Mark Oliver Everett
Os discos da minha vida (8)
Após um breve intervalo, voltamos a apresentar a história dos discos que, digamos assim, deram uma rasteira na minha vida. Um ranking sentimental, particular, por vezes constrangedor, que eu deveria ter escondido junto com os desenhos que eu produzia (porcamente) aos oito anos de idade.
No episódio desta semana, o narrador encontra dois álbuns que ajudaram a moldar o gosto por canções ora confessionais, ora delirantes. Ele próprio, ao bater o olho no post, se surpreendeu: “isso explica tudo!”, exclamou. E explica sim.
086 | Electro-shock blues | Eels | 1998 | download
Mark Oliver Everett escreveu as canções de Electro-shock blues logo após o suicídio da irmã e a descoberta de que a mãe sofria de câncer em fase terminal. Nessas condições, como gravar um disco de rock? Mark faz o que pode: abre a porta de casa e nos convida a compartilhar um segredo terrível. Ainda hoje me impressiono com essa sonoridade em carne nua: é desconcertante como Mark transforma a dor em melodias sem norte, quebradiças, com um quê de Tom Waits e outro de Neil Young – e alguma esperança torta. Um álbum todo fraturado, imperfeito, doméstico, que trava um pacto de sangue com o ouvinte. Hard listening, e infinitamente triste. Mas, em retrospecto, mostra a música pop como uma barra de segurança onde às vezes nos apoiamos quando as coisas deixam de fazer sentido. Top 3: My descent into madness, Dead of winter, Last stop: this town.
085 | Sheik Yerbouti | Frank Zappa | 1979 | download
Zappa gostava de dizer que fazia “dumb entertainment”. Não discordarei dele (estamos falando do sujeito que em 1968 gravou We’re only in it for the money). Álbuns como este são picaretagens assumidas: numa época em que precisava de dinheiro para bancar os projetos mais experimentais, o guitarrista fez discos que esperavam dele, tão grosseiros (e até estúpidos) quanto generosos e engraçados (na medida do possível). Dessa fase oportunista e irresistível, Sheik Yerbouti é o meu favorito. Mas há um motivo mais forte para ele ter entrado nesta lista: foi o primeiro disco do Zappa que ouvi, e ele imediatamente me ensinou que, no rock, delirar é permitido. Quem conhece este disco entende por que admiro sandices como Deerhoof e Fiery Furnaces. Top 3: Dancin’ fool, Flakes, Bob Brown goes down.
Superoito express (30)
Tomorrow morning | Eels | 7.5
Oficialmente, Tomorrow morning é o terceiro capítulo de uma trilogia que começou com Hombre lobo (2009) e End times (lançado em janeiro de 2010). Na prática, soa como uma continuação de Blinking lights and other revelations (2005), um dos melhores discos de Mark Oliver Everett. Aquele álbum parecia ter sido escrito e gravado nas primeiras horas do dia, num estado de quase vigília. Era preguiçosamente belo. Já o novo sugere uma manhã quente de verão. Céu azul. Férias. Passarinhos piando. E a sensação de que o pior já passou.
É, portanto, um daqueles discos otimistas e quase alegres, que só soam convincentes quando escritos por sujeitos muito calejados. É o Nashvile skyline de Everett, e um álbum que consegue resolver quase todos os problemas dos anteriores. Em resumo: não tem o peso de um tedioso diário de um ano ruim. Não (ainda que algumas faixas mais aborrecidas deixem vestígios dessa fase). Everett faz um esforço admirável para simular dias felizes e, no processo, acaba redescobrindo o prazer do pop doméstico, lúdico, que nos leva num pulo à estreia dele, Beautiful freak (1996). Juntas, essas canções mais alaranjadas e cheias de surpresas renderiam um disquinho nota 8.5. Então (papel e caneta!) anote aí e faça o seu CDzão do Eels: I’m a hummingbird, Baby loves me, Spectacular girl, This is where it gets good, Oh so lovely (a melhor do disco), The man, Looking up e Mystery of life.
Black city | Matthew Dear | 7.5
Se Tomorrow morning é um disco diurno, Black city é exatamente o oposto disso: noite preta (e é até instigante ouvir um disco após o outro; eu recomendo). Matthew Dear cria um ambiente instável, tenso, todos composto em tons de cinza, com canções que nos seduzem e, depois de alguns minutos, vão se desmontando até se transformar em objetos disformes. É um horror (no bom sentido). A faixa-título me parece um túnel sem fim, iluminado por lâmpadas frias, com curvas que chegam inesperadamente. E o miolo do álbum soa tão encardido quanto um The Contino sessions, do Death in Vegas, e um Pre-millenium tension, do Tricky. Só me incomoda um pouco notar que a atmosfera por vezes sufoca as canções. Felizmente, não é o que acontece com o encerramento, uma lindeza chamada Gem.
The orchard | Ra Ra Riot | 6
O problema de discos que desenvolvem conceitos redondinhos (como Tomorrow morning e Black city) é que eles acabam denunciando a irregularidade de discos mais imaturos – como é o caso deste The orchard. Está claro que o Ra Ra Riot entrou em estúdio para gravar uma versão mais “sofisticada” e “adulta” de The Rhumb line (que já não era um grande disco) e que, para isso, acabou apelando para os recursos mais óbvios: arranjos melodramáticos de cordas e uma ou outra canção que rodaria em rádios mais conservadoras (caso de You and I know). O que é uma pena, já que o disco tem faixas que renderiam maravilhas num esquema lo-fi (a linha de baixo galopante de Boy e os corinhos de Massachusetts são viciantes). Deveriam ter aprendido com os chapas do Vampire Weekend: crescer é preciso, mas um passo de cada vez.
Causers of this | Toro Y Moi | 6
Outro disco com momentos luminosos, só que dispersos num conjunto ainda verde. Consigo notar alguns sinais de Animal Collective (as canções circulares, escoradas mais em ritmos do que em melodias) e do Cut Copy (ares de synthpop), além de um desejo grande de afirmar um estilo (não foi dessa vez). Apesar disso, o disco me agrada por apresentar um compositor de sutilezas: Chazwick Bundick nos obriga a ouvi-lo várias vezes antes de tirarmos alguma conclusão. Talamak e a faixa-título mostram que o rapaz tem muito a ganhar se tiver o despudor de incluir mais elementos pop num estilo que, por enquanto, veste o rótulo ‘chillwave’ confortavelmente. Talvez confortavelmente demais.
Hombre lobo | Eels
Entendo Mark Oliver Everett. Depois de virar a alma pelo avesso em álbuns tortuosos de tão confessionais, escrever ficção pode funcionar como uma excelente válvula de escape. Hombre lobo, numa primeira audição, soa como uma colônia de férias para Mr. Eels.
O álbum é a biografia de um personagem criado por Everett na canção Dog faced boy, do álbum Souljacker. Um homem excêntrico, escondido em tufos de barba, que provoca estranheza por onde passa. Um lobisomem americano, um monstro do cotidiano. Uma besta humana. Um outsider.
Em torno do protagonista, há o conceito do disco: 12 canções sobre o desejo. “Eu não queria escrever sobre um velho roqueiro indie resmungão. Pensei que seria mais interessante criar um personagem”, escreveu Everett.
Quem conhece o Eels sabe que esse distanciamento nada mais é que uma reação aos melhores álbuns que Everett gravou: Beautiful freak, Electro-shock blues e Blinking lights and other revelations. Todos eles narrados radicalmente em primeira pessoa. É como se, com as regrinhas conceituais de Hombre lobo, o compositor se desafiasse a abandonar as barras de segurança. Novas aventuras.
Nas melodias, o que noto é uma relação de contraste entre a sonoridade predominante do disco (um blues-rock ruidoso, áspero, que nos leva à fase Souljacker) e as canções de ninar doloridas — pesadelos de criança pequena — que costumamos associar à banda. O álbum alterna a seco essas duas facetas de Everett — In my dreams e All the beautiful things, por exemplo, poderiam estar no disco anterior.
Admiro o esforço. Em tese, é um álbum corajoso, que tenta novos caminhos para uma banda que já começava a andar em círculos. Há um desejo de economia no interior de canções como The look you give that guy e Fresh blood que as aproximam de um Spoon, por exemplo. São absolutamente precisas, talvez as mais maduras da discografia da banda.
Na prática, porém, a ficção confunde-se com os dramas de Everett, com contos sobre rejeição, crises de auto-estima, amores platônicos e sonhos agoniados — e o resultado é exatamente o caldo meio-amargo que esperamos de um álbum do Eels. Soa como uma compilação formada por faixas de Blinking lights e Souljacker. E aí prefiro a franqueza dos diários de Everett — desajeitados, sim, mas que graça existe no pop perfeito?
Sétimo álbum do Eels. 12 faixas, com produção de Mark Oliver Everett. E Works/Vagrant Records. 6.5/10