Los Hermanos

Radiohead em São Paulo

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Assim que ouvi Ok computer pela primeira vez, acredito que por volta de agosto de 1997, tomei um susto tão grande que decidi dividir a experiência com meu padrasto. Fã de Kraftwerk e de Pink Floyd (cresci ouvindo sinos em volume máximo), provavelmente ele entenderia aquilo tudo melhor que eu. Lembro até hoje a reação desejeitada daquele homem grisalho, já turrão e (às vezes terrivelmente) cético: depois de um longo período de silêncio, o Mr. Sisudez se deu por satisfeito lá pela quinta ou sexta faixa. “É impressionante”, ele observou, quase cientificamente. “Se eu tivesse a sua idade, ouviria sem cansar.”

Ficamos nisso. Acredito que, depois daquela impressão animadora, meu padrasto nunca voltou a um disco do Radiohead. Como se, incapaz de acompanhar o galope de uma geração por ele desconhecida, preferisse manter distância das estranhas (e talvez maravilhosas) novidades cultuadas por meninos de 14 anos de idade. Como se dissesse: “ok, Tiago, agora você sabe o que sinto quando ouço The dark side of the moon.”

Duvido que me padrasto tenha assistido aos trechos do show de sábado em São Paulo, exibido na tevê por assinatura. Não o interessa. Posso dizer sem margem de erro: foi retrato de uma geração. A minha geração.

Provavelmente ele teria gostado do que vi (que, para mim, não vale menos que 10/10). A sensibilidade musical do meu padrasto, apesar de excessivamente seletiva (cinco ou seis bandas são o suficiente para mapear toda uma existência), foi moldada por um rock inventivo e atmosférico, ambicioso e monumental. Anos antes de Ok computer, mostrei a ele Nevermind e tudo o que recebi em troco foi um “tsc, o ser humano é um projeto que não deu certo”.

O show do Radiohead é ambicioso e monumental como eram os álbuns de rock progressivo dos anos 70. Mas também é catártico, emotivo e atormentado como o pós-punk do final daquela década. Há como identificar essa mão-dupla de referências em cada um dos álbuns da banda. Em Ok computer. Em Kid A (ainda que rarefeita). Em In rainbows (ainda que coberta por um bafo quente de soul music). Mas, no palco, essa equação se faz visível, reluzente, pulsando diante dos nossos olhos (deslumbrados, talvez cansados, talvez incomodados ou frustrados, mas hipnotizados).

É nosso reflexo. A imagem de quem viveu os anos 90 e seguiu se transformando até chegar aqui, no final da primeira década do século 21. Radiohead é, de certa forma, nossa história (minha e dos outros que o adotaram como trilha sonora para a adolescência). E, de outra forma, a história muito precisa de um período de transformações fundamentais para a música pop. Intencionalmente ou não, os ingleses refletiram o furor grunge (no hit Creep), a desilusão do fim de século (em Ok computer) e a fragmentação do pop via web (Kid A foi o primeiro grande filho do Napster) até antecipar a morte da indústria fonográfica (em In rainbows, distribuído de graça, independente de verdade).

A discografia do Radiohead pode sim ser encarada como um tratado para um mundo em transe. Você ouve Ok computer, por exemplo, e entende a crise econômica. Sério.

No palco, a banda tenta resumir essa ópera sem soar didática ou acomodada (a liberdade de criação é a bandeira que eles continuam levantando). Trata-se de um desafio e tanto. Dois dias antes, assisti a um show do Iron Maiden e tudo o que os velhos metaleiros conseguem (dignamente, para os padrões do metal; nada contra) é enfileirar canções conhecidas da forma mais plana possível, com um ou outro cenário engraçadinho – o que 90% das bandas praticam desde os anos 60. O show do Radiohead vai bastante além desse formato-padrão. É um espetáculo mais intrincado.

Assisti ao show com uma amiga que não conhecia nada além de In rainbows. No final da apresentação, virei-me para ela e disse: “Você acabou de ouvir tudo o que precisa saber sobre a banda. Isto é Radiohead.” Pouco depois, ouvi reclamações de fãs que queriam ter cantarolado hits de The bends. Mas faria algum sentido? A jornada do Radiohead não tem volta. Entendi muito bem que Creep, escondida lá no terceiro bis, era uma faixa bônus que, apesar de agradar aos fãs (e foi uma apoteose), destoa bastante da fase em que a banda se encontra.

A banda se jogou tão decididamente na própria aventura que muitos dos fãs ficaram pelo caminho. Natural. Conheço que deteste Kid A. Também sei dos que desprezam hits como High and dry. O show abraçou essas duas facetas, mas resgatadas a partir dos climas quase transcendentais de In rainbows (a iluminação é, por si só, obra-prima: engolida por tubos de luz, a banda toca literalmente dentro de um arco-íris). Uma banda na trilha do sublime.

Mais que isso: uma banda madura. Quem dera se toda maturidade soasse assim. O rigor técnico aliado à interpretação emotiva, a pompa de superprodução afinada à elegância do conceito (até as cores do telão, em meios-tons, impressionavam pelo detalhismo, pela finesse). Os sets que mudam a cada concerto, mas são sempre executados de forma impecável. Improvisos calculados, mas que soam vivos, doídos, frágeis. Thom Yorke é o Kurt Cobain que cresceu, entendeu os mecanismos da música pop e venceu o monstro sem desligar-se da angústia (e viver neste mundo continua difícil, com ou sem maturidade). Hoje, não há band leader que o supere.

O show de São Paulo oscilou do folk mais cru (a emocionante Faust arp, com dois violões e ponto final) à eletrônica mais cerebral (a geleira chamada Idioteque) – e cobriu uma série de etapas intermediárias entre um extremo e outro. As canções menos virulentas acabaram se destacando – com momentos arrasadores como Karma police, Fake plastic trees, Exit music (for a film) e Pyramid song -, interrompidas vez ou outra por espasmos de ruído (Bodysnatchers, The national anthem). Síntese do show e da carreira da banda, Paranoid android foi reconstituída com fidelidade absoluta – e agarrada pelo público, que fez coro, prolongou os versos, não quis soltar. Sete minutos que passaram como sete segundos.

No total, ficamos perplexos por cerca de 2h20. Pareceu pouco. Eu ficaria ali, de pé, apertado pela multidão, talvez de cabeça para baixo, por mais quatro horas (ouvir Lucky e Climbing up the walls assim, no susto, é de provocar parada respiratória). O golpe de misericórdia veio no final do segundo bis, com uma versão acelerada para Everything in its right place: as luzes vomitavam os versos da canção mais surrealista da banda, enquanto Thom Yorke ia desaparecendo lentamente.

Sabemos tudo o que precisamos saber sobre o Radiohead. O resto é mistério. 

Em tempo 1: O mundo não acabou, mas a saída da Chácara do Jockey parecia uma cena de Fim dos tempos. Uma massa de gente, empurrada sabe-se lá para onde. “Parece até Eu sou a lenda“, uma amiga comentou. Nesse exato momento, por uma coincidência absurda, quase tropeçamos adivinha em quem? Alice Braga! Bastante simpática, aliás.

Em tempo 2: Os shows de abertura foram prejudicados pelo volume do som (que, no Radiohead, estava excelente). Los Hermanos fez um retorno correto (7/10), privilegiando lados B e faixas do Bloco do eu sozinho. O público estava tão animado que a banda soou mais alegre que de costume (e Rodrigo Amarante, mesmo aparentemente rouco, deu até pulinhos). O Kraftwerk (6/10) penou para se adaptar à arena, com um telão que mal ocupava metade do espaço destinado ao palco do Radiohead. O show é excelente, um dos melhores que vi na minha vida, mas se dá melhor em espaços menores, com som alto. Foi um aperitivo.

Em tempo 3: Depois de duas horas e meia tentando pegar um táxi (quase apelei para a estratégia de deitar no asfalto e me fazer de cadáver), vi a cor de um sanduíche de frango às 3h da matina. Acordei às 7h para pegar o voo e cá estou eu, um zumbi em pessoa. Morto mas feliz.

Sou/Nós | Marcelo Camelo

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Você já levou um fora do Marcelo Camelo? Eu já. Na época do lançamento de Ventura, tentei perguntar a ele sobre as influências musicais do Los Hermanos. Uma questão bobinha e babaquinha que jornalistas bobinhos e babaquinhas costumam fazer mas que, no fim das contas, sempre me interessou bastante (ainda mais quando feita para uma banda que, no começo de carreira, se dizia influenciada pelo Weezer).

A resposta do moço foi mais ou menos assim:

– Ih, cara, olha, não sei, vá entender, sabe como é, não é bem assim, não é por aí, é que música, música, música… a gente não se inspira tanto em música, sabe? O que são bandas, o que são influências? Influências? Nossas influências podem estar no cinema, na fotografia, na vida.

(E, antes de ter ouvido finalmente o barulho de uma pauta se espatifando no chão, ainda pensei em perguntar sobre cineastas e fotógrafos, mas preferi deixar quieto).

Quando eles lançaram 4, meu disco favorito do grupo, preferi sugerir a entrevista a outro repórter. Naquela altura, eu já estava conformado com o fato de que o Los Hermanos se mostrava uma banda que se irritava com a idéia de conversar sobre música. No início, estranhei o desinteresse (se eu fizesse parte de uma banda, passaria horas divagando inutilmente sobre o assunto). Depois percebi que as coisas são assim e pronto, confrontá-las seria inútil. E, de fato, cada vez mais o quarteto parecia solto ao vento, largado no mar, pronto para se deixar levar por referências que muitas vezes não cabiam no nome de alguma banda estrangeira ou de algum gênero musical.

Acredito na hipótese de que o Los Hermanos nunca adorou entrevistas por medo de acabar condenado a um rótulo, a uma definição apressada, a um slogan desatento.

O disco solo de Marcelo Camelo leva essa aflição a um degrau acima. Soa tranqüilo, mas não é nada disso. Ouça três vezes e você descobrirá um álbum mais detalhista e aventureiro que qualquer um lançado pelo Los Hermanos. Se 4 representou a ruptura definitiva da banda com as expectativas alheias e com o rock – e, ao mesmo tempo, apontou para o desgaste de um longo relacionamento (hoje, o verso “eu preciso andar um caminho só” soa ainda mais apropriado) -, este Sou/Nós amplia a caixinha de música lírica e introspectiva de Camelo. Mas, surpreendentemente, não tem nada de inocente, de despretensioso.

Sou/Nós (e a ambição começa no título) não é um típico álbum solo. Não é desajeitado, não é um encontro casual, não é um bico de férias. Soa mais como um novo ponto de partida. Cada vez mais seguro daquilo que quer para si, Camelo gravou um disco brasileiríssimo com ecos tanto do novo-folk (em Janta, com Mallu Magalhães) quanto do chamber pop de bandas como Lambchop e do renovado The Sea and Cake (na excelente Téo e a gaivota, que, com participação do Hurtmold, abre o álbum cheia de vãos, lacunas, ruídos e uma melodia em estado de graça). E, sim, um álbum que passa pela MPB, com participações de Dominguinhos (em Liberdade) e uma crônica carioca que lembraria o Chico Buarque dos anos 90/2000 mesmo se não falasse em “velhinhos bons de papo” (a marchinha Copacabana).

Numa primeira audição, os temas do disco nos preparam para uma continuação direta de 4. Camelo ainda canta a solidão (doce ou dolorida), o amor, filosofia à beira-mar (“Acho normal ver a vida feito faz o mar num grão de areia”, diz em Mais tarde) e se afirma com um certo acanhamento decidido (“Eu caminho no tempo que bem entender”, avisa, em Vida doce). Mas, esparramadas num álbum inteiro, sem interrupções, as canções do compositor ganham a forma de um retrato integral, de uma jornada particular. Nada que tenhamos ouvido antes.

Marcelo Camelo está solto. E se este disco às vezes soa como trilha sonora (as versões em piano para Solidão e Passeando) ou como o documentário sobre a gravação de um disco (são vários as arestas soltas entre uma música e outra) ou como um cruzamento de Marisa Monte com Arnaldo Antunes (sem Carlinhos Brown, aleluia), é que ele vê a música de uma forma generosa, permeável. O medo de trair os próprios desejos talvez tenha sido o veneno que contaminou o Los Hermanos, mas taí o resultado da coragem: um álbum novo, um homem por inteiro.

Primeiro álbum de Marcelo Camelo. 14 faixas, com produção do próprio compositor. Zé Pereira/SonyBMG. ***