Livro
[richard williams]
“O azul é a cor da distância, do céu e das montanhas ao longe. Cézanne acreditava que apenas acrescentando um elemento de azul a cada cor em sua aquarela ele seria capaz de criar a sensação da luz natural, de objetos vistos através do ar. É a cor das despedidas, das lágrimas, das ausências, da saudade, do estoicismo, das emoções controladas ou examinadas em contemplação solitária. E, ainda assim, entre todas as cores do espectro, apenas o violeta tem um menor comprimento de onda que o azul, o que gera um alto grau de energia. A excitação criada pelo vermelho é, nesse sentido, uma ilusão tão grande quanto a distância e a passividade do azul. Entretanto, é uma ilusão popular: uma experiência demonstrou que as pessoas dentro de uma sala pintada em tons de azul e verde reclamaram do frio quando a temperatura caiu a 15°C; quando a sala foi pintada em tons de vermelho e amarelo, elas ainda se sentiam aquecidas a 12°C.”
Trecho de Kind of Blue – Miles Davis e o álbum que reinventou a música moderna, de Richard Williams.
[thomas bernhard]
“Retornei ainda uma vez à cidade em virtude do chamado Prêmio Literário da Cidade de Bremen, e não tenho intenção de me calar sobre a experiência que vivi nessa segunda viagem. Fui um dos jurados a escolher o laureado do ano seguinte e viajei para Bremen com o propósito inamovível de dar meu voto a Canetti, que, assim creio, não havia até aquele momento recebido um único prêmio literário. Fosse por que motivo fosse, não pretendia dar meu voto a ninguém senão Canetti, todos os demais candidatos me pareciam risíveis. A reunião dos jurados teve lugar, creio, em torno de uma mesa comprida de um restaurante local, à qual se encontrava sentada toda uma série de cavalheiros com direito a voto, como se diz, entre os quais o famoso senador Harmsen, com quem eu me entendia muitíssimo bem. Acredito que todos já tinham nomeado seu candidato, e ninguém falara em Canetti, quando chegou a minha vez, e votei: Canetti. Eu era a favor de dar o prêmio a Canetti por causa de seu Auto da fé, a genial obra da juventude que, um ano antes daquela reunião do júri, havia sido reeditada. Disse várias vezes o nome Canetti, e a cada uma delas os rostos ao longo da mesa comprida tinham se retorcido de pesar. Muitos ali nem sabiam quem era Canetti, mas, entre os poucos que sabiam de sua existência, encontrava-se um jurado que, de repente, tendo eu tornado a repetir o nome Canetti, comentou: Mas, além de tudo, ele é judeu! Seguiu-se tão somente um murmúrio, e Canetti foi descartado. A frase, porém – Mas, além de tudo, ele é judeu! -, ecoa ainda hoje em meus ouvidos, embora eu não seja capaz de dizer qual dos senhores à mesa a pronunciou. Mesmo assim, sigo ouvindo-a com frequência, provinda de um canto especialmente sinistro, ainda que eu não saiba quem foi que a disse. O fato é que aquela frase matou na raiz todo e qualquer debate sobre minha sugestão de outorgar o prêmio a Canetti. Preferi, portanto, nem participar do restante da discussão, limitando-me apenas a permanecer calado à mesa. Um bom tempo se passou, ao longo do qual uma quantidade infinita de nomes horrendos foi citada, nomes aos quais eu só podia, em sua totalidade, vincular verborragia ou diletantismo, mas um laureado ainda não tínhamos. Os cavalheiros olhavam para o relógio, e pela porta de folha dupla penetrava o aroma do assado em preparação na cozinha. Assim sendo, a mesa simplesmente precisava tomar uma decisão. Para meu grande espanto, de súbito um dos cavalheiros – e, de novo, não sei dizer qual – retirou da pilha de obras sobre a mesa, aleatoriamente conforme me pareceu, um livro de Hildesheimer e, num tom de extraordinária ingenuidade, levantando-se já para o almoço, disse: Ora, vamos ficar com o Hildesheimer, sim, fiquemos com o Hildesheimer, e Hildesheimer era justamente o nome que, ao longo de horas de debate, ninguém havia mencionado. Agora, de repente, à menção do nome Hildesheimer, todos recuaram suas cadeiras, aliviados, votaram no nome de Hildesheimer e, em poucos minutos, definiu-se que Hildesheimer era o novo vencedor do Prêmio Literário da Cidade de Bremen. Quem era de fato Hildesheimer, isso era provável que ninguém ali soubesse. De imediato, aliás, comunicou-se à imprensa que, após aquela reunião de mais de duas horas, Hildesheimer era o novo laureado. Os cavalheiros, então, levantaram-se e se encaminharam para o salão de refeições. O judeu Hildesheimer ganhara o prêmio.”
Trecho do livro Meus prêmios, de Thomas Bernhard, que venceu o Prêmio Literário de Bremen um ano antes de ter participado do júri da premiação.
Trecho | O idioma do caos
“Num conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher, em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma história para apaziguar as dores insuportáveis. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar:
– Não, assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida.
– Desconhecida? – ele pergunta.
– Uma língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender nada!
O marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sente-se ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém, vai ficando mais à vontade nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza. Quando se detém, repara que a mulher está adormecida, e mora em seu rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de estarmos vivos.
Na nossa infância, todos nós experimentamos esse primeiro idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino. James Joyce chamava de “caosmologia” a esta relação com o mundo informe e caótico. Essa relação, meus amigos, é aquilo que faz mover a escrita, qualquer que seja o continente, qualquer que seja a nação, a língua ou o gênero literário.”
Trecho de Línguas que não sabemos que sabíamos, de Mia Couto.
Trecho | Na galeria
“Então. Haverá um período de nada e aí a próxima exposição. Victoria Hwang, em meio de carreira, subvalorizada, mas começando a atrair sérias atenções por razões que Peter não consegue decifrar totalmente: essas coisas podem ser misteriosas, algum consenso visceral entre um corpo pequeno, mas influente de pessoas, de que é hora, de que esses objetos de repente são mais importantes do que pareceram a princípio. São malucas, essas mudanças de ares. Não são calculadas, não no sentido de uma conspiração de marchands internacionais (às vezes ele gostaria que fossem), mas não são exatamente sobre arte também. São reações impossíveis de tão intrincadas a um bilhão de minísculas mudanças na cultura, na política, nos íons da maldita atmosfera; não podem ser previstas, nem entendidas, porém dá para sentir que estão chegando, como animais que se acredita serem capazes de sentir um terremoto horas antes de ocorrer.”
Trecho de Ao anoitecer, de Michael Cunningham
Trecho | Itinerário do autor
“O itinerário de um autor é sempre mais ou menos o mesmo: um cineasta, decerto conhecido mas incompreendido, ou invisível como artista em seu próprio país, é valorizado pela cinefilia parisiense. Seus filmes são vistos, notados, as revistas apoderam-se dele a golpe de críticas e filmografias comentadas e, logo, programações especiais são organizadas por algumas salas. Em seguida o próprio cineasta é contatado, convidado a ir a Paris por determinados cineclubes, convocado para longos encontros e entrevistas. A entrevista é publicada, acompanhada de um ou vários textos enaltecendo seu estilo, sua mise en scène marcante de filme para filme – publicação aguardada principalmente nos Cahiers du Cinéma, a pequena revista (5 mil exemplares) de capa amarela criada em abril de 1951, referência mais importante para os cinéfilos. E alguns meses, alguns anos mais tarde, depois de os jovens críticos dos Cahiers du Cinéma ficarem famosos, aqueles ex-artistas secundários de Hollywood ou de Roma, já cineastas em Paris, são revistos, depois defendidos e estudados nas universidades americanas ou italianas.”
Trecho de Cinefilia – Invenção de um olhar, história de uma cultura – 1944-1968, de Antoine de Baecque
Trecho | A vida verdadeira
“A vida verdadeira não pode ser reduzida a palavras ditas ou escritas, por ninguém, nunca. A vida verdadeira ocorre quando estamos sozinhos, pensando, sentindo, perdidos na memória, autoconscientes em pleno devaneio, os momentos submicroscópicos. Ele, Elster, disse isso mais de uma vez, de mais de uma maneira. Sua vida acontecia, ele disse, quando estava sentado numa cadeira olhando para uma parede lisa, pensando sobre o jantar.
Uma biografia de oitocentas páginas não passa de conjecturas mortas, ele disse.
Eu quase acreditava quando ele dizia essas coisas. Ele dizia que fazemos isso o tempo todo, todos nós, nos tornamos nós mesmos por baixo do fluxo de pensamentos e imagens vagas, perguntando a nós mesmos quando vamos morrer. É assim que vivemos e pensamos, sabendo disso ou não.”
Trecho de Ponto ômega, de Don DeLillo.
Trecho | Luz e silêncio
“Kathy fez o que sabia que não deveria fazer, pois os clientes sem dúvida precisavam e esperavam poder falar com ela de manhã. Desligou o celular. Fazia isso de vez em quando, depois de as crianças descerem do carro e quando estava voltando para casa. Só para ter aquela meia hora de solidão durante o trajeto – aquilo era um luxo, mas era fundamental. Ficou olhando para a rua, em silêncio completo, sem pensar em nada. O dia seria longo, e não iria terminar até as crianças irem para a cama, então ela se permitiu aquela única extravagância, um intervalo ininterrupto de trinta minutos de luz e silêncio.”
Trecho de Zeitoun, de Dave Eggers
Trecho | Um sonho, um mapa falso
“Eu também tenho sonhado com outro lugar, um lago ao norte, com chalés e pequenas propriedades rurais ao redor de sua margem sul. No meu sonho, chego até lá vindo do sul da Califórnia, onde moro; esse é um local para passar as férias, mas é muito antiquado. Todas as casas são de madeira, com aquele tipo de tábua marrom tão popular na Califórnia antes da Segunda Guerra Mundial. As estradas são de terra. Os carros também são mais antigos. O que é estranho é que não existe nenhum lago assim na parte norte da Califórnia. Na vida real, já dirigi todo o caminho para norte que leva até a fronteira com o Oregon e cheguei a entrar no Estado do Oregon. Só existem 1500 quilômetros de território árido.
Onde é que existe esse lago – e as casas e estradas ao redor – na verdade? Sonho com ele inúmeras vezes. Como nos sonhos tenho a consciência de que estou em férias, de que minha verdadeira casa fica no sul da Califórnia, às vezes dirijo de volta até aqui, Orange County, nesses sonhos interconectados. Mas quando volto para cá, estou morando numa casa, ao passo que na realidade vivo em um apartamento. Nos sonhos, sou casado. Na vida real, vivo sozinho. O mais estranho ainda é que minha esposa é uma mulher que nunca vi antes.
Em um dos sonhos, nós dois estamos do lado de fora, no quintal, regando e podando nosso roseiral. Posso ver a casa ao lado: é uma mansão, e temos em comum com ela um muro de alvenaria. Rosas selvagens foram plantadas numa trepadeira que sobe pelo muro, para torná-lo atraente. Quando passo meu ancinho ao lado das latas de lixo de plástico verde que enchemos até a boca com galhos podados, olho para a minha mulher – ela está regando as plantas com uma mangueira – e olho para o muro com suas trepadeiras e rosas, e sinto-me bem; penso: não seria possível viver feliz no sul da Califórnia se não tivéssemos esta bela casa com seu belo quintal. Preferiria ser o dono da mansão ao lado, mas de qualquer maneira eu pelo menos posso vê-la, e posso entrar no seu jardim mais espaçoso. Minha mulher veste blue jeans; ela é magra e bonita.
Quando acordo, penso: eu deveria dirigir até o lago ao norte; por mais bonito que seja cá em baixo, com minha esposa e o quintal e as rosas selvagens, o lago é mais bonito. Mas aí percebo que estamos em janeiro, e haverá neve na rodovia quando eu chegar ao norte da Área da Baía; não é um bom momento para voltar para a cabana no lago. Eu deveria esperar até o verão; afinal de contas, não sou lá um motorista muito bom. Mas meu carro é dos bons; um Capri vermelho quase novo. E então, quando acordo, percebo que estou vivendo num apartamento no sul da Califórnia sozinho. Não tenho esposa. Não existe aquela casa, com o quintal e o muro alto com trepadeiras e rosas. O que é mais estranho ainda: não só não tenho uma cabana no lago ao norte como também não existe nenhum lago assim na Califórnia. O mapa que seguro mentalmente durante meu sonho é um mapa falso; ele não mostra a Califórnia. Então, que Estado ele mostra? Washington? Existe uma grande massa de água ao norte de Washington; já sobrevoei na ida e na volta para o Canadá, e já visitei Seattle certa vez.
Quem é essa esposa? Não apenas sou solteiro, como nunca fui casado nem jamais vi essa mulher. Mas nos sonhos eu sinto um profundo, confortável e familiar amor por ela, o tipo de amor que só cresce com a passagem de muitos anos. Mas como é que eu sequer sei disso, já que nunca senti um amor assim por ninguém?
Ao me levantar da cama – estava tirando um cochilo no finzinho da tarde -, entro na sala de estar do meu apartamento e sou atingido de imediato pela natureza sintética da minha vida. Som estéreo (sintético); aparelho de televisão (este é certamente sintético); livros, uma experiência de segunda mão, pelo menos comparada com dirigir subindo a estrada estreita de terra que margeia o lago, passando por baixo dos galhos das árvores, finalmente chegando à minha cabana e o lugar onde estaciono. Que cabana? Que lago? Consigo até mesmo me lembrar de ter sido levado até lá orginalmente, anos atrás, por minha mãe. Agora, às vezes, vou por via áerea. Existe um vôo direto entre o sul da Califórnia e o lago… a não ser por alguns quilômetros depois do campo de pouso. Que campo de pouso? Mas, acima de tudo, como é que eu consigo suportar a vida artificial que levo aqui neste apartamento de plástico, sozinho, especificamente sem ela, a mulher magra de blue jeans?”
Trecho de Valis, de Philip K. Dick
Trecho | A onipotência do acaso
“Desde o momento em que redescobriu o milagre de uma noite bem dormida, em que foi necessário uma enfermeira acordá-lo para o café da manhã, Axler começou a sentir que o pavor diminuía. Haviam-lhe ministrado um antidepressivo a que ele não se adaptou, depois tentaram outro medicamento, e por fim um terceiro que não tinha nenhum efeito colateral insuportável, mas se aquilo lhe fazia bem ou não, ele não sabia. Não conseguia acreditar que aquela melhora tinha alguma coisa a ver com os remédios ou as consultas psiquiátricas, com a terapia de grupo ou a arteterapia; tudo isso lhe parecia uma perda de tempo. O que continuava a assustá-lo, à medida que se aproximava o dia da alta, era que nada do que estava acontecendo com ele parecia ter a ver com coisa alguma. Como dissera ao dr. Farr, ele havia perdido sua magia de ator sem nenhum motivo, e era também de modo igualmente arbitrário que a vontade de dar fim à própria vida começou a diminuir, pelo menos por ora. “Nada que acontece tem motivo”, disse ele ao médico mais tarde naquele mesmo dia. “A gente perde, a gente ganha – é tudo acaso. A onipotência do acaso. A probabilidade de um revés. Isso, o imprevisível revés e seu poder.”
Trecho de A humilhação, de Philip Roth.
Sobre escrever (e alguns outros dramas)
(Trecho do livro Verão – Cenas da vida na província, de J.M. Coetzee)
Lembro de ter perguntado a John, depois de Dusklands, se ele tinha algum projeto novo no momento. A resposta dele foi vaga. “Tem sempre uma coisa ou outra em que eu estou trabalhando”, ele disse. “Se eu ceder à sedução de não trabalhar, o que eu faria comigo mesmo? Que razão haveria para viver? Eu teria de me matar.”
Aquilo me surpreendeu – a necessidade dele de escrever, eu digo. Eu não sabia praticamente nada dos hábitos dele, como passava o tempo, mas ele nunca me pareceu um trabalhador obsessivo.
“Está falando sério?”, eu perguntei.
“Fico deprimido se não escrever”, ele respondeu.
“Então para que essa reforma sem fim?”, eu perguntei. “Você podia contratar alguém para fazer a reforma da sua casa e dedicar a escrever o tempo que economizaria.”
“Você não entende”, ele disse. “Mesmo que eu tivesse dinheiro para contratar um pedreiro, coisa que não tenho, mesmo assim eu sentiria necessidade de passar X horas cavando o jardim, carregando pedras ou misturando concreto.” E partiu para mais um daqueles discursos dele sobre a necessidade de derrubar o tabu sobre trabalho braçal.
Eu me perguntei se não havia uma certa crítica a mim pairando no ar: que o trabalho pago da minha empregada negra me deixava livre para ter casos com homens estranhos, por exemplo. Mas deixei passar. “Bom”, eu disse, “você sem dúvida não entende de economia. O primeiro princípio da economia é que se todos insistíssemos em fabricar nosso próprio fio e ordenhar nossas próprias vacas em vez de empregar outras pessoas para fazer isso por nós, ficaríamos para sempre empacados na Idade da Pedra. Por isso é que nós inventamos uma economia baseada na troca, que por sua vez possibilitou nossa longa história de progresso material. Você paga alguém para assentar o concreto e em troca você consegue tempo para escrever o livro que vai justificar a sua folga e dar sentido à sua vida. Pode até dar sentido à vida do operário que assenta o concreto para você. De forma que nós todos prosperamos.”
“Você acredita mesmo nisso?”, ele perguntou. “Que livros dão sentido às nossas vidas?”
“Acredito”, eu respondi. “Um livro deve ser um machado para abrir o mar congelado dentro de nós. O que mais ele seria?”
“Um gesto de recusa diante da época. Uma aposta na imortalidade.”
“Ninguém é imortal. Livros não são imortais. O globo todo em que pisamos vai ser sugado pelo sol e queimado até virar cinzas. E depois disso o próprio universo vai implodir e desaparecer num buraco negro. Nada vai sobreviver, nem eu, nem você, e com certeza nem a minoria interessada em livros sobre homens da fronteira imaginários da África do Sul do século 18.”
“Eu não quis dizer imortal no sentido de existir fora do tempo. Quis dizer sobreviver além da própria morte física.”
“Quer que as pessoas leiam seus livros depois que você morrer?”
“Me dá alguma consolação contar com essa perspectiva.”
“Mesmo você não estando mais aqui para saber?”
“Mesmo eu não estando mais aqui para saber.”
“Mas por que as pessoas do futuro deveriam se dar ao trabalho de ler o livro que você escreve se ele não disser nada a elas, se não ajudar as pessoas a encontrar um sentido para a vida delas?”
“Talvez elas ainda gostem de ler livros que são bem escritos.”
“Isso é bobagem. É a mesma coisa que dizer que se eu fizer uma radiovitrola muito boa ela ainda vai estar sendo usada pelas pessoas no século 25. Mas não vai. Porque uma radiovitrola, por mais benfeita que seja, vai estar obsoleta. Não vai significar nada para as pessoas do século 25.”
“Talvez no século 25 ainda exista uma minoria com curiosidade para saber como soava uma radiovitrola do final do século 20.”
“Colecionadores. Gente que tem hobby. É assim que você pretende passar a sua vida: sentado na sua mesa manufaturando um objeto que pode ou não ser preservado como curiosidade?”
Ele deu de ombros. “Tem alguma ideia melhor?”