Melhores do ano
IRM | Charlotte Gainsbourg
Na segunda semana de fevereiro, a Liga dos Blogues Cinematográficos escolheu os melhores do ano. Uma votação acirradíssima, vocês sabem. E não é que, com o aval de 12 blogueiros (num total de 44), o prêmio de melhor atriz ficou com Charlotte Gainsbourg, por Anticristo? Eu discordo. De verdade. Há atuações mais interessantes. Tenho certeza de que existe uma intérprete extraordinária escondida numa pequena produção norueguesa que ninguém viu. Mas admito: votei nela.
Ela venceu Cannes e, se criassem um troféu para a melhor cantora indie francesa de 2010, provavelmente a filhinha do papai Serge e da mamãe Jane Birkin embolsaria o souvenir. Eu também discordaria. Charlotte nunca se destacou pelo virtuosismo do canto, por exemplo. E, nos discos que gravou até agora, não chegou a definir um estilo: sempre permitiu que produtores e amigos compositores a transformassem naquilo que bem entendessem. Mas confesso: se ela a pegasse cantarolando a Marselhesa numa estação de metrô de Paris, eu pararia para olhar. E ficaria olhando.
Charlotte não atua, não canta e parece eternamente perdida (e às vezes entediada) na floresta do rock. É isso. E, se é isso, o que ela tem? Por que os prêmios? Por que tantos amigos famosos? Por que ela provoca uma espécie de atração magnética sobre sujeitos como eu, que racionalmente não vêem nada de extraordinário nela?
Depois de muito ouvir o disco mais recente dessa musa misteriosa (há outra forma de descrever?), IRM, acho que cheguei a uma conclusão sobre o fenômeno: tanto nas cenas mais grotescas de Anticristo quanto num single-chiclete como Heaven can wait, o que me interessa é a forma como Charlotte expõe uma persona que paira acima de qualquer filme, disco e clipe. Diante dela, fica a impressão de que a mulher real, de carne e sangue, divide o estúdio (ou a tela) com a personagem.
E, na música pop e no cinema, existe algo muito fascinante no ato de coragem daqueles que aceitam confundir vida e arte. No rock, acredito até que a separação total entre as duas coisas me provoca um tanto de tédio. Outro dia me peguei ouvindo uma música do Skank e perguntando: quem é Samuel Rosa? O que ele pensa? O que ele sente? Ele está triste ou feliz? Passei minha vida inteira ouvindo Skank e ainda não sei nada disso. Daí uma questão mais importante: por que cobro esse tipo de cumplicidade e franqueza de artistas pop?
No caso de Charlotte, nem é preciso exigir nada. Ela está entregue. Está na nossa mão. IRM (um título inspirado no som dos aparelhos médicos de ressonância) soa como o equivalente musical para Anticristo: o momento em que, depois de uma tragédia pessoal, tenta-se entender a dimensão do trauma. Para Lars Von Trier, o monstro veio na pele de uma crise depressiva. Já Charlotte sofreu uma cirurgia no cérebro como conseqüência de um acidente de ski. A aproximação com a morte é o tema predominante de IRM.
De alguma forma, a urgência de gravar essas canções (como quem escreve telegramas para amigos preocupados) beneficiou a estrutura do disco, mais conciso do que o anterior. Produzido por Nigel Godrich, o álbum 5:55, de 2006, mostrava Charlotte no papel de uma Dona Flor pós-moderna, dividida entre Jarvis Cocker (Pulp) e o Air. O novo é monogâmico: escrito e produzido quase completamente por Beck Hansen (à exceção da fantasmagórica Le chat du café des artistes, de Jean-Pierre Ferland), é um diálogo entre um homem e uma mulher – em tempos sombrios.
Apesar da aparente simplicidade, este me parece o álbum mais diverso e aventureiro que Beck compôs desde Sea change (2002). É uma colaboração, no mínimo, frutífera: Charlotte talvez tenha procurado em Beck uma forma de compreender a influência do pai, Serge, no rock contemporâneo (e aí vale lembrar que o próprio Sea change é, em grande parte, inspirado pelo provocateur francês). Enquanto isso, Beck encontra em Charlotte uma atriz para uma narrativa feminina, com melodias folk e arranjos psicodélicos.
Mesmo cinza e grave (já que o momento de Charlotte não é lá um arco-íris), IRM também soa como o retrato de um encontro feliz entre musa e “cineasta”. Beck escolhe as atmosferas das canções como quem vai desenhando as cenas de um fita surrealista, um sonho dolorido e louco. Charlotte, forte que é, sobrevive a todos os filtros e figurinos – interpreta o script com absoluta convicção. Ela está viva e quente em Vanities, uma balada em tom menor que vai agradar ao público da Feist, mas também em Voyage, que soa como os momentos mais etéreos, românticos e inclassificáveis do Daft Punk. Ele está sempre lá, no comando da câmera. Mas Charlotte é o objeto do close. E nos faz acreditar que sim, ela viveu o drama que narra.
Preciso explicar por que meu voto é (e continua sendo) dela?
Terceiro disco de Charlotte Gainsbourg. 14 faixas, com produção de Beck Hansen. Lançamento Because Music. 8/10
20 melhores filmes de 2008 (Parte II)
Antes de encerrar de vez esta saga (como se alguém estivesse muito preocupado com isso, tsc), aí vai uma rápida lista de filmes que viraram meu 2008 do avesso mas que, por não terem sido lançados no circuito de exibição, foram excluídos do top 20. São eles, os cinco (ou seis) outsiders:
1. Sonata de Tóquio – Kiyoshi Kurosawa 2. Aquele querido mês de agosto – Miguel Gomes 3. Diário dos mortos – George A. Romero 4. Boarding gate e Horas de verão – Olivier Assayas 5. Deixe ela entrar – Tomas AlfredsonTalvez vocês sintam falta de um filme chamado A espiã nesta lista de 20 favoritos. Ele entraria muito facilmente neste top caso não tivesse sido incluído, por descuido meu (e propaganda enganosa dos distribuidores), na seleção do ano passado. Espero que algo parecido não aconteça com o sexto colocado da nova lista. Se acontecer, minhas desculpas antecipadas.
10. A fronteira da alvorada – Philippe Garrel
O cinema de Garrel não é narrado no pretérito perfeito: são poemas sobre a forma como ele, o passado, atormenta o tempo presente. Daí que, apesar das diferenças superficiais, A fronteira da alvorada conversa de igual para igual com Amantes constantes – dois filmes que borram fronteiras entre o antigo e o novo, o sonho e a realidade. Juntos, são um mundo de ilusões em preto-e-branco.
9. Wall-E – Andrew Stanton
Na primeira metade, um filme mudo da era digital. Na segunda, uma ficção-científica apocalíptica com verve crítica herdada de um Stanley Kubrick (talvez filtrado pelo sentimentalismo de Spielberg, mas nada preocupante). Entre um pólo e outro, um herói solitário que talvez não encontraremos nos filmes mais recentes de Hayao Miyazaki. O último romântico. Em uma animação que guardarei para mostrar aos meus netos.
8. Leonera – Pablo Trapero
O novo de Pablo Trapero talvez não provoque reações tão imediatas quanto os primeiros colocados desta lista, mas é um filme tão maleável às incertezas e aos mistérios da vida que talvez seria melhor admirá-lo por uma luz diferente. Neste pequeno filme, Trapero retrata uma situação pouco conhecida (a vida das presidiárias grávidas) sem esconder todas as questões morais envolvidas num certo ambiente. Há os que cineastas que preferem defender uma posição: Trapero filma a dúvida, o dilema incontornável, a contradição.
7. Paranoid Park – Gus Van Sant
Antes de voar alto na bolsa de apostas de Hollywood para o Oscar 2009, Van Sant filmou um conto de juventude que não teria chance alguma de disputar estatuetas. Azar da Academia. Paranoid Park talvez o filme mais positivamente juvenil do cineasta, já que aberto para a descoberta de experiências audiovisuais (o clipe, a videoarte, o cine-poema, o thriller) e para o imprevisível – aliás, onde mais encontraríamos um bate-papo imaginário entre Elliott Smith e Dostoiévski?
6. A bela Junie – Christophe Honoré
O lado B de Canções de amor também é uma ciranda amorosa, mas narrada como uma canção de Nick Drake. Em tons de azul, tomado por sentimentos barrocos, inspirado numa antiga história de amores cruzados (transposta para os corredores de um colégio francês do século 21), feito para a televisão, é o filme em que Honoré finalmente nos convence de que prestar reverências explícitas a François Truffaut nem sempre pode ser considerado um pecado – neste caso, o próprio Truffaut teria se orgulhado de provocar esse tipo de frio na espinha.
5. A questão humana – Nicolas Klotz
Muito mais que um ensaio provocativo sobre as relações entre os métodos nazistas e os padrões de relacionamento numa grande corporação (ainda que elas existam, argumenta o filme), é uma reflexão tão corajosa sobre as tragédias e traumas do século 21 – e, como em Garrel, sobre um passado que não nos abandona, não nos deixa em paz – que o tamanho das intenções de Klotz superam as eventuais quedas de ritmo da narrativa. E existe ator mais completo que Mathieu Amalric? Um passo para trás, Paul Thomas Anderson.
4. Sweeney Todd: o barbeiro demoníaco da rua Fleet – Tim Burton
Ou: um filme de Tim Burton e Stephen Sondheim, tamanha a qualidade da colaboração entre cineasta e compositor. Burton não se contenta com uma adaptação – ele praticamente se deixa engolir pelo anti-herói da Broadway, e o que nasce desse estranho cruzamento é um filme tão auto-referencial (há cicatrizes de Batman e Ed Wood) quanto estranho, talvez até por soar excessivamente agressivo, dentro do repertório do diretor. A seqüência final é a mais cruel do ano – e trata-se de uma superprodução.
3. Antes que o diabo saiba que você está morto – Sidney Lumet
Falando em crueldade… O retorno de Lumet ao mundo dos cineastas vivos é uma tragédia levada às últimas, terríveis conseqüências. Uma trama que poderia ter rendido um thriller esquemático (mais um filme sobre assalto frustrado?) é tratada pelo cineasta como uma questão de vida ou morte. Philip Seymour Hoffman e Ethan Hawke, excepcionais, entram no jogo com a entrega que o projeto exige. O resultado não poupa ninguém – e, se alguém procurava algo do gênero, taí um filme que machuca de verdade.
2. Onde os fracos não têm vez – Ethan e Joel Coen
Talvez um ano seja muito pouco para convencer os detratores dos irmãos Coen de que Onde os fracos não têm vez é, além de um belíssimo faroeste moderno, uma senhora encenação da cultura da violência nos Estados Unidos (e aí, meu irmão, favoritismo no Oscar e Queime depois de ler não facilitam a vida de ninguém). O que talvez decepcione quem abriu uma exceção para este filme é que ele não nega (pelo contrário, confirma) uma série de temas e obsessões que podem ser encontrados em longas como Fargo e Barton Fink. Mas, ao adaptar rigorosamente o livro de Cormac McCarthy, os Coen se viram obrigados a limar os tiques de um estilo que já começava a dar pinta de cansaço. Nunca soaram tão econômicos, concisos. Um detalhe. Mas obras-primas são feitas de detalhes.
1. Não estou lá – Todd Haynes
De tanto escrever sobre I’m not there, acho que lembro mais dos textos estabanados que escrevi (e das minhas defesas em voz altíssima) que do filme em si. Outro dia peguei um trecho na tevê, e percebi que talvez – talvez – eu não teria passado por uma sessão de hipnose. É o grande filme de Todd Haynes (e, quando falamos no diretor de A salvo, não estamos falando de qualquer um), e – mais impressionante que isso – um que consegue vencer o desafio quase impossível de travar um diálogo com a obra de Bob Dylan e deixar que o espírito dessa obra contamine a narrativa. Veja só: ainda há muito o que escrever sobre I’m not there.
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Agora é a hora em que vocês comentam sobre seus filmes favoritos do ano e ficamos quites. Ok?
20 melhores filmes de 2008 (Parte I)
…E eu reclamando da dificuldade de montar uma lista de melhores álbuns do ano.
No fim de uma escalação complicadíssima, nada menos que 15 ótimos concorrentes ficaram no banco, a ver navios, excluídos (infelizmente) desta lista de melhores filmes de 2008. Não me peçam para fazer isso de novo (pelo menos não até o fim do ano que vem, por favor).
Primeiro, as regras da partida: só entram no top aqueles que estrearam no circuito de exibição brasileiro durante o ano. Isso significa que muitos dos meus favoritos da Mostra de São Paulo e do Festival Internacional de Cinema de Brasília (FicBrasília) ficaram de fora. Os outsiders ganham uma listinha à parte, que vocês lêem amanhã (não se pode ter tudo de uma vez só, ok?).
Antes dos melhores (e antes que eu finalmente concorde com a idéia de que esse tipo de balaio de gatos é mesmo uma sandice), fiquemos com a raspa da panela. Os cinco piores de 2008:
1. Um crime americano – Tommy O’Haver 2. Max Payne – John Moore 3. Antes de partir – Rob Reiner 4. Noites de tormenta – George C. Wolfe 5. A guerra dos Rocha – Jorge Fernando(Se bem que Espartalhões consegue ser mais insuportável que todos esses, mas prefiro não lembrar). Sem mais:
20. A última amante – Catherine Breillat
Catherine Breillat e Asia Argento numa bela lição sobre como sabotar as convenções de um romance de época. Pena que muitos críticos tenham preferido discutir a ausência de cenas de sexo explícito numa fase supostamente recatada da cineasta. É um filme ousado, que olha para a frente – mas não da forma escandalosa como esperávamos.
19. Nome próprio – Murilo Salles
Talvez com mais erros que acertos, Murilo Salles abre o diário desesperado (e desengonçado) de Clarah Averbuck como quem salta do precipício: a disposição de explorar um ambiente que desconhece faz do longa uma rara investigação sobre os mistérios da juventude. Como Averbuck, é um filme-impasse, à procura de uma identidade.
18. Shortbus – John Cameron Mitchell
Com esta comédia romântica de sexo explícito, Mitchell criou um Annie Hall para os inferninhos. A provocação pode parecer superficial, mas o que se esconde sob o choque é uma galeria de personagens que lidam com a paixão de forma mais calorosa, alegre e plausível que todas as castas encarnações de Meg Ryan.
17. Hellboy II: O exército dourado – Guillermo del Toro
Funciona menos como uma seqüência de Hellboy e mais como uma continuação para as obsessões de Guillermo del Toro, o cineasta que amava os monstros. Uma doce história de amor, uma coleção de brinquedos coloridos, um épico para fãs de RPG – e, por fim, o melhor filme de super-herói do ano.
16. Canções de amor – Christophe Honoré
Como uma canção pop que não se entrega de imediato, o musical de Honoré só me conquistou numa segunda audição. Aí me rendi à beleza escondida numa peça aparentemente trivial – algo exatamente igual às minhas primeiras experiências com Belle and Sebastian. E tem a leveza de um assobio.
15. Sangue negro – Paul Thomas Anderson
Ainda que eu não seja o maior defensor do épico de Anderson (ops: prefiro as questões existenciais do protagonista de Embriagado de amor), também fui soterrado pela impressionante ambição de um filme que encena Os Conflitos da América com a crueza e a clareza de um diagnóstico médico. Eu não veria novamente. Não é que acabei vendo?
14. Senhores do crime – David Cronenberg
De um filme de Cronenberg, melhor não esperar por um relato realista das tramóias da máfia russa. Sem estribeiras, o cineasta toma o factóide para compor um conto de fadas em torno de loucas disputas de poder. Brinde: uma inacreditável, hilariante seqüência de pancadaria num banheiro público.
13. 4 meses, 3 semanas e 2 dias – Cristian Mungiu
A história recente da Romênia pela janela lateral: a partir de um drama universal, e sempre grudado nas personagens, o cineasta permite que o espectador identifique uma atmosfera de constante opressão. Um ensaio até bem simples sobre o pânico, mas intenso e assustador.
12. Encarnação do demônio – José Mojica Marins
Solto novamente nas ruas, Zé do Caixão encontra um país estranho, brutalizado, sob o domínio do mal. Importante notar que o cinema de Mojica também mudou: auto-referencial e com um sorriso de gozação, ele só ganha ao tratar o personagem como um símbolo, uma grife da cultura pop brasileira. O clímax não poderia ter sido filmado em outro lugar que não num parque de diversão.
11. O nevoeiro – Frank Darabont
M. Night Shyamalan viu o fim dos tempos, mas Frank Darabont notou o apocalipse da civilização por uma lente ainda mais cruel. Um pequeno filme B com os ruídos e a fúria de uma tragédia grega. E, claro, um desfecho que ainda tenho medo de enfrentar no meu pior pesadelo. O horror.