Madonna
cine | Missão: impossível – Protocolo fantasma
Dirigir um filme da franquia Missão: Impossível deve ser um trabalho tão delicado quanto o de produzir um disco da Madonna. Vejamos: nos dois casos, os proprietários das obras (Tom Cruise e Madonna, respectivamente) saem à procura de produtores/cineastas respeitados, que estejam em alta no showbusiness e acrescentem algum valor midiático e (às vezes) artístico aos discos/filmes. Cruise e Madonna vão garantir liberdade a esses “autores convidados”, mas não sem estabelecer algumas cláusulas restritivas no contrato. Estamos falando sobre uma negociação: a cantora quer os hits e o ator, as cenas espetaculares de ação.
É uma comparação forçada, mas que simplifica o ponto onde quero chegar: as obstruções impostas por Cruise/Madonna, de uma forma ou de outra, acabam por ressaltar as particularidades dos cineastas/produtores que ele/ela contrata – já que cada diretor/produtor terá que fazer o mesmíssimo filme/disco de uma forma que, supostamente, só ele sabe.
No longa de Abrams, os obstáculos mostraram a expertise televisiva de um diretor que se aproxima dos atores aos esbarrões, com a câmera sempre trêmula e em close, e que prefere cenas de ação brutas, amareladas, com dezenas de referências a seriados de sucesso (de Alias a 24 Horas) etc. É, em minha modestíssima opinião, o pior momento da franquia.
Ainda comparando os dois mundos: Brian de Palma e John Woo fizeram filmes que equivalem a discos como Confessions on a Dance Floor e Ray of Light, em que os produtores conseguem não só aparecer na música como domar o processo de produção e moldar a estrutura dos álbuns. Já J.J. Abrams e Brad Bird fizeram um Hard Candy – filmes que oxigenam o regulamento de Cruise, mas sem pressioná-lo demais. Superproduções eficientes, que cumprem direitinho aquilo que o patrão mandou.
Não que os diretores pareçam se incomodar com isso. Tanto Abrams quanto Bird estão acostumados a lidar com limitações – o primeiro, muito bem acomodado no esquema industrial da tevê americana; o segundo, acolhido alegremente pela Pixar (que, como Madonna e Cruise, também garante certa liberdade aos seus autores). Brad Bird, que só havia dirigido fitas de animação até aqui, joga sempre junto com Cruise – mas, como não poderia deixar de acontecer (tá no contrato!), também aparece na tela. E de uma forma muito coerente com o que fez em desenhos como Ratatouille e Os Incríveis.
O que noto de Bird em Missão Impossível 4 é, principalmente, o cuidado com o desenho das cenas. E isso fica ainda mais aparente nas sequências de ação, que parecem ter sido concebidas para fitas de animação: o diretor trata esses trechos com um rigor e um senso de encantamento que parece mesmo raro no gênero (e comparar com a ação grosseirona do filme anterior pode provocar um contraste gritante). Uma das cenas, em que Cruise se pendura num arranha-céu espelhado de Dubai (o desfecho cômico é, aliás, uma belíssima sacada), me deixou tão deslumbrado que demorei alguns minutos para voltar ao fio de uma trama – que, como de costume, envolve conspirações e reviravoltas em mais de três territórios à sua escolha.
Quando não está vendendo laptops da Apple ou compondo panfletos turísticos de Dubai, o que Bird faz é um action movie vazio (e bonito) que poderia atender por Um Homem em Perigo. No episódio anterior, Ethan Hunt ainda parecia humano, um sujeito que encontraríamos na rua. Aqui, ele é um alvo em movimento: forte, invencível, um super-herói desviando de tiros e levando sopapos; quase um tipo cômico, uma entidade de cartoon, uma criatura de cinema.
Se o filme fosse só isso – uma longa cena de ação dirigida por Bird -, seria ótimo. O que me mata são os noventa e tantos minutos que sobram entre uma pirueta e outra. No linguajar da música pop, tem muito filler, muito intervalo comercial. Canções espetaculares de três minutos num álbum errático – mais ou menos como Hard Candy, ou qualquer outro disco esquecível (mas cheio de hits) da Madonna.
(Mission: Impossible – Ghost Protocol, EUA, 2011) De Brad Bird. Com Tom Cruise, Jeremy Renner, Simon Pegg e Paula Patton. 133min. B
Superoito express (27)
American slang | The Gaslight Anthem | 8
O maior pecado que se pode cometer com o Gaslight Anthem é tratá-la como mais uma banda americana que se aventura a cingir as estradas do abertas por Bruce Springsteen. De fato, não são os únicos: como o Hold Steady e o Titus Andronicus, este quarteto de Nova Jersey revisa o ‘rock clássico’ setentista (não só Bruce, mas Stones, Clapton, Greatful Dead) com uma sensibilidade punk e uma escrita realista – crônicas de uma América sem glórias, cotidiana. Mas as comparações logo perdem a importância: quando vai ao microfone, Brian Fallon se torna o porta-voz de todos os roqueiros que abandonaram a juventude, mas não perderam a inquietação. É o homem.
Enquanto o Hold Steady e o Titus ainda conseguem tomar algum distanciamento para narrar a saga dos meninos e meninas da América, Fallon parece contar a própria história (e talvez seja tudo ficção, mas o que importa é o grau de convicção, altíssimo). Mas, em vez de se retrair no canto do quarto, ele combina versos cheios de mágoas e nostalgia com uma sonoridade extrovertida, de cabeça erguida. “Aqueles velhos discos não vão salvar a sua alma”, Fallon avisa, em Stay lucky. Mas American slang, mais conciso e aparadinho do que The 59 sound (2008), soa como um álbum perdido do início dos anos 70: hinos robustos para o sonho que acabou.
Gemini | Wild Nothing | 7.5
Sem querer forçar a barra (mas já forçando), existe pelo menos uma semelhança entre o Gaslight Anthem e o Wild Nothing: ambos soam autênticos mesmo quando seguem todas as regrinhas de certos subgêneros do indie rock. No caso do projeto de Jack Tatum, a matriz é o shoegazing dos anos 80. Mas, se a neblina de Gemini nos transporta imediatamente a um disco do My Bloody Valentine ou do Cocteau Twins, Tatum vai remodelando e atualizando essa sonoridade com a leveza do pop sueco (Summer holidays é bonita de doer) e o noise doce de um Pains of Being Pure at Heart. Em resumo: a delicadeza às vezes exige uma arquitetura complicada.
White magic | ceo | 7.5
E o sol continua a brilhar na Suécia… O projeto solo de Eric Berglund, do Tough Alliance, é cartão-postal para as belezas do pop escandinavo, a ser consumido com cautela por quem se engasga com melodias acolchoadas e arranjos com cheiro de morango. Canções infinitamente otimistas como Illuminata, No mercy e Love and do what you will são quase exercícios de estilo: coros, flautas, ecos, barulhinhos divertidos, sentimentos nobres e sintetizadores gentis. Uma lindeza. Melhor do que isso, só quando caem as chuvas de verão: Oh God, oh dear, uma ode tocante a Brian Wilson, e a eletrônica nebulosa da faixa-título são remédios contra insolação. “Venha comigo para um lugar que eu chamo de realidade”, convida Eric. Por enquanto não, obrigado.
Night work | Scissor Sisters | 7
Nada como um produtor sagaz: no terceiro disco do Scissor Sisters, o parisiense Stuart Price transforma um conjunto de canções apenas medianas num álbum que flui como um DJ-set. Um milagre semelhante ao que ele operou em Confessions on a dance floor, da Madonna, e Day and age, do Killers. No caso de Night work, o espírito é o de uma festança para trintões, com doses de dance music safada, new wave e pop dos anos 1970 e 1980. Os nova-iorquinos ainda pilham os hits alheios com humor debochado, camp – mas, desta vez, ganham massa muscular graças aos esteróides roubados de discos antigos do Prince ou de um Midnite vultures, do Beck. De Bee Gees (Any which way) a Talking Heads (Running out), o DJ não falha. No calor da pista, sobra até para os mais românticos: Fire with fire é o tipo de baladona épica que venceria o Oscar de melhor canção em 1986. O suficiente para nunca mais confundirmos Scissor Sisters com Mika.
/\/\ /\ Y /\ | M.I.A.
O que você procura na música pop?
Você quer conforto, identificação, sentimentos calorosos, um refrão bem escrito, uma melodia que se assemelha a outra melodia que se assemelha a outra melodia que, por sua vez, é a melodia que tocava no momento mais importante da sua vida?
Ou você busca o assombro estético, a provocação, o desafio, a ideia inusitada, a melodia dissonante e estranhamente sedutora que, como um bug inesperado, o convida a repensar a importância que você dá às melodias mais familiares?
Maya Arulpragasam, 34 anos, procura um pouco das duas coisas. O afago e o choque. Mas, decididamente, anda cansada de conforto.
Na capa do terceiro disco de M.I.A., nos deparamos com a imagem de uma tela de computador infestada de cursores do YouTube. A cingalesa se esconde atrás de blocos cor de rosa que poderiam ter saído de um game retrô. É uma colagem que lembra aqueles instantes horríveis em que aplicativos se multiplicam desordenadamente, poluem nossos monitores sem que possamos controlá-los. Um tufão de bits. Por alguns minutos, é como se a máquina – o lado misterioso da força – tivesse finalmente vencido.
O criptografado /\/\ /\ Y /\ (que, se você preferir, aceita ser chamado simplesmente de Maya) é um álbum pop que simula esses minutos de caos e pavor. Pânico de tecnologia.
Que, obviamente, não é provocado tão somente por defeitos momentâneos do Internet Explorer. Logo na primeira faixa, A message, M.I.A. aponta a escopeta para outros inimigos. “Fones de ouvido se conectam com iPhones, iPhones se conectam com a internet, que se conecta com o Google, que se conecta com o governo”, alerta. A introdução dura menos de um minuto de duração, mas resume o sentimento de paranoia, revolta (mas contra quem?) e tensão que contamina o disco inteiro.
Numa época em as redes sociais metralham os “toques” de modelos, boleiros, atores pornôs e ex-integrantes de reality show, pode parecer impressionante que a música pop não tenha adquirido o hábito de comentar a web – e especular sobre os efeitos sociais de todo esse ruído on-line. M.I.A. observa naturalmente essa dimensão tecnológica do tempo em que vive: é possível fazer pop de guerrilha, pop contemporâneo, sem levar em conta o YouTube, o Twitter, o MySpace, a Wikipedia? Para M.I.A., não é.
E talvez não seja mesmo possível. Talvez nós é que estejamos acostumados a encastelar o pop e a protegê-lo de uma realidade que ainda soa confusa, complicada demais. Perto da ambição de M.I.A., o pop-2010 soa como um filme desbotado.
O tema já estava presente, ainda que indiretamente, em Arular (2005) e em Kala (2007). Os discos foram elogiados por renovar a world music, mas M.I.A. sempre pareceu mais interessada em nos mostrar que, com a internet, a música dos ‘outsiders’, dos estrangeiros (antes, tida como exótica e obscura), passou a ser mais um elemento sonoro entre tantos, mais um arquivo em mp3 à nossa disposição. Colar um arquivo no outro – e, com isso, produzir combinações muito pessoais – era a lição (até simplezinha, para quem se adaptou a um planeta pós-Napster, mas que soou como uma imensa novidade).
Maya é o álbum que radicaliza esse estilo global, fragmentado, sem muros, que observa naturalmente (e, no caso, com agonia) um mundo que não passa no noticiário da CNN.
Radical, aliás, em mão dupla: a sonoridade está mais arredia, irritadiça, “difícil” (de propósito). Já o discurso, menos polido, desinteressado em explicar didaticamente as próprias intenções. É o que é, como ela bem avisa no título de uma das faixas.
Lovalot, talvez a melhor do disco, sintetiza o conceito: sob um loop áspero (imagine o som de um chocalho grudado a um sampler mínimo de baile funk), M.I.A. narra o caso de amor entre um casal islâmico envolvido em casos de terrorismo. “I really love a lot”, diz o refrão, que pode ser interpretado como “I really love Alah”. Mas é outro verso, insistente, que ecoa quando a música termina: “Eu luto contra os que lutam contra mim.” Eis que, sem condenar ninguém, M.I.A. dança no campo minado.
Na face menos incendiária do disco, a web serve de plataforma para casos de amor e crises de identidade. “Você quer que eu seja alguém que não sou realmente”, reclama a apaixonada narradora de XXXO. “Por que as coisas mudam e permanecem as mesmas? Por que as pessoas gostam das mesmas coisas?”, ela questiona, em Tell me why, talvez chocada com as semelhanças entre posts do Twitter. E duas das faixas-bônus atendem por Internet connection e Caps locks.
Antes do lançamento do disco, M.I.A. explicou que: 1. As canções foram escritas num momento de crise, quando ela, isolada em Los Angeles, se sentia desconectada do planeta; 2. Ao lado de produtores como Blaqstarr e Rusko, ela gravou uma jam demorada no estúdio caseiro, uma zoeira de ritmos e loops, de onde tirou as ideias para as músicas; 3. A intenção era criar um disco “tão estranho e desconfortável que as pessoas começariam a exercitar os músculos da crítica”, um projeto “esquizofrênico”.
O resultado soa menos desagradável do que M.I.A. esperava, mas chega perto dos atos de terrorismo musical praticados pelo Flaming Lips (Embryonic) e Radiohead (Kid A/Amnesiac). Chegaria ainda mais perto se o disco não se escorasse em três faixas que podem (e devem) rodar nas rádios sem provocar muita estranheza: o R’n’b fofíssimo de XXXO (uma das canções mais viciantes do ano, de longe), o remake dub de It takes a muscle (do grupo alemão Spectral Display) e Tell me why, uma faixa dançante e sutilmente multicultural que poderia ter entrado no repertório de Music, da Madonna.
À exceção desses três momentos (que aliviam e muito a vida do fã), Maya é cacofonia digital com inúmeros dejetos musicais que, numa primeira audição, soam irreconhecíveis. Nos álbuns anteriores, ainda dizíamos que M.I.A. mesclara hip-hop com funk carioca e bhangra. Agora, não dá mais: essas e outras influências são trituradas num caldo grosso, com tempero ardido de punk (em Born free, com sampler de Suicide) e de neo-industrial (Derek E. Miller, do Sleigh Bells, também colabora).
É um disco que permite (até alimenta) a divisão de opiniões: uma obra aberta, espinhosa, que será atacada por muita gente e tratada como uma revolução por outros tantos. Até aqui, goste ou não, é o álbum pop mais urgente do ano.
Em momentos como Teqkilla e Meds and feds, o disco se desprende de qualquer padrão melódico e vai criando camadas de ruídos sobre ruídos. São arquivos que soam como arquivos corrompidos (no segundo caso, M.I.A. consegue sujar a já sujíssima Treats, do Sleigh Bells). É o choque, o vírus que corrói a rede.
Mas, ao fim deste ‘post’ de 42 minutos, M.I.A. volta ao pop (e ao mundo real) com um canção que atualiza o desencanto de No surprises, do Radiohead, e a fase Zooropa do U2, quando um Bono Vox desplugado comentava sobre um mundo com centenas de canais de tevê, mas nada de interessante na programação. “Minhas linhas caíram, você não pode me encontrar. Preciso passar um tempo com você. Não há nada de novo no noticiário da tevê”, canta M.I.A., depois do fim do mundo.
E assim termina o apocalipse digital: numa tentativa de contato. Humano e (parem as máquinas!) real.
Terceiro disco de M.I.A. 12 faixas, com produção de Blaqstarr, Diplo, Switch, Rusko e M.I.A. Lançamento NEET, XL Recordings, Interscope. 8.5/10
Sticky and sweet
Meu padrasto comprou um telefone celular novo. Dos modernos. Tão multifunções que, há três noites, ele leva o objeto para a mesa de jantar e, de óculos, seríssimo, tenta um contato imediato.
Agorinha mesmo ele se esforçava para escolher o toque de chamadas. Zilhões de opções. Uma loucura. Testou a campainha retrô (que me lembra novelas de época), não gostou. Chegou perto de se interessar pelo ruído à máquina de pinball. Mas acabou emburrado. Zapeou pelo tecnopop meio Information Society, que disparou num volume altíssimo. Fez cara feia. Mordeu um caju. Ajeitou o óculos. E aí esbarrou no refrão:
– You always love me more, miles aw –
(bruscamente interrompido)
– Credo.
E taí: a primeira vez que meu padastro, o único brasileiro que não faz a mínima idéia do que seja The sticky and sweet tour, ouviu com alguma atenção um hit da Madonna. E foi como se nada, nada tivesse acontecido.