Leve decepção
Everything in between | No Age
Digamos que você, leitora deste blog, saiu para dançar com as suas amigas e acabou conhecendo uma pessoa especial. Por volta das três da madrugada.
Ele, a tal pessoa especial, tem uma tatuagem engraçada no ombro, usa umas costeletas bem aparadas, não cheira a perfume de cinco reais, soa misterioso (mas não ameaçador), tem uma boa pegada, é másculo (mas não tosco), é inteligente (mas não esquisito) e conhece algumas das músicas que você gosta de ouvir.
Isso é, infelizmente, tudo o que você consegue lembrar daquela madrugada.
Não consta na sua memória, no entanto, o momento em que você ditou o seu número de telefone para ele. No dia seguinte, ele liga. Vocês marcam um outro encontro. Desta vez, pela manhã. Acertam um passeio no parque ou em algum outro lugar cheio de pessoas e cachorros.
Enquanto toma banho, você ainda pensa: talvez teria sido melhor preservar a lembrança de uma noite perfeita a arruiná-la com um encontro diurno medíocre. Mas entende que os encontros diurnos medíocres são inevitáveis quando se conhece pessoas especiais às três da madrugada.
No parque, você confirma as suspeitas. Descobre que se encantou por um sujeito não exatamente raro: a tatuagem engraçada era um símbolo oriental, o papo não soa tão enigmático e, no fim das contas, ele conhece poucas das músicas que você gosta de ouvir. Mas, com o tempo, você passa a se afeiçoar por uma pessoa talvez mediana, talvez cheia de imperfeições visíveis à luz do dia, mas que talvez a conquiste com o passar do tempo, de uma forma menos transcendental e mais concreto.
Você volta para casa frustrada porém esperançosa. E, digamos, começa a ouvir o disco novo do No Age, Everything in between. Que, de uma forma estranha, parece resumir os acontecimentos daquela manhã.
Ou algo assim.
Como nos relacionamentos amorosos, o rock também é capaz de despertar encanto nos primeiros encontros (quando estamos bêbados e carentes) e de nos obrigar a rever nossas impressões à luz da manhã seguinte.
Resumindo (antes que este blog se transforme num consultório sentimental): Everything in between é o “disco diurno” do No Age. O álbum em que a banda se revela finalmente humana, imperfeita, talvez mundana demais. Nouns, o anterior, era o “disco noturno”.
Nouns era um álbum breve, preciso, nos mostrava apenas os elementos mais sedutores e intrigantes do temperamento da banda (formada por Dean Spunt e Randy Randall): o noise pop cuidadosamente sujo (quase blasé), os espasmos de ambient, as lembranças enternecidas do pré-grunge, a impressão de que o disco caberia bem numa exposição de arte contemporânea (e, de fato, foi parar no MoMA).
Everything in between soa menos turvo. Bem menos turvo, na verdade. É um álbum mais direto, menos enevoado, que abre com três faixas que poderiam ter se tornado hits se o ano de 1991 continuasse pulsando em algum canto da América. Para bom entendedor (e fã do Sonic Youth), é como se o No Age tivesse gravado um Sister e, logo depois, um Goo. Isto é: para nosso azar, eles pularam o Daydream nation.
Mas esse salto do No Age nos revela uma banda mais tangível. É como se, de uma hora para a outra, Dean e Randy se transformassem em vizinhos nossos. Uns chapas muito agradáveis, muito esforçados, mas que não despertariam grande admiração.
Essa “humanização” da banda passa por um processo complicado: a maior parte das músicas se adaptam a modelos mais convencionais de canção (Glitter chega a provocar assombro — com uma produção mais polida, poderia ser usada em séries de tevê) sem abandonar a rispidez sonora e os zunidos percussivos que marcaram os discos anteriores da banda. E as letras apontam para um olhar menos juvenil, mais sóbrio, para “as decepções e os triunfos da vida” (é como eles próprios as explicam, no site da Sub Pop). As faixas ambient ficam escondidas no fim do repertório, meio que ressabiadas.
O próprio disco acaba entregando explicitando essa proposta mais despojada: seja no título (uma forma direta de dizer que o álbum reúne canções gravadas num determinado período, sem ambições conceituais ou algo do tipo), seja na forma como os samplers barulhentos são ‘esculpidos’ em canções mais ou menos triviais. Tudo descomplicado.
É claro que os defensores mais apaixonados (aqueles que se prepararam para encontrar neste disco diurno resquícios do noturno) vão se apegar a esse tom terno, franco. Com repetidas audições (e no volume alto como ouvimos álbuns do Dinosaur Jr), as canções vão mostrando um charme duradouro, talvez um tanto singelo, mas que nos convence de que elas merecem atenção.
Terminamos o disco (e o dia) assim: frustrados porém esperançosos. Era essa a banda por quem nos encantamos? Não. Mas, muito possivelmente, é este o No Age de carne e osso.
Terceiro disco do No Age. 13 faixas, com produção da própria banda. Lançamento Sub Pop. 7/10
The eternal | Sonic Youth
Para algumas bandas, dizer adeus a uma grande gravadora e assinar contrato com um selo independente pode representar algum tipo de ruptura. Não parece ser o caso do Sonic Youth.
Os novaiorquinos nunca se deixaram podar pelo mainstream. Alguns dos álbuns mais espinhosos da carreira, como NYC ghosts & flowers (2000), têm o selo da Geffen. No mais, existe ainda uma enorme diferença entre lançar discos pela Matador Records ou pelo MySpace?
Talvez reste um abismo conceitual, abstrato, entre o que entendemos como mainstream e underground. Mas The eternal, como quase tudo no catálogo do SY, trata de implodir o lugar-comum. Não é o disco “difícil”, experimental, esperado de uma banda que acaba de cortar laços com a grande indústria, esse monstrengo malvadão (tampouco é um CD triplo à Emancipation, do Prince). Talvez soe como um generoso cartão de visitas para não os conhece, já que ecoa muito do que eles fizeram até aqui.
Com 30 anos de carreira, 16 álbuns, projetos experimentais que preencheriam cinco ou seis instalações de arte contemporânea, uma coletânea de greatest hits e, como esquecer?, participações em episódios dos Simpsons e de Gilmore girls, a banda parece ter entrado numa temporada autoreflexiva. Talvez por isso há quem tome The eternal como mero exercício de estilo, enquanto outros se apegam às jams instrumentais de seis minutos de duração. É isso, mas também é aquilo.
Encerrar a fase-Geffen com um coeso “álbum de supercanções” (Rather ripped, em definição de Thurston Moore) hoje me parece uma estratégia usada pela banda para contra-atacar com um disco mais disperso. A segunda faixa, Anti-orgasm, começa com um riff que lembra 100% (um dos maiores hits do grupo), mas segue com um arranjo todo torto, no wave, repleto de citações literárias que nos levam a alguns dos trechos mais enigmáticos de A thousand leaves (1998). As contradições estão no coração das canções.
O que eles preservam do álbum anterior é uma relação mais serena com a própria arte. Quase todos na faixa dos 50 anos de idade (o baixista Mark Ibold, aquisição do Pavement, tem 47), eles manipulam confortavelmente uma sonoridade que, antes transgressora, hoje está na lista de referências da maior parte das bandas de rock (aposto que até do Coldplay). Demorei algum tempo para descobrir o que me incomodava tanto em Rather ripped, e noto que era isso. Nada, absolutamente nada desafiava meus ouvidos.
The eternal não soa tão chapado ou acomodado, ainda que também tome as “marcas registradas” da banda como ponto de partida. As faixas citam poetas e músicos outsiders, os riffs fundem MC5 com krautrock (What we know é quase garage rock, No way seria um arraso em 1994 e os versos podrinhos de Anti-orgasm às vezes parecem paródias de thrash metal) e Kim Gordon continua cantando como quem espreme uma espinha dolorida. É linda a forma como ela vai desaparecendo na paisagem da longa Massage the history (ou como abre o abre furiosamente o álbum com Sacred trickster). Mas nunca parece estar à beira do precipício, testando nosso estômago. Antenna é uma balada doce sobre transmissões de rádio, agradável até nas dissonâncias. Mas cadê o risco?
Nos momentos em que mais de um vocalista divide o microfone (em Leaky lifeboat e Poison arrow, Gordon junta-se a Thurston Moore e Lee Ranaldo num trio), o álbum deixa a impressão de reafirmar os votos do matrimônio, expandir a data de validade da banda. Uma celebração para uma tranquila maturidade. “Tudo o que nós vemos está mais claro”, canta Ranaldo, em Walkin blue. E isso é, de certa forma, novo. Ou pelo menos aparentemente honesto.
Ok, o fã ranzinza aqui terá que se contentar. The eternal soa espontâneo, até leve, despreocupado com tudo (cobranças, expectativas etc). Um passeio no parque temático do Sonic Youth. O que talvez pareça um retrocesso, mas não deixa de ser uma forma digna de deixar a juventude para trás.
Décimo sexto álbum do Sonic Youth. 12 faixas, com produção de John Agnello. Lançamento Matador Records. 7.5/10