Martin Scorsese
cine | A invenção de Hugo Cabret
Até agora, parecia possível organizar os filmes recentes de Martin Scorsese em dois compartimentos: um deles era reservado às criações do ficcionista intenso, exuberante; o outro, às sóbrias master classes de um documentarista que usava formatos convencionais para descrever a trajetória de tipos ilustres (Bob Dylan, George Harrison) e ensinar sobre a história do cinema. Eis que, como num número de ilusionismo, A Invenção de Hugo Cabret chega para sobrepor essa faceta àquela: é, como um amigo resumiu, A Personal Journey with Martin Scorsese Through Early Movies, FOR KIDS.
O que seria apenas um filme “família” em 3D (e é mais ou menos assim que o diretor descreve o longa) se transforma, assim, num projeto mais complexo e importante – que periga ser tratado, pelos fãs do cineasta, como uma obra autorreferencial, um espelho mágico para o próprio Scorsese, haja vista a quantidade de vezes que o diretor acena para a própria trajetória e para temas que aparecem tanto em seus longas de ficção quanto nos documentários. O que temos aqui, num sinopse até meio grosseira, é a aventura de um menino órfão, um “outcast” como tantos que o diretor filmou, que encontra no cinema um elo entre o passado (é nos filmes antigos, perdidos, que ele procura sinais do pai morto) e o futuro (são esses mesmos filmes que ajudam a formar a personalidade do garoto). Difícil não identificar o nome SCORSESE brilhando nas entrelinhas da trama.
A primeira parte da narrativa, quando esse menino tenta descobrir um enigma deixado pelo pai, tem menos força que a segunda, quando o tema passa a ser o início do cinema, com um tributo ao poder encantatório dos filmes de Georges Méliès e dos irmãos Lumière, produzidos numa época em que cinema ainda era visto inocentemente, como um brinquedo de parte de diversão. Um desequilíbrio até previsível, já que fica fácil identificar por qual dos trechos Scorsese mais se interessa.
O legado de Méliès e Lumière, aliás, orienta as escolhas técnicas do filme. O diretor usa o 3D digital com um propósito muito específico: o de criar conexões entre o deslumbramento tecnológico do século 21 e a própria invenção do cinema, uma “máquina de sonho” (como um dos personagens define, a certa altura). Mais do que qualquer outro filme pós-Avatar (mais até do que o próprio Avatar), neste aqui o 3D ganha um aspecto metalinguístico, artístico – e, como se não bastasse, Scorsese parece se divertir criando cenas que testam as possibilidades do recurso visual, alternando o estica-e-puxa da profundidade de campo com elementos de cena que “flutuam” diante dos olhos do público. A sequência de abertura, um “tour” na locação principal do filme (uma estação de trem), sintetiza a intenção número 1 do cineasta: nos deslumbrar enquanto teoriza sobre as “técnicas de deslumbramento” do cinema.
Impressiona. Mas é na segunda metade (quando já conhecemos o espaço onde os personagens vivem e o filme decola, enfim) que o diretor tira o coelho da cartola: vai perfurando a trama com minidocumentários sobre a história dos primeiros filmes silenciosos (especialmente os de Méliès, um dos personagens da trama) e com lições sobre preservação de películas (numa das cenas, um personagem olha para a câmera e ensina a molecada a cuidar bem de filmes velhos). Eu poderia escrever um texto longo comparando o didatismo sólido de Scorsese (que não se deixa levar por generalizações) com o discurso tatibitate de O Artista – mas fica para a próxima. O que embasbaca neste filme é o domínio técnico e estilístico de Scorsese, capaz de compor uma fábula cheia de fofurices infantojuvenis para filhos, pais & vovós (com a finesse visual de um, digamos, Harry Potter & as Relíquias do Cinema Mudo) e, ao mesmo tempo, criar um ensaio sobre cinema que só ele poderia ter feito – já que, repito, parece prolongar as experiências do diretor com documentários sobre o tema.
Quem acusa Scorsese de ter se convertido, desde os anos 90, num cineasta profissional “a todo custo”, negociando confortavelmente com os padrões dos grandes estúdios, vai encontrar nesta superprodução Oscar-friendly um inimigo perfeito. Cá pra mim, A Invenção de Hugo Cabret representa o reflexo mais preciso de uma fase serena, tecnicamente inatacável, porém sinuosa e cheia de armadilhas – em que um filme industrial não é somente aquilo que parece ser (e aquilo que o estúdio quer nos vender, ainda que seja também isso), exigindo do espectador a disposição de procurar na imagem sentidos mais profundos. No caso, os óculos 3D ajudam.
(Hugo, 2011) De Martin Scorsese. Com Asa Butterfield, Chloe Grace Moretz, Ben Kingsley e Sacha Baron Cohen. 126min. A
cine | George Harrison: Living in the Material World
Já quase na metade deste documentário dirigido por Martin Scorsese, acabei lembrando da revolta de uma espectadora que saiu bufando de uma sessão de Shine a light. “Mas é só um show!”, era o que ela dizia. Pois bem, caro leitor: talvez você encontre alguém esbravejando algo parecido contra este Living in the material world (A). “Mas é só um documentário musical!” (e já consigo imaginar a cena).
É que este filme sobre o beatle George vem com mais um argumento a favor da hipótese (in progress) de que os documentários de Scorsese são mais traiçoeiros – e difíceis, digamos – que as ficções do cineasta. Talvez porque pareçam simplérrimos, tão ou mais didáticos que aquele típico perfilzão jornalístico em que a gente tropeça de vez em quando nos canais de tevê a cabo. Living in the material world, aliás, estreou na HBO americana.
O acabamento do longa é de uma discrição, de uma polidez quase irritantes (adjetivos que também servem aos docs musicais The last waltz e No direction home). Mas se cercar das convenções (muito envelhecidas) de um gênero talvez faça parte de um jogo mais sutil, já que essas narrativas cristalinas estão sempre mirando personagens “embaçados”, complexos, que não se deixam enquadrar.
Daí que, mesmo quando convida uma dúzia de diretores de fotografia para captar os melhores ângulos de uma apresentação dos Stones (em Shine a light), é como Scorsese soubesse que uma química invisível não será captada pelas lentes (no caso, a faísca que provoca a performance mágica de Jagger e Richards).
No retrato de George Harrison, esse olhar bem sóbrio (posso dizer que também pragmático, posso?) faz ainda mais sentido: já que, como um dos entrevistados conta ao diretor, o próprio músico tentava criar no “mundo material” um ambiente tão sublime quanto aquele que imaginava existir no “mundo espiritual”. E não é esse clique-de-ilusão que se dá quando um documentário tão terreno se deixa contagiar por um homem cheio de mistérios?
(E também cheio de contradições: cercado de amigos, mas com fama de recluso; praticante de meditação e corridas de carros; apaixonado tanto pelo pop comercial quanto pela tradição musical-mística dos indianos; respeitoso em relação a assuntos da fé, mas um dos maiores fãs do humor iconoclasta do Monty Python etc)
A imagem que remete mais diretamente a esses paradoxos é o jardim de Harrison, o “paraíso particular” criado pelo compositor. Não é por acaso que o filme abre e fecha em meio a flores. É biografia direta, informativa (e frontal até nos momentos de comoção, porque as colagens visuais que acompanham um Here comes the sun, por exemplo, têm função de catarse mesmo), é só um documentário musical. Só que também transcendental – de uma forma que talvez nem o próprio George Harrison seria capaz de explicar.
2 ou 3 parágrafos | Ilha do medo
No DVD de New York, New York (1977), Martin Scorsese conta que projetou o filme como uma espécie de experimento. A ideia era se apropriar dos grandes musicais hollywoodianos, mas com um olhar realista que estava muito em voga nos anos 1970. Uma América de arquitetura falsa — em miniaturas de neon — e sentimentos desvairados, imperfeitos. Acredito que o filme tenha incomodado muita gente (foi fiasco de bilheteria) por deixar a impressão de uma mistura heterogênea, muito desequilibrada (e curiosíssima, mas aí é outra história), entre dois cinemas.
Quando li que Ilha do medo seria um filme assumidamente artificial, inspirado num livro quase pulp de Dennis Lehane, fui correndo comparar aquele Scorsese (de 35 anos) com este aqui (já sessentão). E, como não?, lembrar da distância que separa o diretor de Last waltz (1978) do de Shine a light (2008), dois documentários sobre concertos de rock. No primeiro caso, ele filmou a despedida do The Band — um episódio que provocaria comoção independentemente da existência do filme. No segundo, preferiu encenar um show particular dos Rolling Stones — um momento cuidadosamente planejado para o filme (nas cenas finais, para acentuar esse tom de farsa, o diretor manipula a imagem com efeitos especiais).
Daí que Ilha do medo (4/5) me parece muito coerente com esse Scorsese de Shine a light (talvez este Shutter Island seja o grande filme dessa fase). O realismo é totalmente diluído num jogo de ilusões montado com as referências cinematográficas do diretor. Não é mais o caso de somar A (fantasia) e B (realismo), mas combinar uma infinidade de signos — filmes B, Hitchcock, surrealismo, horror, noir, romance — num redemoinho de imagens que acaba por derrubar o chão do espectador. Se não devemos confiar no narrador do filme, em quem acreditaremos? É esse tipo de incômodo — mais sutil, mais sofisticado — que Scorsese parece interessado em procurar.