo subitamente passou a ser controlado por meu padrasto. Que, infelizmente, estava doente e não poderia nos ajudar naquele momento. Eram sonhos didáticos. Extremamente e estranhamente didáticos. Sonhos até triviais. Bobos mesmo. Sonhos dirigidos por cineastas amadores. Escritos por Paulo Coelho. Com roteiro do Manoel Carlos. Não havia quase nada incompreensível neles. Eles queriam dizer algo muito simples, e diziam em voz alta.
Diziam com poucas linhas: você está amedrontado, Tiago. (Ou algo assim.) Você está desesperado, Tiago. Você não sabe o que fazer da sua vida, Tiago. Você está encrencado, Tiago.
O complicado é que, com o tempo, tento me convencer de que o transatlântico está sob controle. Que tudo vai terminar relativamente bem. Que o ser humano se adapta a tudo. E que meu coração vai seguir em frente! No entanto, quando durmo, sou nocauteado pela realidade. Meus sonhos são mais duros que a minha vida. E eles dizem: Tiago, não se engane. Você não está bem. Não estamos bem. Ninguém está bem. Estamos soltos no oceano. Seu padrasto está doente. E isso não é bom nem vai melhorar. Acorde para dentro do pesadelo, Tiago.
Meus sonhos têm a sofisticação de meninos de sete anos de idade. São estupidamente honestos. Por isso confio neles. Crianças são cruéis. Lá no terreno pantanoso do meu cérebro, sei que não estou bem.
Desde que descobrimos a doença do meu padrasto, eu e minha família tentamos calcular o quanto custaria à nossa sanidade manter esperanças e viver a vida como se existisse algo parecido com luzes no fim do túnel (por enquanto, temos o túnel e o blecaute no túnel). Eu sou o mais racional e radical de todos. Não acredito em quase nada. Creio um pouco em extraterrestres, já que o espaço sideral é extraordinariamente grande e seria tolo não acreditar um pouco neles. E só. Minha mãe acredita em Freud e nos avanços da ciência. Acredita que, apesar de tudo, existe um floco de esperança em tudo. Minha irmã não fala muito.
A tragédia me transformou num sujeito descrente. E prático. Praticamente descrente. Em tudo. Quando um dos meus cachorros foi internado para uma cirurgia na orelha, procurei no Google uma forma de comprar outro cão. Tudo para evitar que minha mãe caísse em depressão profunda. O cachorrinho vai morrer, pensei. Quando os veterinários começaram a adiar a alta do beagle, que se chama Hatty, criei uma teoria da conspiração. “Eu disse, mãe. Não tem jeito. É o que é. Acabou-se o que era doce.” Encontrei um cão adorável num site e mostrei a fotografia para a minha irmã. “O Hatty vai sair dessa, Tiago”, e ela parecia confiante. Duvidei.
Há uma semana, nosso cão voltou para casa. Usa um protetor de orelhas que dá a ele a aparência de um beagle-cosmonauta, mas o acessório futurista não o impede de fazer gracinhas, assediar sexualmente o meu golden retriever e cagar no estofado. Está forte. Está atento. E, mais importante que isso, está vivo.
Hatty, o cão-abajur (também conhecido como cão-parabólica), mordendo a minha cueca. Hoje à tarde.
A doença do meu padrasto (que é um cético) confirmou nossa hipótese de que a vida é uma canoa furada e salve-se-quem-puder. E, para esgotar as metáforas baratas e aquáticas: a onda, quando vem, é um maremoto. Não tivemos tempo para tomar fôlego. Em poucos dias, estávamos afogados em exames médicos, estatísticas, documentários chorosos, artigos científicos que ardem feito picada de abelha, conselhos imprecisos, estimativas assustadoras, estudos de caso pessimistas e uma imagem de futuro que fazíamos questão de encarar como um slide sem foco. Tínhamos medo. Temos medo.
O que devemos fazer? Acreditar em incríveis reviravoltas do destino ou manter os pés no chão? Sofreremos de uma forma ou de outra. Mas qual dessas opções é a estritamente necessária? Existe vida após o diagnóstico?
Não vejo uma resposta consistente para essas questões. Procuro, mas não a encontro. Bons acidentes acontecem. Hoje à tarde, depois de voltar do 210º médico, meu padrasto finalmente trouxe uma boa notícia. Aquilo nos perturbou. Não estávamos prontos. Ficamos até um pouco chocados, na verdade. Minha mãe telefonou para o doutor, que sublinhou a esperança. Esperança. Ela chorou. Eu permaneci estático, sem saber como reagir. “O que aconteceu, mãe?”
Ela estava sem voz.
Depois de um tempo, descobri tudo. O médico disse ter dúvidas sobre o diagnóstico do meu padrasto. A doença poderia ser outra. Poderia não ser tão grave. Os exames talvez indicassem, vá saber, um problema hormonal muito atípico e intenso. Algo raro. Mas existe a probabilidade de que algo raro aconteça, não existe?
– É um bom médico, Tiago. Os pacientes fazem uma fila imensa. E a fila costuma durar anos.
Havia uma esperança. Talvez.
– O que quer dizer essa deficiência de hormônios, mãe?
– Quer dizer que essa queda desativa os neurônios. Por isso ele está perdendo a memória aceleradamente. O médico disse que é um tipo de situação que ele nunca viu. E que outros pacientes costumam perder a consciência de que estão doentes, o que não aconteceu com seu padrasto.
– E isso pode ser bom?
– Pode ser ruim, Tiago. Mas não tão ruim quanto imaginávamos.
– E isso pode ser bom?
– Isso pode ser ótimo.
Minha mãe estava radiante. No fim da tarde, saímos para caminhar. Ela comprou croissants. E salgadinhos e sorvete napolitano. A nossa imagem sombria de futuro era, agora, um slide rabiscado com giz de cera. Meu padrasto voltou a tocar violão. Os cães, que talvez consigam mesmo sentir as boas vibrações, brincaram de pique. O Hatty foi ao meu quarto e roubou minha cueca. Ele não costuma fazer isso. Mas fez.
Por coincidência, terminei há dois dias um livro sobre o acaso, chamado O andar do bêbado. Do físico Leonard Mlodinow. Com Stephen Hawking, ele escreveu Uma nova história do tempo. O autor defende o raciocínio (estudado seriamente por cientistas de todo o mundo) de que nos deixamos enganar por falsas conexões que criamos entre fatos aleatórios. Por exemplo: quando um produtor de Hollywood assina três fracassos de bilheteria, passamos a acreditar que ele é um péssimo executivo – mas nos esquecemos repentinamente dos cinco sucessos incríveis que ele criou, e dos vinte filmes que tiveram performance digna. Julgamos pessoas e eventos a partir de uma lógica que não tem nenhum embasamento científica. E por que somos estúpidos a esse ponto? Simplesmente queremos acreditar que o acaso faz sentido. Isso nos conforta.
É um livro bonito (principalmente porque Mlodinow demonstra uma fé tremenda num mundo governado pelo aleatório). E o engraçado é que – note o acaso puxando as nossas cordinhas! – logo depois li o tocante Extremamente alto e incrivelmente perto, de Jonathan Safran Foer. O protagonista, um órfão de nove anos que perdeu o pai no 11 de setembro, é um fã de… Stephen Hawking!
Bem. Estou desviando do tema. Lá pelas tantas, num emaranhado de pequenas biografias de físicos e filósofos que estudaram probabilidades e estatística, Mlodinow lembra a trajetória de Blaise Pascal. Depois de uma revelação espiritual, o francês escreveu ideias que foram publicadas num livro chamado Pensamentos. Talvez afetado por um transe, ele resolveu calcular os prós e contras de nossos deveres para com Deus (criou, assim, um conceito que ficaria conhecido com esperança matemática).
Pascal propôs o seguinte: existe uma probabilidade de 50% para que Deus exista. E uma de 50% para que não exista. Nesse contexto, devemos ou não devemos levar uma vida pia? Se agirmos piamente e Deus existir, argumentou Pascal, nosso ganho – a felicidade eterna – será infinito. Por outro lado, se Deus não existir, nossa perda, ou retorno negativo, será pequena – os sacrifícios da piedade. Desenvolvendo essa epifania, ele criou um equação matemática que, aqui, não vem ao caso. Eric Rohmer aplicou essa teoria numa obra-prima do cinema, mas que também não vem ao caso.
O que vem ao caso é que, na prática, é impossível negar minha simpatia por Pascal. Quantos são capazes de criar uma equação tão bela? Talvez não faça tanto sentido (acredito que levar uma vida de sacrifícios, sem overdoses ocasionais de chocolate ou sites pornográficos, pode sim representar um retorno bem negativo se a descobrirmos enfim que não existe felicidade eterna). Mas gosto de acreditar naqueles que acreditam numa possibilidade tão poética. Acredito na minha mãe. E hoje ela conseguiu me encher de esperança.
À tarde, cochilei no sofá e sonhei com um balão. Solto no ar. Sem dono. Sem pai ou padrasto ou mãe ou irmã. Mas, mesmo perdido, ele descrevia um voo seguro. E gracioso. Não sei explicar, mas talvez tenha sido um bom sinal.