Literatura

Trecho | Uncool

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“Quando falava com os filhos, Keith percebia que cool, legal, era absolutamente o único sobrevivente do léxico de sua juventude. Seus filhos usavam a palavra, suas filhas a usavam, mas a palavra tinha perdido sua conotação de graça-sob-pressão e queria dizer apenas bom. De forma coerente, ele nunca ouvia o seu antônimo: uncool.

Para alguém nascido em 1949, a palavra traz dificuldades adicionais. Envelhecer é muito uncool. Bolsas nos olhos e rugas são muito uncool. Aparelhos auditivos e andadores são muito uncool. Cemitérios são uncool demais.”

Trecho de A viúva grávida, de Martin Amis

House of balloons | The Weeknd

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“Saiam da sala!”, nossa professora ordenava, num tom irônico de madrasta malvada, quando nos passava os exercícios que exigiam total concentração. Era engraçado. Não conheci outra que odiasse tanto a sala de aula: para essa senhora de rosto quadrado e centenas de dentes, as melhores ideias surgiam lá fora.

E, se bem lembro, os meninos e as meninas quase nunca estávamos entre quatro paredes. Sempre sentados no canto da quadra esportiva, nos corredores, perto da lanchonete, no canteiro lisérgico (coloridíssimo) da pré-escola. Caderno, lápis e oxigênio. Não é por pouco que sinto tanta saudade da minha sétima série, da professora de português, da arquitetura vazada do colégio, do cheiro de tinta fresca que eu reconheceria se o prédio ainda estivesse de pé. Não está.

O importante para este texto, antes que eu me perca, tem a ver com uma dessas lições ao ar livre. Era um exercício simples: teríamos que observar a paisagem e escrever um parágrafo em primeira pessoa. Moleza. Levei 15 minutos para cumprir a tarefa, entreguei a folha e fui comer um salgadinho na cantina.

Antes que eu devorasse a coxinha de galinha, porém, a mulherona quadrada apareceu no refeitório. “Tiago, o que é isto?”, e ela parecia intrigada. Não entendi o motivo do espanto e suspeitei que eu não tivesse compreendido a lição. Será que troquei as bolas? Será que escrevi o que não devia? Será que tropecei em alguma proibição secreta? A coxinha esfriava.

“Me explique isto aqui, Tiago: ‘O dia está bonito, o sol brilha com muita força…” (e, enquanto ela recitava meu parágrafo infeliz, eu lamentava mentalmente o textinho absolutamente ordinário; mas era tudo o que eu conseguia naquele momento, naquelas condições, me perdoe) “… e as crianças brincam na pista asfaltada que dá para a W3. O vento brinca com os meus cabelos, que caem na minha testa e tampam minha visão.” Nesse momento, ela parou.

Fiquei esperando o restante, o fim da punição. Era um texto vergonhoso, eu sabia. Ficaria pior. Mas ela interrompeu a leitura e ficou admirando meu rosto – que, por sua vez, admirava um ponto de interrogação invisível.

“O que você quis dizer com isso, Tiago?”, ela quis saber.

“Não sei sobre o que cê ta falando, tia”, eu desconversei.

“O vento brincou com seus cabelos, foi? Os seus cabelos caíram na sua testa, foi? Mas que cabelo, Tiago? Que cabelo?”

(naquela época, eu pedia para que o barbeiro caprichasse na máquina 4).

Não havia muito cabelo, é verdade.

Eu poderia ter arrumado várias explicações para a minha licença poética, mas nenhuma seria aceitável. Então, no desespero, saquei uma resposta que me surpreendeu:

“Não sou eu aí no texto, tia. É meu eu-lírico”.

A explicação deu tão certo, colou tão bem colada que, daí em diante, a professora me adotou como aluno favorito. Eu, o número 1, parecia entender os mistérios da literatura. Eu, o especial, sabia me mover no pântano da ficção.

É claro que eu era nadaa daquilo. Eu tinha 12 anos. Eu escrevia bobagens. Eu era um farsante, um sortudo, um joguete do destino. Mas a reação entusiasmada da professora acabou me ensinando que devemos desconfiar dos textos escritos em primeira pessoa (e dos pré-adolescentes com crises de autoestima). Eles mentem. Eles trapaceiam. Eles nos engabelam.

Pois bem.

Lembrei dessa historinha tola quando procurei (e não encontrei) informações sobre o The Weeknd, a “banda” (deveríamos chamá-lo assim?) que está grudada na barra da saia do meu iTunes há algumas semanas, feito menino órfão. Ela não quer, não vai me abandonar enquanto eu não a adote para sempre.

O que me atrai nessa narrativa em primeira pessoa chamada House of balloons é o quanto ela parece pouco confiável. Uma grande mentira, certo? Tudo o que dizem sobre o The Weeknd é o dono do projeto atende por Abel Tesfaye. Ele é canadense. E o Drake, nosso herói sentimental do R&B, curte tweetar elogios para o sujeito.

Se você fuçar um pouco mais no Google, porém, vai descobrir que o terreno é mais movediço. Há quem diga que Abel é o pseudônimo de alguém conhecido, um rapper famoso ou quase-famoso. Há quem diga que ele não é canadense. Há quem diga que ele é um personagem de ficção. Boatos. Intrigas. Folhetim.

Por mim, tanto fez. Sinceramente. A obscuridade do The Weeknd (cuja mixtape House of balloons foi lançada de graça na web e, note a ironia da coisa, é tão coesa que não parece em nada com aquilo que entendemos por mixtape) conta como um fator de interesse, um elemento de suspense. É. Nada é o que parece ser (a menos que alguém comprove o contrário). Tenho centenas de razões para assegurar que o personagem principal das músicas não é o autor dessas canções.

O menino de cabelos longos, vocês sabem, era e não era eu.

As nove faixas desse disco são narradas por um homem noturno, febril, lascivo, que se pendura de balada em balada como um animal eternamente faminto, empapuçado de dólares, álcool e cocaína. “Confie em mim, garota. Você quer ficar alta com isso”, ele promete, já na faixa de abertura. E depois tem mais: “Ele é quem você quer. Eu sou quem você precisa.” O Don Juan veste Prada.

Nesta mixtape, o mundo é observado através da percepção turva desse narrador-rimbaudiano: já na primeira música, ele soa entediado. É muito dinheiro, e “o dinheiro é o motivo” (em The morning). “Você trás as drogas e eu levo a minha dor”, ele avisa (em Wicked games). A festa começa, a festa termina, e o que resta é a sensação de que estamos congelados num plano em preto-e-branco, sob luzes frias. Tudo se move e estamos um pouco tontos e tristes.

Ouço o disco duas, três vezes, e a impressão me parece definitiva (ainda que não seja): esse narrador totalmente confiante, solto no mundo, violento e estilhaçado, não poderia ter escrito canções tão simétricas, elegantes, calculadas, que equilibram lindamente hip-hop, soul music e goth rock e parecem (isso sim) ter nascido após dezenas de madrugadas perdidas dentro de estúdios de gravação.

Eu apostaria que Abel é tão nerd, tão branquelo e frágil quanto os meninos do The XX ou quanto James Blake. Não apostaria que é um bom vivant movido por instinto e estrondo (mas posso estar errado; e a graça, meus amigos, está nesse mistério).

House of balloons é um disco de detalhes reluzentes, e um trechinho dele (talvez o mais brilhante) explica por que ele só poderia ter sido criado por um produtor muito sóbrio e obsessivo: a forma absolutamente precisa como o sampler de Happy house, da Siouxsie and the Banshees, é adaptado no refrão da faixa título. Nada menos que sublime (e há um trecho de Beach House igualmente arrepiante).

Ou a forma como a entonação de Abel em The morning – sussurros para uma noite maldormida – acaba contradizendo (ou, pelo menos, assombrando) versos sobre dinheiro e farra. “Eu faço essas paredes vibrarem como se estivessem grávidas de seis meses”, ele promete. Mas soa como se as paredes o ameaçassem– e elas desabam.

O enigma engrandece, alarga, enevoa o disco (da mesma forma como os segredos do Belle and Sebastian tornavam If you’re feeling sinister um álbum muito mais saboroso; nos sentíamos à vontade para moldá-lo da forma como bem entendêssemos) até transformá-lo, por fim, numa obra de ficção muito bem engendrada.

Percebo o personagem-narrador e noto o autor, que nos acena com melodias, arranjos, samplers e um trabalho de produção delicadíssimo, de sensibilidade incomum, sinistro e emotivo em igual medida.

Outro dia, vimos aqui em Brasília um filme brasileiro, O céu sobre os ombros, que parte do princípio de que os atores devem interpretam eles próprios. É um curto-circuito de ficção e documentário: os atores escolhem episódios do próprio cotidiano, que serão encenados para o filme. Numa das cenas, uma personagem transsexual, prostituta, transa com um “cliente” dentro do carro, diante de um semáforo. Não fica claro, no filme, se o sexo ocorreu de verdade ou se foi encenado. As imagens apenas sugerem: o espectador que se vire com elas.

Ao fim de sessão, uma repórter não resistiu e, curiosa para vencer as barreiras impostas pelo filme, foi perguntar à transsexual se a cena havia sido encenada ou não. Ao que ela veio com uma resposta ainda mais intrigante: “Foi tudo totalmente ensaiado”, ela disse. E arrematou: “Contratamos um ator pornô, fomos à rua, transamos de verdade, mas ele nem gozou. Tudo ficção.”

Minha professora de português, estou certo, entenderia.

Primeiro disco do The Weeknd. Nove faixas, com produção de Don McKinney e Illangelo. Independente. Baixe em www.the-weeknd.com. 8.5/10

Trecho | A parte dos críticos

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“Ela se perguntava (e de passagem perguntava a eles) até que ponto alguém pode conhecer a obra de outro.

– Eu, por exemplo, adoro a obra de Grosz – disse indicando os desenhos de Grosz pendurados na parede -, mas conheço realmente sua obra? Suas histórias me fazem rir, em certos momentos creio que Grosz desenhou para que eu risse, por vezes o riso se transforma em gargalhada, e a gargalhada num ataque de hilaridade, mas uma vez conheci um crítico de arte que gostava de Grosz, é claro, mas que ficara deprimidíssimo quando via uma retrospectiva da sua obra ou por motivos profissionais tinha de estudar alguma tela ou desenho dele. E essas depressões ou esses períodos de tristeza costumavam durar semanas. Esse crítico de arte era amigo meu, mas nunca havíamos tocado no tema Grosz. Uma vez, porém, lhe contei o que acontecia comigo. No início ele não podia acreditar. Depois pôs-se a sacudir a cabeça de um lado para o outro. Depois olhou para mim de alto a baixo, como se não me conhecesse. Pensei que ele tinha enlouquecido. Rompeu sua amizade comigo para sempre. Faz pouco me contaram que ele ainda diz que eu não sei nada de Grosz e que meu gosto estético é igual ao de uma vaca. Bem, por mim pode dizer o que quiser. Eu rio com Grosz, ele se deprime com Grosz, mas quem realmente conhece Grosz?

– Suponhamos – continuou a senhora Bubis – que neste momento batam na porta e apareça meu velho amigo, o crítico de arte. Ele senta aqui, no sofá, a meu lado, e um de vocês saca um desenho sem assinatura e nos garante que é de Grosz e que deseja vendê-lo. Olho o desenho, sorrio, tiro o meu talão de cheques e compro. O crítico de arte examina o desenho, não se deprime e tenta me fazer mudar de ideia. Para ele não é um desenho de Grosz. Para mim é um desenho de Grosz. Qual dos dois tem a razão?

– Ou formulemos a história de outro modo. O senhor – disse a senhora Bubis apontando para Espinoza – saca um desenho sem assinatura e diz que é de Grosz e tenta vendê-lo. Eu não rio, observo-o friamente, aprecio o traço, o pulso, a sátira, mas nada no desenho estimula meu deleite. O crítico de arte o observa cuidadosamente e, como é natural dele, fica deprimido e ato contínuo faz uma oferta, uma oferta que supera suas economias e que, se aceita, o mergulhará em longas tardes de melancolia. Tento dissuadi-lo. Digo que o desenho me parece suspeito porque não me provoca o riso. O crítico me responde que já era hora de eu enxergar a obra de Grosz com olhos de adulto e me felicita. Qual dos dois tem a razão?”

Trecho de 2666, de Roberto Bolaño.

Trecho | A onipotência do acaso

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“Desde o momento em que redescobriu o milagre de uma noite bem dormida, em que foi necessário uma enfermeira acordá-lo para o café da manhã, Axler começou a sentir que o pavor diminuía. Haviam-lhe ministrado um antidepressivo a que ele não se adaptou, depois tentaram outro medicamento, e por fim um terceiro que não tinha nenhum efeito colateral insuportável, mas se aquilo lhe fazia bem ou não, ele não sabia. Não conseguia acreditar que aquela melhora tinha alguma coisa a ver com os remédios ou as consultas psiquiátricas, com a terapia de grupo ou a arteterapia; tudo isso lhe parecia uma perda de tempo. O que continuava a assustá-lo, à medida que se aproximava o dia da alta, era que nada do que estava acontecendo com ele parecia ter a ver com coisa alguma. Como dissera ao dr. Farr, ele havia perdido sua magia de ator sem nenhum motivo, e era também de modo igualmente arbitrário que a vontade de dar fim à própria vida começou a diminuir, pelo menos por ora. “Nada que acontece tem motivo”, disse ele ao médico mais tarde naquele mesmo dia. “A gente perde, a gente ganha – é tudo acaso. A onipotência do acaso. A probabilidade de um revés. Isso, o imprevisível revés e seu poder.”

Trecho de A humilhação, de Philip Roth.

2 ou 3 parágrafos | Os homens que não amavam as mulheres

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O primeiro filme da trilogia Millennium, escrita pelo jornalista sueco Stieg Larsson, é o mais novo produto de uma engenhoca programada para confeccionar adaptações de sucessos literários. A conhecemos bem. É um fenômeno industrial. Para não danificar a máquina, recomenda-se atenção às instruções: misture a trama do livro com atores minimamente competentes, adicione um diretor qualquer e o resultado (medíocre, mas eficiente) não vai ferir o paladar do sujeito que pagou ingresso para não ser surpreendido. 

Niels Arden Oplev, o cineasta de encomenda, tem um histórico de séries de tevê e, por isso, deve ter se preparado para o fato de que este filme não pertenceria a ele, mas sim aos roteiristas, aos produtores e, bem acima deles todos, ao próprio Stieg Larsson – que já morreu e, por isso, não teve direito a opinar sobre o resultado. A prosa de Larsson é cristalina e fluente, com flashes de elegância e algum comentário social (o livro, um thriller à Agatha Christie muito envolvente, dá um beliscão no jornalismo econômico medroso e bajulador que se pratica à rodo por aí). A direção de Oplev é, quando muito, genérica. Mas aposto que boa parte do público vai gostar de um filme em que muita coisa acontece.

No livro, Larsson criou um par de heróis que faria estragos se transferidos para uma série de tevê produzida pela HBO (e conduzida por David Lynch, sonhar não custa nada). Ele é o jornalista investigativo, birrento, mulherengo. Ela é a hacker incendiária, dissimulada, com um passado misterioso. O livro vem até com um mapa, para nos localizarmos na vizinhança da ilhota congelada onde se dá o mistério. O que mais me interessou no filme foi ver “as figuras”: as paisagens, a cor da ilha (um cinza-claro meio morto), os casarões decadentes. De resto, Os homens que não amavam as mulheres (2.5/5) se contenta em ser apenas um apêndice do best-seller. Cinema â mercê de literatura. E outras bobagens.

Black and Blue

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“Mas por que então se sente tão insatisfeito, tão incomodado com o que escreveu? Diz para si mesmo: o que aconteceu não é na verdade o que aconteceu. Pela primeira vez em sua larga experiência de redigir relatórios, Blue descobre que as palavras não funcionam necessariamente, é possível que elas obscureçam as coisas que estão tentando dizer. Blue olha em torno do quarto e fixa a atenção em vários objetos, um após o outro. Vê o abajur e diz para si mesmo: abajur. Vê a cama e diz para si mesmo: cama. Vê o caderno e diz para si mesmo: caderno. Não vai dar certo chamar o abajur de cama, pensa ele, ou a cama de abajur. Não, essas palavras vestem com perfeição as coisas que denominam e, no instante em que Blue as pronuncia, experimenta uma satisfação profunda, como se tivesse acabado de provar a existência do mundo. Em seguida, olha para o outro lado da rua e vê a janela de Black. Está escura, agora, e Black está dormindo. Este é o problema, diz Blue para si mesmo, tentando encontrar um pouco de coragem. Isto e nada mais. Ele está lá, mas é impossível vê-lo. E mesmo quando o vejo, é como se as luzes estivessem apagadas.”

Paul Auster, em Fantasmas (em A trilogia de Nova York). Ao som de Our Hell, de Emily Haines & The Soft Skeleton.

Crash, o filme, por J.G. Ballard

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crash

“O filme Crash, de David Cronenberg, foi lançado no Festival de Cannes em 1996. Foi o filme mais polêmico do festival, e a controvérsia continuou durante anos, em especial na Inglaterra. Políticos do Partido Conservador desesperados, prevendo a derrota nas eleições gerais iminentes, atacaram o filme tentando ganhar créditos como guardiões da moral e da decência pública. Uma ministra, Virgínia Bottomley, pediu que o filme (que ela não tinha visto) fosse proibido.

O Festival de Cannes é um extraordinário evento de mídia, capaz de intimidar profundamente um reles romancista. É possível que os livros ainda sejam lidos em grandes números, mas os filmes são objeto de sonho. Eu e Claire (esposa de Ballard) ficamos assombrados com as multidões aos gritos, as festas suntuosas, as limusines exageradas. Participei de todas as entrevistas publicitárias do filme e fiquei impressionado ao ver como os astros do filme estavam comprometidos com a elegante adaptação do meu romance feita por David Cronenberg.

Eu estava sentado ao lado da atriz principal, Holly Hunter, quando se aproximou um importante crítico de cinema de um jornal americano. Sua primeira pergunta foi: “Holly, o que você está fazendo nessa merda?” Holly saltou da cadeira e partiu para uma apaixonada defesa do filme, acabando com esse crítico por seu provincianismo e sua mentalidade estreita. Foi a melhor atuação do festival, e aplaudi vigorosamente.

Em poucas semanas o filme estreou na França, com muito sucesso, e depois passou a ser exibido em toda a Europa e no resto do mundo. Na América houve problemas quando Ted Turner, que controlava a distribuidora, achou que Crash poderia ofender a decência pública. É interessante notar que na época ele era casado com Jane Fonda, que reanimou sua carreira representando o papel de prostitutas (como em Klute) ou fazendo malabarismos nua em uma nave espacial forrada de peles (em Barbarella).

Na Inglaterra o lançamento foi retardado por um ano quando as autoridades de Westminster o proibiram de ser exibido no West End de Londres, e várias municipalidades do país seguiram o exemplo. Mas quando o filme por fim estreou não houve nenhum desastre de carro tentando imitá-lo, e a polêmica acabou morrendo. David Cronenberg, um homem muito inteligente e profundo, ficou completamente perplexo com a reação dos ingleses. “Mas por quê?”, ele vivia me perguntando. “O que está acontecendo por aqui?”

Depois de cinquenta anos morando no país, eu não tinha resposta alguma para lhe dar, nem de longe.”

***

A coincidência: antes de ler esse trecho da autobiografia de Ballard, Milagres da vida (que é fantástica, recomendo), pensei muito em Crash enquanto assistia ao Confissões de uma garota de programa, do Steven Soderbergh. Faz muito tempo que não vejo o do Cronenberg (um dos meus favoritos dos anos 90), mas tudo o que o Soderbergh tenta encenar (relações afetivas frias/mecânicas/despaixonadas) não chega nem perto das minhas lembranças daquele outro filme, de como Cronenberg foi fundo no mal-estar de uma época. Crash me perturba até hoje – o filme até mais que o livro. E talvez todo o problema do cinema de Soderbergh (ou pelo menos o que me incomoda nele) esteja aí: no medo de dar um passo para fora da zona de conforto e arriscar seriamente.

Pessoas feitas de palavras

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“Já estamos entendendo errado as pessoas antes mesmo de encontrá-las, enquanto ainda estamos prevendo o que vai acontecer; entendemos errado enquanto estamos diante delas; e depois vamos para casa e contamos a alguém sobre o encontro, e de novo entendemos tudo errado. Uma vez que a mesma coisa acontece com os outros em relação a nós, tudo vira uma ilusão desnorteante, destituída de qualquer percepção, uma espantosa farsa de incompreensões. E, com tudo isso, o que é que vamos fazer a respeito dessa questão profundamente significativa que são as outras pessoas, que se veem drenadas de toda a significação que julgamos ser a delas e adquirem, em vez disso, um significado burlesco, o que vamos fazer se estamos tão mal equipados para distinguir os movimentos interiores e os propósitos invisíveis uns dos outros? Será que todo o mundo devia trancar a porta de casa e ficar quieto, isolado, como fazem os escritores solitários, em uma cela a prova de som, invocando as pessoas por meio de palavras e depois sugerindo que essas pessoas feitas de palavras estão mais próximas das coisas reais do que as pessoas reais que deturpamos todos os dias com a nossa ignorância? Persiste o fato de que entender direito as pessoas não é uma coisa própria da vida, nem um pouco. Viver é entender as pessoas errado, entendê-las errado, errado e errado, para depois, reconsiderando tudo cuidadosamente, entender mais uma vez as pessoas errado. É assim que sabemos que continuamos vivos: estando errados. Talvez a melhor coisa fosse esquecer se estamos certos ou errados a respeito das pessoas e simplesmente ir vivendo do jeito que der. Mas se você é capaz de fazer isso… bem, boa sorte.”

Pastoral americana. 1997. Página 48. Philip Roth. Para, como de hábito, me mostrar que sou um nada.