Mãe padrasto irmã

Superoito, duas vidas

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De madrugada ouvi um estalo que começava e parava, começava e parava. Parecia gota d’água caindo numa folha de metal. Mas deve ter sido um sonho.

Quando toca, o despertador do meu celular solta uma musiquinha doce, celestial feito sino de igreja. A tela do aparelho brilha e treme. Digitei 4h30.

Pedi pra ela programar o outro celular. Por via das dúvidas, desencargo de consciência, desconfiança, essas coisas. Vai que. Ela topou.

Mas pedi: quatro e quarenta, tá? Porque o som daquele aparelho é um bom-dia alegre, e eu não tava pra isso. Que é que cê tem?, ela perguntou. Né nada.

Antes disso eu chorei um pouquinho. A luz apagada, então ela não viu. Perguntou se eu chorava e eu disse não, né nada. Tava só lembrando, falei.

Chorei um pouquinho porque pensei no jeito como ela olha o laptop, naquela pose fixa e séria de quem desenha uma equação fatal. É lindo.

Sei que ela não gosta de homem que chora por qualquer coisa, daí que fiquei na minha. Era a última noite, mas eu preferia nem pensar muito porque.

Uns dias antes, acertamos que o futuro seria: casar (sem filhos), comprar panelas e pôsteres pra sala, videogame e um apartamento no alto da rua.

Ela é a mulher que eu amo.

Acordei às 4h30. E disse: desliga o celular que já-já toca. Ela esbarrou no botão sem largar o sono. Olha, encontrei alguém que sonha mais que eu.

Fui tomar banho. Pedi o táxi, que chegou em dois minutos. Pensei que-rápido, tomei um copo de chá, ela tava dormindo, um beijo e té logo, te amo.

Na minha vida número 1 chove uma chuvinha gelada, faz frio, visto dois casacos (um pullover e uma jaqueta), o ar arranha minha garganta e tal.

Encontro o taxista, ele também sente frio (parece que sente). Cinco da manhã, nem tem sol ainda, de onde você é? Ele pergunta, eu respondo.

Depois ficamos calados. Gosto de ver as ruas na madrugada da minha vida número 1. Dependendo da hora do dia, elas mudam de tamanho. De manhã são largas.

À noite são estreitas. Um dia, quase me atropelaram. Um careca com um cachorro briguento. Uma velhinha. Um mendigo maluco. Amo São Paulo.

São duas vidas. A número 1 é a minha preferida.

Ela vive dizendo vempracá, vempracá, me atiçando, mas ainda não é hora, a hora ainda vai chegar, às vezes sou um menino assustado, um guri bobo.

Então cabou o tempo.

Depois de duas semanas em São Paulo, era dia de voltar. Ao trabalho, à minha vida número 2, a mala cheia, mas desta vez deixei cinco ou seis camisas.

São Paulo sou eu. Brasília, minha outra casa, é uma cidade ampla. Talvez ampla demais. Vivo me perdendo lá dentro, mesmo nas quadras que conheço.

Quando o avião decolou, as nuvens todas desapareceram. Todas de uma vez. A chuva passou e o céu foi ficando avermelhado. São Paulo brincando comigo.

Outro dia perguntaram por que São Paulo e eu fiquei: hem? Não sei, deve ser por causa das pessoas que sobem e descem a Paulista, acho que sim.

Muita gente na rua. Cheiros da minha infância. Minha infância perto da praia. Aí descobri que o inverno em São Paulo pode ser o mais seco, o mais frio e cruel.

Tem isso. O avião ainda tava decolando quando lembrei do dia horrível no metrô, tanta gente apertada que parecia um atentado, mulher chorando etc.

Na poltrona do avião, homem dormindo e roncando. Tirei meu fone pra ouvir umas músicas, mas só consegui pensar tá errado, tá errado, tá errado, tá sim.

Tem esse chavão de que Brasília é hostil de tão seca. Eu acho que não. Eu gosto da névoa amarela e da poeira. E do céu azul sem nuvens: um lençolzão.

Minha mãe e meu padrasto foram me buscar. Ele sempre calado, preocupado com o que diz, com o que faz. Ela um pouco triste – de saudade, sei.

Não noto se meu padrasto tá melhorando ou piorando. Ele fica quieto, cada vez mais quieto, e a doença mordendo de um jeito que só ele sabe dizer.

Acaba que a gente se acostuma. Ele também. Eu e minha mãe. Minha irmã. Até os cachorros. Ele nunca foi tão amável. Minha mãe fez café com pão.

Mãe quer que eu fique, tenho que trabalhar. Minto: tenho sono, tou é sintonizando minha outra vida. A número 2. E a cidade já parece outra.

Nem sei que cidade é esta. Mudou muito. Mudou foi nada. Pra que essas ruas todas se dão voltas em torno delas próprias? Carros em silêncio, nem rádio.

Ligo a música no volume máximo porque não sei o que tou fazendo aqui. Não sei. A mulher fecha a janela. Não sei mesmo, moça, me desculpe, té mais.

No trabalho aparece o brilhozinho verde no celular. É ela. Quer saber se tou bem. Talvez sim. Certeza que não. Sempre machuca trocar de vida, só eu sei.

Arrancaram minha pele e trocaram por outra (mais ou menos isso). Como se eu fosse um personagem do David Cronenberg (a comparação mais exata).

Não sei o que essas pessoas querem de mim. Trabalho pra quem? Por quê? Meus amigos estão falando e não entendo. É hora do almoço e todos falam.

E parece que se passaram três meses desde quando acordei, naquela manhã. Hoje. Hoje pela manhã. Parece que o tempo alargou, não sei nem explicar.

Recebo mensagens da minha outra vida enquanto cumpro as tarefas do dia. Mais mensagens quando desço pra ir ao banheiro e pra lanchar. Paralelas.

Mais cedo discuti com minha mãe porque ela queria me dar de presente uma estante. E não preciso. Não vou ficar nesta cidade por muito tempo, mãe.

Não vou ficar, mãe. Não vai durar muito tempo. Mas ela quer que eu fique com a estante porque ela prefere não acreditar que eu queira ir embora. É.

Eu teria ficado abalado com aquilo. Ela péssima. Mas não sou um cara triste, contei uma piada, acho que ela ficou bem, depois nos falamos no telefone, ok.

Nem vejo como injustiça. Não saio reclamando. Não acho que exista isso, injustiças da vida, injustiças no acaso. As coisas são o que são e é isso, vamos.

Só que tá tudo errado e eu preciso resolver. Não posso com esse lá e cá. A cada mudança de pele, é como se me roubassem ânimo e eu envelhecesse.

No pulo de uma dimensão pra outra, algo se perde. Algo fica na outra cidade, e isso eu não recupero mais. Agora sou um personagem de K. Dick.

Não sei o que vou fazer depois, no dia seguinte. Ainda não posso planejar nada. Estou em trânsito, trânsito permanente, entre pedágios, andando.

E hoje foi um dos piores dias.

Depois do trabalho fui ao supermercado, comprei água e cereal, paguei uma conta na lotérica, vim pra minha casa, o apartamento cheirando a mofo.

As mensagens dela seguiam aparecendo, flashes da minha outra vida. Ela trabalhando, ela em quatro palavras por vez, ela desaparecida, ela etc.

No shopping, o restaurante anuncia: é o melhor da cidade. Não sei mais o que isso representa? Qual é o tamanho da cidade? Agora ela parece pequena.

Antes de chegar no apartamento, desci o eixo como quem explora e invade uma floresta. Quebrando troncos de árvores; tou perdido de verdade.

No último telefonema da noite, minha mãe perguntou se eu estava mesmo bem e eu disse que sim, né nada. Vamos seguindo, quem é que sabe?

Meus livros ainda espalhados no chão do quarto, e eu um pouco decepcionado por encontrá-los mais uma vez. Vocês deveriam ter sumido do mundo, não?

Eu enchendo a geladeira com garrafas de água. Eu e o cesto de roupa suja. Eu e a mala desfeita. Eu e meu laptop (que eu levo comigo de vida a vida). Eu só.

Já um pouco tarde, eu agora com sono e ainda paralisado (é o efeito do transe, não se muda de vida em vão), encarando a tela, esperando a ligação.

Aí ela aparece, às vezes só a voz. Quando ela aparece me sinto um pouco lá. E parece até que faço drama, porque as cidades ficam perto, não é fim do mundo.

Daí tento explicar que não é sobre distâncias. É sobre vida. Duas vidas. Duas vidas. E aí tomam como uma metáfora. E explico que não é metáfora. É o que é.

Outro dia perguntei pro meu padrasto: quando você percebe que esqueceu uma coisa importante, e volta àquele momento pré-esquecimento, como é?

Ele disse que há as coisas que ele esquece e há as que não ele não esquece. E que, hoje, as lembranças e as lacunas estão convivendo bem, sem crises.

Não sei como. Ele não sabe explicar. Confesso: tenho um pouco de medo de entender. Só sei que isso tudo, esses dias longos, nunca são do jeito como a gente quer.