Lembranças
We’re new here | Gil Scott-Heron & Jamie xx
Meu primo mais crescido – o primo que imitávamos, o primo que venerávamos, o primo que queríamos ser quando um pouco mais velhos – fazia música. Sim. Não que ele soubesse algo sobre a técnica do violão ou da guitarra (era um vexame até no pandeiro, que todo mundo pensa que sabe tocar), mas entrou para a nossa história como o sujeito das melodias fantásticas, o chapa da ginga, o bacana e o máximo.
Ok, sem rodeios: meu primo era funkeiro.
Funk carioca, manja? Início dos anos 90, ‘o que eu quero é ser feliz’, o som ingênuo e tosco que invadia as festinhas e puxava as meninas para dançar passinhos coreografados. Lembra? Lembra? Eu lembro.
E lembro porque meu primo foi um dos tantos aspirantes a Claudinho, a Buchecha, a MC Qualquer Coisa – no bairro onde morávamos, no Rio de Janeiro, era um sonho que toda uma comunidade de petizes parecia compartilhar. Mas meu primo, como acontecia muito, tombou na pista. Abandonou o batidão para cuidar das três filhas, trocou de esposa duas vezes, trabalhou para encher panelas, até fez de conta que nunca pensou em ser médico, mas tudo isso é outra história e cá estamos fugindo novamente do assunto.
Voltemos ao funk, que este é um post sobre o funk.
Para meninos como eu, o funk não era nada. Era uma brincadeira, no máximo uma boa bobagem, uma distração, uma troça. Ao mesmo tempo, era um mundo. Era uma música, sim, mas não qualquer música. Era uma música que parecia ser nossa, dos garotos da periferia, dos subúrbios, dos bairros pequenos. Parecia brotar dentro dos nossos quartos. E às vezes brotava mesmo.
Testemunhei pelo menos três músicas nascendo – e nascendo de parto normal, na varanda do meu primo. Ele sorridente, malandro, sobrepondo batidas singelas e criando versinhos tolos, depois gravando as camadas e exibindo o mix a meninos perplexos, abismados, estupefatos com a novidade: ‘diga a verdade, primo, foi você quem fez? Você? De verdade?”
Era o barulho de uma revelação. Pedíamos para que ele rodasse a música de novo. A mais ordinária. A mais vazia. A mais barata. E rodava de novo. Mais uma vez, e a danada rodando, grudando nos nossos pensamentos, se instalando para sempre.
Lembro daquela sensação febril. De querer engolir uma música. De querer papar a canção com ketchup, maionese e fritas. De querer tomá-la e não devolvê-la. Roubo. Coisa feia e suja. Um susto. Ouvir os funks ridículos do meu primo – que nem funk eram, meu primo nem sabia quem era George Clinton ou James Brown – fez de mim um devoto da arte pueril e anêmica, que nasce quase por acidente, que não tem valor algum, que nos agride inocentemente. Tudo isso, percebi naquela época, pode ser algo belo.
E (pode parecer uma heresia, mas não consigo evitar) lembro dos funks do meu primo – em frangalhos, ocos, mas, na minha infância, mais inspiradores que a sétima de Beethoven – a quando ouço discos como a estreia de James Blake (meu favorito de 2011, por enquanto) e estes remixes de Jamie xx para Gil Scott-Heron.
Não porque são discos paupérrimos, juvenis – nada mais distante da realidade. Mas porque eles provocam em mim o tipo de entusiasmo ingênuo, de criança, que aquelas aberrações domésticas provocavam. São discos que apontam para nossas fuças e dizem: eu sou um pouco como você; e você, se tivesse um pouco mais de talento, poderia ter me criado.
São álbuns que podem despertar uma intensa impressão de proximidade (ainda que falsa). Existe um quê de motivação punk nesses projetos. Do it yourself. No caso de Jamie xx, ainda mais. Temos aqui um disco incomum de remixes, que só encontra pontos de contato nos mashups de Danger Mouse, especialmente The grey album. Com a arrogância feliz de um adolescente, Jamie desmonta e reinventa o linguajar de Scott-Heron.
Um daqueles discos complicados que soam fáceis, sim. Mais do que isso, um daqueles discos atrevidos, que impõem uma identidade à prática do decalque, do “recortar e colar”. Eu admiro.
Desde a estreia do The xx, Jamie exercita um pop lacunar e sutil. É com essa palheta de cores escuras que ele cria uma atmosfera onde os versos, a fala de Scott-Heron se movimentam e respiram. Isso sem a necessidade de preencher todos os espaços, todas as crateras que marcam as canções do sujeito que, há um ano, lançou o assombrado I’m new here.
Aquele é um disco, aliás, que ainda me perturba um pouco. Não consigo escrever sobre ele, talvez por me parecer autoexplicativo. O que temos é a voz de um velho poeta americano, que viveu muito, que talvez nem esteja mais tão lúcido quanto imaginamos (hematomas expostos) – isso, a voz, as ideias, as lembranças, e quase nada mais. Mas, diante desse retrato saturado, por que cobraríamos mais? (eis a questão). O que o inglezinho Jamie faz é se apropriar desse discurso, desse “personagem”, e inseri-lo num filme. Que poderia se chamar No silêncio da noite.
A exemplo dos álbuns de Blake e do The xx. há uma mise-en-scene noturna, fantasmagórica, ao redor dessas canções. Tal como Blake, Jamie se limita a apontar pequenas variações entre uma faixa e outra, ainda que, aqui, a eletrônica minúscula saia dos limites do dubstep para às vezes soar como a arquitetura de uma colagem do DJ Shadow: camadas de samplers sujos, mofados, colhidos de uma antiga coleção de vinis.
Os três momentos mais diretos do disco, que renderiam singles excelentes, mostram as oscilações de uma obra que, numa primeira audição, soa uniforme (às vezes irritante de tão uniforme; se você cair em tédio, eu entenderei). My cloud, o algodão-doce do parquinho, é trip hop manso, acolchoado. Já NY is killing me mergulha em paranoia, sob chuva de pedras digitais. O disco termina com, I’ll take care of U, uma faixa que leva ao pé da letra um ensinamento de Heron: “Jazz music is dance music”. E não é? Jamie dá uma risada de moleque e entra na pista.
Não dá para dizer que é um disco inventivo, que entusiasma pela originalidade. Que nos leva a recantos desconhecidos. Essas canções, no entanto, têm algo de espontâneo, de lúdico (é apenas música pop, não é nada muito importante, mas essa besteira pode acabar salvando as nossas vidas), que me leva às tardes em que meu primo reunia os meninos na varanda para apresentar a criação da semana. Silêncio total. Três minutos depois, ele deixava de ser gente – e se transformava no nosso herói.
Disco de remixes de Jamie xx, a partir do repertório de I’m new here, de Gil Scott-Heron. Produzido por Jamie xx. Lançamento XL Recordings. 8/10
Os discos da minha vida (25)
A saga dos 100 discos que conheço como a palma da minha mão chega a um capítulo especialmente doméstico. Vamos esfriar a cabeça e conversar sobre família? Só por um minuto?
Sei que há temas muito mais urgentes (questões sobre gagueira em O discurso do rei, para ficarmos num tópico muito quente), mas este ranking já é grandinho e anda com as próprias pernas. Deixem o moleque ser feliz, ok?
Voltando ao tema: família. Os discos de hoje se aninharam na minha vida graças às influências da minha mãe e do meu padrasto. Eu disse que seria uma listinha muito pessoal, certo? Sejam bem-vindos à sala de estar.
Também são discos que, durante a infância, eu detestava até a morte. Detestava até debaixo d’água. Detestava até com cobertura de chocolate. Detestava até com geleia de framboesa. Detestava. Detestava.
E detestava porque eles sempre estavam lá. Eles sempre estavam rodando na vitrola. Produziam ruídos familiares. Acredito até que fui um pouco alfabetizado por eles. Primeiro em português, depois em inglês. Quando comecei a crescer, e a rejeitar tudo o que pertencia aos meus pais, esses dois discos sofreram muito, pobrezinhos.
A redenção veio muito depois, quando eu fiz 20, 25 anos, e voltei aos álbuns que soavam como parte do meu organismo. Fui ouvir os discos a sério e descobri que eles eram velhos companheiros. Irmãos briguentos, mas adoráveis. Irmãos que desaparecem e depois voltam. Irmãos que, quando a gente menos espera, começam a fazer falta.
É esta a história. Vamos a eles, esses bastardos cheios de glória.
052 | Construção | Chico Buarque | 1971 | download
Entre os discos do Chico, não é aquele de que minha mãe mais gosta (de longe, o preferido é Almanaque), mas é aquele que gravei numa fita cassete e levei comigo. Com o tempo, quando abandonei os traumas de infância e me familiarizei com a discografia inteira do homem, descobri aquele que talvez seja o mais valente dos discos brasileiros. Destemido em tudo: nos arranjos épicos de Rogério Duprat (que o aproximam de uma sonoridade tropicalista, impensável nos álbuns anteriores, muito comprometidos com a tradição do samba), em versos que confrontam o regime militar com uma proximidade quase suicida, nas canções que descortinam um país tomado por um certo mal estar (mas um Brasil também infinitamente lírico, vasto). Tudo isso e sim, claro: um disco mais moderno do que 90% do que é gravado hoje no país. As mães, acredite, têm razão. Top 3: Deus lhe pague, Valsinha, Construção.
051 | The dark side of the moon | Pink Floyd | 1973 | download
O disco favorito do meu padrasto sempre me pareceu de uma pompa insuportável. Lembro que, aos 12 anos, eu reclamava sempre que os sinos começavam a soar na sala – e isso acontecia praticamente todo fim de semana. Era o álbum que, na época, representava tudo o que eu queria combater: os enormes monumentos erguidos por meus pais. Eu me trancava no quarto e ouvia grunge, punk rock. Foi muito tempo depois, quando até o meu padrasto parecia ter se cansado do tilintar da máquina registradora (e de outros efeitos especiais), encontrei nas canções o lado obscuro da minha adolescência. O som que batia à porta do meu quarto. Foi como voltar àquelas tardes tão banais: meu padrasto encostado na janela, sugado por melodias que irradiavam de outro planeta. Uma parte da vida também foi engolida por este disco, e aí não importa mais se acho uma grande de uma chatice cósmica (mas fiquem tranquilos: não é). Top 3: Breathe, Us and them, The great gig in the sky.
Superoito contra as fotografias
Sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, sinto sua falta, repeti mentalmente dez ou doze vezes, depois destravei o porta-retrato, dobrei a fotografia e a escondi na menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, sob as meias e os pijamas que quase nunca uso.
Antes, enfrentei a foto mais uma vez – a última, prometi a mim mesmo. Era uma imagem quase singela: eu a abraçava de lado e ela, um pouco sem jeito, curvava o corpo em direção à câmera; eu sorria timidamente, ela parecia feliz; minha camisa era preta e a dela era colorida, apertada no busto; meu cabelo muito curto e o dela também; fazia sol e o céu brilhava em azul-bebê.
O que aconteceu depois? Minhas fotografias não explicam. Elas flagram apenas os nossos instantâneos de alegria, contam uma história incompleta, me maltratam. Notei, talvez tarde demais, que registrei uma versão idealizada do nosso namoro – e ela, essa distorção agradável da realidade, enfeitou minha estante, preencheu a minha sala. Um tipo bonito de ficção.
Amigos dizem que não devo me arrepender de nada. Que não devo sentir culpa. Que não devo pensar no que poderia ter acontecido. Que não devo recordar os planos que foram abandonados. Que preciso esquecer isso e esquecer aquilo. Mas o tempo passa (são dois meses desde a separação) e não consigo: eu ainda me arrependo de tudo, sinto culpa, não esqueço.
Me arrependo, por exemplo, por não ter sido corajoso o suficiente para encerrar o namoro um pouco antes, quando eu estava em vantagem (e é um jogo). Mas às vezes sinto culpa por não ter tomado todas as providências para consertar a nossa crise, renovar o contrato, curar a doença. Há momentos em que olho para o espelho e duvido da minha sanidade. Por que tanta saudade por algo que me fazia tão mal?
Desde o fim do namoro, que durou mais ou menos seis anos, cancelamos todo e qualquer contato. Para ela, não existo (talvez algum vestígio, algum sinal, mas nada muito concreto). Para mim, ela tomou o rumo para outra galáxia (ainda que, masoquista, eu teime em procurar uma ou outra informação em estrelas distantes). E a nossa história deveria terminar aí. Os créditos sobem e as pessoas vão para casa. Mas descobri que sou o homem preso na sala de projeção, assistindo ininterruptamente ao vazio de uma tela branca.
Será que ela sente o que eu sinto? O que acontece do lado de lá?
A ignorância, dizem, é uma bênção. Estou começando a entender o porquê. É a primeira vez que passo por uma separação tão brutal – foi o meu namoro mais longo – e, por isso, tento manter a concentração e a calma. Ajuda, é claro, não saber o que acontece na realidade paralela onde ela vive. Já escrevi sobre isso. Mas tento, se bem que nem sempre consigo, fabricar a aparência de que estou melhorando, que estou seguindo em frente. O cotidiano vai às mil maravilhas, o tempo é santo remédio e sou um sujeito forte, mais resistente do que eu imaginava. Perguntam se estou bem e respondo: melhor a cada dia!
Tento não transformar o caso num drama, já que há tantas coisas mais importantes acontecendo no mundo.
Mas é uma mentira.
Talvez seja algo que passamos de geração a geração: quem se separa tem o direito a se fazer de órfão, de vítima (mesmo quando não há algozes), ganha passe livre para chorar pitangas e pedir asilo a desconhecidos. Mas quando o desespero dessa fase inicial perde o impacto, quando o tempo passa e a performance começa a parecer corriqueira aos olhos da plateia, o processo entra numa etapa ainda mais dolorosa, já que solitária.
Hoje sou eu e as fotografias. Eu contra as fotografias. Elas me entendem, me denunciam mesmo quando tento fugir de todas as memórias que elas ressuscitam. Eu as escondo (as fotos e as memórias) para que eu não as encontre. É um esforço inútil. Procuro a menor gaveta do meu armário, aquela que quase nunca abro, para obrigar que, mais cedo ou mais tarde, eu esqueça todas essas lembranças que permanecem, contra a minha vontade, ainda vívidas.
Elas acabam sumindo? Se sim, cedo ou tarde? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá? Como a história acaba? Existe redenção? Falta muito ou pouco? Estamos quase lá?
Devemos ser realistas, pelo menos por um parágrafo: percebo que, como aconteceu com a temporada mais terrível do meu namoro, minha reabilitação será uma história longa, secreta e desinteressante – um espetáculo enfadonho de tão repetitivo, que inspira textos muito semelhantes aos que já foram escritos; que fracassa antes de entrar em cartaz.
Os discos da minha vida (12)
Diretamente de São Paulo, numa manhã ensolarada de segunda-feira, seguimos com a radiante saga dos discos que se instalaram na minha vida: os pestinhas que, às vezes sorrateiramente, chegaram e ficaram. Os 100 que eu levaria para uma ilha deserta.
Vocês sabem como funciona: os critérios para o ranking são duvidosos, muito pessoais e, por isso, nem adianta ficar pedindo por esse ou aquele disco que talvez tenha marcado a sua vida. Quando terminarmos esta louca viagem em torno do dedão do meu pé, prometo compor uma lista dos álbuns que considero os mais importantes – os que mais admiro. Mas adianto que ela não vai ter muita graça.
Os discos da minha vida é um top 100 ególatra. E isso me deixa um pouco envergonhado. Mas, para não torná-lo totalmente inútil, facilito o atalho a minhas lembranças com links de bons álbuns que, se você não conhece, deveria conhecer. Entenda assim: os links são a recompensa por sua infinita paciência, caro leitor.
Na edição de hoje (por coincidência?), dois discos que nada têm a ver um com o outro. Boa viagem.
078 | Post | Björk | 1995 | download
Post será lembrado como o disco mais lúdico, mais colorido (a capa não mente), mais brincalhão (a palavra em inglês cai melhor: playful) de Björk. Depois dele, o céu da islandesa fecharia em cumulus cinzentos (um cenário de beleza incomum, como no irrepreensível Homogenic). Para mim, no entanto, é um álbum memorável por outro motivo: ele resume o meu amor pelos videoclipes – um sentimento muito típico entre aqueles que viveram a adolescência nos anos 90, auge da MTV. Ouvir o disco é relembrar imagens: a graça naive de It’s oh so quiet, o preto-e-branco mágico de Isobel, o game melancólico de Hyperballad, o surrealismo pateta de Army of me; Spike Jonze e Michel Gondry. Um disco que inspira todas essas cenas inesquecíveis só pode conter, ele próprio, algo de fantástico. Top 3: Isobel, It’s oh so quiet, Hyperballad.
077 | Off the wall | Michael Jackson | 1979 | download
Na minha vida, existe o Michael Jackson da infância (o branquelo marrento de Bad, que embalava os meus seis, sete anos) e o Michael Jackson de uma época em que a música já não me soava tão inocente. Foi nesse período – aos 20, 21 – que eu finalmente descobri Off the wall. Na minha adolescência, Michael era apenas um tipo excêntrico e afetado a ser combatido por meus ídolos. Depois percebi, principalmente nos primeiros discos dele, o menino amaldiçoado (já que imensamente talentoso e solitário) que se ocultava na euforia da disco music sintética. Sabemos como a tragédia termina: mas, em retrospecto, Off the wall continua a me fascinar como um dos ritos de passagem mais bonitos da história do pop: o garoto cresceu e venceu; apenas isso. Soa libertador. Top 3: Rock with you, Don’t stop til you get enough, Burn this disco out.
Os discos da minha vida (3)
Voltamos a apresentar, após um breve intervalo, o ranking sentimental dos 100 discos que viraram a minha vida pelo avesso e não foram embora na manhã seguinte. Não me venham com cobranças de coerência ou bom senso – não desta vez, ok? Com vocês, meus amigos, mais um capítulo de uma incrível saga que começou há duas semanas (possivelmente num dia em que bati a cabeça na porta ou comi cereal estragado) e termina nem-deus-sabe-quando. Voilá.
096 | Summer in Abaddon | Pinback | 2004 | download
Um álbum que, desde 2004, ouço semanalmente, religiosamente. É um mantra. Contém memórias do meu namoro (que se segura firme e forte) e de um dos melhores períodos da minha vida. E talvez nem seja um disco muito bom (mas garanto que ele é, no mínimo, intrigante). A arte do Pinback, aparentemente muito simples (construir, desmontar e reconstruir pequenos fragmentos de melodias, riffs e solos), sempre me impressionou por parecer exata, irretocável. Ouço os discos como quem admira uma cidade de miniaturas onde cada prediozinho se encontra no único lugar onde poderia estar. Mas Summer in Abaddon é especial já que acrescenta um elemento irracional a essa matemática: é como se um rio de lava derretesse lentamente essa cidadezinha e nos devorasse junto. Desta vez, a emoção venceu. top 3: Fortress, Bloods on fire, AFK.
095 | #1 Record | Big Star | 1972 | download
Quando comecei a juntar as peças desta lista, prometi a mim mesmo que não incluiria tantos discos de power pop. Mas cá estou me traindo, e logo de começo: não há como subestimar esse tipo de belezura (que, especialmente no lado B, soa tão pungente quanto os momentos mais pungentes dos Beatles e do Beach Boys, acredite em mim). Mesmo quando a belezura em questão me leva a um período terrível, em que eu era um rapazinho solitário que ficava no meu quarto remoendo amores platônicos por meninas impossíveis. That 90’s show. Mas passou. Hoje, ele soa como pop perfeito sobre sentimentos por vezes sangrentos: amor adolescente, nostalgia, pequenos prazeres, decepções e, claro, pôr do sol. “É ok olhar lá para fora”, eles avisam. Siga o conselho. top 3: Thirteen, Watch the sunrise, Feel.
The suburbs | Arcade Fire
As tardes na minha quadra eram as tardes mais silenciosas.
Eu chegava da escola e ficava deitado na cama olhando para o teto. Nenhum barulho.
Eu voltava da rua e ficava deitado na cama olhando para o teto. Nada.
Eu adoecia e passava o dia inteiro deitado na cama olhando para o teto. E a quadra lá embaixo.
Teve o dia em que eu me ajoelhei na cama para olhar da janela as crianças brincando de basquete lá embaixo. Eu morava no terceiro andar e raramente descia.
E o silêncio. Teve aquele dia em que o garoto (que eu não conhecia) gritou “o mundo tá acabando!”, e depois contaram aos vizinhos que ele era louco. Não se preocupem que ele é louco, o garoto, o coitado do garoto, o mundo não está acabando, sem grilo, ele é louco.
E o início da minha adolescência foi assim: silêncio, silêncio, silêncio, loucura (dos outros), silêncio (da quadra).
Então não acontecia quase nada. Eu e as minhas centenas de atividades, mas o que ficou foi a lembrança daquela quadra silenciosa. Daí que, em vez de pular da janela, eu ficava escrevendo. E lendo: Salinger, Goethe, Conta comigo, O senhor das moscas e outros livros sobre meninos prontos para pular da janela (no caso de O senhor das moscas, acho que nem havia janela, havia?).
Depois cresci e lamentei – quanto tempo perdido! Vivi intensamente dentro dos meus livros e dos meus discos e dos filmes e da minha cabeça. Como se isso tudo bastasse (não bastava). Wasted hours. Eu era um menino tão melancólico que, quando lembro, quase dói.
Passei este fim de semana ouvindo The suburbs, o terceiro disco do Arcade Fire, e foi como se eu tivesse sido atirado novamente àquele estado de espírito, àquela cama, àquele quarto, àquele apartamento, àquele prédio e àquela quadra silenciosa. Perdão, amigos: este é um texto mais pessoal do que vocês gostariam.
Desconfio que seja um álbum poderosíssimo para meninos e meninas melancólicos. Perigoso, até (como O apanhador no campo de centeio é, sim, um perigo, estive lá!). Eu, que já estou noutra (e hoje sou um adulto quase seguro de mim mesmo, quase saudável, quase pronto para ter um filho e mudar o mundo), o admiro como uma obra sobre um período, sobre uma fase da vida, um disco que consegue se aproximar dos sentimentos de quem cresce trancafiado em quadras silenciosas (no caso mais específico do disco, em subúrbios confortáveis, organizados e medonhos).
Os personagens têm tudo e não têm nada, têm tudo e ainda não sabem o que querem, têm todo o silêncio do mundo à disposição. E não se movem (apesar do desejo intenso, quase louco, por movimento, por ruptura, por uma vida diferente). “Nós costumávamos esperar por um tempo que nunca chegou”, resume Win Butler, nosso narrador-protagonista, amargo e desiludido e olhando para o teto.
No álbum de estreia do Arcade Fire, Funeral, de 2004, a morte acendia e apagava as luzes da vizinhança – era a ameaça que varria o cotidiano, e ela estava lá. Neon bible, de 2007, era uma viagem a um mundo de pesadelos (e de goth rock oitentista, meio maçante e tedioso). Menos surreal, The suburbs soa como uma continuação dos temas de Funeral, mas com uma diferença cruel: em Funeral, a tristeza era provocada pela perda de pessoas queridas. Em The suburbs, o desespero aparece com a dificuldade de seguir com a vida, de escolher um futuro, de pegar as chaves do carro e sair.
“Quando as primeiras bombas caíram, nós já estávamos entediados”, explica Butler, na faixa-título (que praticamente resume o universo do disco). E continua: “Os meninos querem ser durões. Mas nos sonhos estamos ainda gritando.” E continua: “Todos os muros que eles construíram nos anos 70 finalmente caíram. Eles não significaram absolutamente nada.”
E (que pancada!) é só o começo de um álbum que vai à estratosfera sem sair do quarto.
Butler é dos nossos: acompanha os personagens com a autoridade de quem viveu sensações parecidas (e quem não viveu?). Desde a primeira música, estamos com ele. Não há movimentos em falso. Desta vez, o Arcade Fire nos ganha por uma questão de cumplicidade. A banda está do nosso lado (está no nosso mundo) mesmo antes de decidirmos se queremos ou não acompanhá-la. Butler canta para a própria geração, para os meninos e meninas da América (e do Canadá, e da minha quadra silenciosa). Canta para uma multidão que provavelmente retribuirá em estádios lotados e com olhos cheios de lágrima.
É esse tipo de disco.
E o que ainda me impressiona (e já ouvi o álbum mais de uma dezena de vezes) é como esse laço que a banda cria com o público acaba por anular quase todas as fraquezas do disco. E (como não?) há fraquezas. É um álbum excessivamente longo, para começo de conversa. Que deixa a impressão de que três ou quatro faixas poderiam ter virado lados B de singles. É um álbum musicalmente conservador – que, no máximo, arrisca alguma combinação de Bruce Springsteen com Brian Eno e David Bowie fase Low (e quem fez isso recentemente? Quem? Quem? Cold-o-quê?). É uma dessas óperas-rock que não vão longe demais.
(Aliás, é curioso que Butler tenha falado nos “muros dos anos 70”, já que este disco inteiro parece criado com tijolinhos do rock dos anos 70, do punk de Month of may ao prog de Suburban wars ao soft rock de Modern man ao stadium rock de City with no children e ao clima new-wave de Mountains beyond mountains, que é quase uma versão lo-fi de Heart of glass).
Mas, é claro, é um disco que quer conquistar o mundo. E, hoje em dia, quantos discos querem conquistar o mundo? Não que isso seja mérito (e revistas como a Rolling Stone vão tentar convencê-los de que é sim um mérito). Eu mesmo prefiro os discos que não querem conquistar o mundo (ou que desprezam essa ambição muito ultrapassada, tão mid-eighties). The suburbs é Joshua Tree, é Born to run, é Use your illusion, é (sim, engulam) Viva la vida e é todos esses álbuns-monumentos family-size, grandes demais para nossos mundinhos. Estátuas de pedra, entertainment, quase autoparódia.
O fator-estranheza, no caso de The suburbs, é que esse porte épico parece contradizer um discurso introspectivo. Os hinos do Arcade Fire são frágeis e tristes, são hinos para consumo individual, hinos em cápsulas, hinos dos solitários. Mas, antes que eu cometa um erro muito feio (e eu já ia cometendo), devo notar que essa aparente contradição acaba se convertendo em força. Já que as melodias parecem ecoar os sentimentos gigantescos de personagens pequenos. The suburbs é, se prestarmos atenção, o som dos desejos que não se concretizam.
Um disco planejado para soar mundano (a faixa de abertura, por exemplo, é até contida para os padrões da banda; idem para Deep blue e Wasted hours) e espetacular. Talvez um salto maior do que as pernas, mas um salto. Talvez não funcione totalmente, mas eles tentaram.
Mas – como eu disse e repito – nenhuma dessas questões conceituais soa mais decisiva do que a forma como o discurso do Arcade Fire se infiltra em nossas vidas, em nossas lembranças, em nossas aflições. Não existe conclusão em The suburbs porque nossas vidas também são imprecisas. E, se o disco parece se movimentar em círculos (com trechos de melodias e de versos que se repetem), é que estamos sempre retornando às nossas casas, aos nossos antigos problemas, aos nossos sonhos mortos, às nossas frustrações e à nossa adolescência.
É que, de vez em quando, ainda nos pegamos deitados na cama olhando para o teto e decepcionados e melancólicos e sem ter para onde ir e o silêncio lá fora. Mesmo adultos. Não é simples como parece.
Terceiro disco do Arcade Fire. 16 faixas, com produção de Markus Dravs e Arcade Fire. Lançamento Merge Records. 8.5/10
Heaven is whenever | The Hold Steady
Não compro CDs há mais ou menos um ano, mas calhou de acontecer: quinta-feira à noite, bati o olho na prateleira e a bolachinha colorida olhou de volta. Flerte falal: fui esfaqueado em 60 pilas, mas voltei para casa feliz da vida, eu e minha cópia zerada, tinindo, reluzente de Boys and girls in America, do Hold Steady.
Era um daqueles discos que eu precisava ter. Precisava. Nada tenho contra a diluição de melodias em arquivos vagabundos de MP3, mas há casos em que sinto a necessidade de adquirir uma prova material, um rastro visível, um souvenir dos meus discos do coração. Há dois dias, descobri que Boys and girls in America está entre eles. Meu peito foi lá e disse: “compre o maldito CD importado!”
Até agora, ele só me trouxe alegrias. No carro, desembrulhei o bichinho e aumentei o volume do som. Os vidros trincaram com os primeiros acordes de Stuck between stations, um clássico. E o corinho de Chips ahoy! acabou se mostrando menos estridente do que eu lembrava. Solucei discretamente no início de First night, que passa pelo disco feito uma brisa de desencanto, de meninice mal resolvida. É tudo muito tocante, como um grande episódio de Anos incríveis.
A nova audição trouxe duas revelações: eu, acostumado os bits bichados de arquivos leves, nunca havia reparado em como Craig Finn soa gentil neste disco (como quem diz: “por favor, senhoras e senhores, peço alguns minutinhos para que vocês ouçam minha modesta obra-prima”). E, mesmo durante meu longo e intenso namoro com o álbum, eu não havia notado o quão elegante (até rebuscado) é o tecido dessas melodias. A banda vai à guerra com o batalhão todo: piano, cordas, sopros, distorções punk e vocais femininos, canções de amor e hinos de bebedeiras, narrativas cruzadas (sobre tipos adolescentes, perdidos e desidratados) e nerdices literárias (“Às vezes penso que Sal Paradise estava certo”, admite Craig). É um disquinho imenso.
Eu teria que ouvir Stay positive novamente (e vejam isto: também comprei o CD!), mas tenho quase certeza de que Boys and girls in America é o ápice indiscutível do grupo. Stay positive é mais dark e desesperado (mais John Cassavetes, menos Gus van Sant), mas não chega perto. Separation Sunday é lindamente imaturo, e só. Talvez eles saibam disso tudo. E talvez, por saber disso, eles avisem, a cada novo lançamento, que estão prestes para nos surpreender. A verdade, no entanto, é que eles nunca nos surpreendem.
Obras-primas às vezes são um fardo, um carma, e o Hold Steady terá que se contentar com o fato de que ficarão à sombra de 2006. É triste, mas taí. O que nos leva a Heaven in whenever, o quinto disco dos nova-iorquinos.
Nova-iorquinos, ahn? Você já parou para pensar nisso? Pode soar impressionante, mas o Hold Steady é do Brooklyn, a cidade do The National. A distância entre as duas bandas é de algumas centenas de quilômetros. Os discos do National apontam para uma Nova York feérica, de asfalto e neon. Os do Hold Steady miram lembranças de cidades interioranas, em sépia. Finn cresceu em Minnesota, e essa informação explica tudo sobre a mise-en-scene do grupo: os personagens geralmente não têm o que fazer nem para onde ir. Se entediam, e por isso inventam de tocar em bandas de rock.
A sonoridade do quinteto, por uma questão de coerência, deve muito à aura pop associada ao Meio-Oeste norte-americano: ecos de country rock, guitarras secas e diretas, poesia com algum traço folk (eles narram histórias, desenvolvem dramas, cantam A América). A banda se alimenta de nostalgia caipira e, portanto, fracassam sempre que tentam “urbanizar” esse som. Há alguns meses, eles anunciaram um disco mais “cinematográfico”, sortido, com “um quê de Jon Brion” (e foram eles que disseram, não tenho nada a ver com isso). E agora descobrimos que, surpresa!, tudo o que temos é mais um disco do Hold Steady.
O que está longe de ser uma descoberta ruim. A paisagem da banda continua sob o sol, um doce caseiro. A faixa de abertura, The sweet part of the city, é um American graffiti de baixíssimo orçamento: tédio, amores platônicos e outros demônios. O andamento da canção parece menos apressado do que de costume, mas é alarme falso. Da segunda música em diante, o Hold Steady usa o molde que conhecemos. Em alguns casos, as melodias são tão fortes que poderiam ter entrado em Boys and girls in America. Mas fica a sensação de que faltam foco e propósito ao disco.
Sobre o que é esse filme mesmo? Sinceramente, ainda não sei. Na segunda faixa, Soft in the center, Finn adota a faceta de adulto (um personagem que ele já havia interpretado em Stay positive) e manda um conselho de gentleman aos aspirantes a Don Juan. “Você não vai ter todas as garotas. Você vai ter aquela que você amar mais”, avisa. Depois, insiste: “Eu sei o que acontece com você. Isso aconteceu comigo também.” É nessas horas dá vontade de largar o disco, tomar um avião e bater um papo com o sujeito.
A terceira música é o que esperamos do Hold Steady: um par de losers fazendo bobagens. “Sim, eu vou voltar e te encontrar. Mas não vai ser como nas comédias românticas. No fim da história, ninguém vai aprender lição alguma”, canta, e dá a piscadela geek que esperamos de um fã de cultura pop.
Até aí, nenhum susto. E algum constrangimento (Rock problems, por exemplo, é uma DR tolinha). As coisas ficam sérias na balada We can get together, que explora o tom sombrio de Stay positive com um tom mais afetuoso, triste. Uma letra sobre saudade. “O paraíso era sempre que nos encontrávamos, ligávamos o som e ouvíamos os seus discos”, ele lembra. E aí não há o que fazer: sabemos que a estratégia é muito apelativa (toda banda de rock tem uma canção do gênero), mas nos emocionamos mesmo assim.
No restante do longa-metragem, Finn dá algumas tacadas seguras: cria versos que podem ser usados como hinos, já que interpretam com muita honestidade um turbilhão de símbolos e clichês do rock (e agora nem vale mais falar em Bruce Springsteen: o Hold Steady recicla o próprio repertório). “Os meninos estão todos distraídos, ninguém vence em shows violentos”, ele diz, em Barely breathing (em clima de cabaré sujo e power pop decadente). “Somos bons garotos, mas não conseguimos ser bons todas as noites”, brinca, em Our whole lives (que começa igualzinho a Stuck between stations). A slight discomfort termina metralhado pela bateria. “Não temos medo, temos alguma fé. Vamos ficar bem. Vamos sobreviver à noite”, promete Craig. Desce pano.
Epílogo: o Hold Steady continua a olhar para o passado (um passado inventado, aposto) com um misto de nojo e carinho, desprezo e paixão. Esquizo-nostalgia. Sei o que é isso. Ouço Boys and girls in America e sinto saudades. Não sei de que. Enquanto isso, temos Heaven in whenever. Um disco que não se deixa sufocar pelo passado da banda. Um disco adulto. E, de certa forma, adorável. Como um episódio esquecível de Anos incríveis.
Quinto disco do Hold Steady. 10 faixas, com produção de Dean Baltulonis e Tad Kubler. Lançamento Vagrant/Rough Trade. 7/10
Superoito e a turma de 92
Não me considero um sujeito saudosista, apesar de tremer quando ouço qualquer hit rasteiro de 92. Até os hediondos. How do you do, do Roxette, por exemplo. O efeito é quase sempre devastador: a enxurrada sentimental me atinge com a fúria de um velho álbum de fotografias.
Por isso me incomodei com a notícia de que a turma de 92 finalmente se reencontraria. Depois de quase 20 anos, os amigos perdidos de uma época perdida se reuniriam num sábado calorento para uma feijoada. Não seria bonito? Depois de uma intensa troca de e-mails, entramos em acordo sobre o horário (por volta das duas da tarde) e o local (um clube no início do Lago Sul). Nos dois dias seguintes, cerca de 20 pessoas confirmaram presença. Todos pareciam muito ansiosos e animados – queriam compartilhar fotografias e conversar sobre os bons tempos que não voltam mais.
Num primeiro momento, tentei escapar da obrigação. Fiz que não era comigo. Esse tipo de encontro, para mim, sugere um punhado de telefilmes chorosos dos anos 80. E nunca fui dos grandes fãs de John Hughes, after all.
Em 92 eu era um garoto de 12 para 13 anos de idade. Sem qualidades. Mas eu sobrevivia, obrigado. Não lembro como, mas fazia amigos e influenciava duas ou três pessoas. Eu era desajeitado e tímido. Eu era sentimental e ingênuo. Eu acreditava em Stephen King e Pedro Bandeira. Em resumo: num mundo de meninos invisíveis, eu era também invisível. Um serzinho ordinário – um detalhe no papel de parede do ambiente onde eu vivia.
Em muitos aspectos (quase todos), eu presumia que aquele Tiago não existisse mais. O menino inocente havia se transformado num homem feito, de 30 anos, calejado pela vida e tolerante feito um mestre tibetano. Pensei logo que não valeria a pena buscar conforto na imagem atualizadas de amigos que provavelmente se esqueceram de mim da mesma forma como me esqueci deles. A ideia soava falsa e despropositada – reencontrar para quê? Não seria melhor deixar as coisas como elas estão?
Ao mesmo tempo, havia um tipo quase mórbido de curiosidade que me empurrava de encontro à turma de 92. Não foi um período triste da minha vida, pelo contrário. Logo que cheguei a Brasília, eu era feliz quando cercado pelas grades de uma escola pequena e obscura, que se orgulhava de ensinar os alunos sobre as maravilhas da arte (aprendíamos teatro, literatura, um pouco de música e artes plásticas) e que afagava delicadamente o ego de cada estudante, sem exceções. Não à toa, todos nos traumatizamos quando demos o salto para o segundo grau, trancados em colégios que nos tratavam como números frios numa longa lista de chamada.
Daí que sábado, mesmo metido num semestre infernal (minha namorada estava a poucos dias de se mudar definitivamente para São Paulo, uma notícia que ainda me deixa desconcertado), resolvi arriscar o mergulho nesse lodo nostálgico. Não sei o que eu procurava (talvez um contato realista com uma infância que idealizo, não sei). Saí inteiro, mas não sem alguns hematomas.
Em tese, toda esta história parece muito simples: você vai ao clube, encontra os amigos de infância, conversa sobre assuntos que interessam à humanidade como um todo (trabalho, família, amores, vá saber), come um pouco da gororoba, vê as malditas fotografias e volta para casa com o espírito renovado, mais ou menos como um virgem de 30 anos. É isso, não é?
É. E não é.
E explico por que não é. Exatamente como eu e você, os velhos amigos crescem e se transformaram em pessoas diferentes. Mas continuam a revelar traços de personalidade que existiam desde a infância. Esse descompasso provoca uma sensação curiosa: ao rever um desses mortos-vivos, é como se você topasse numa pessoa que te lembra fortemente um amigo que ficou para trás. O detalhe aterrorizante é que essa nova pessoa, na verdade, é exatamente aquele amigo do passado.
Parece confuso, eu sei, mas foi o que aconteceu comigo. No grupo de 20 convidados, cinco deles eram mais ou menos familiares. De alguma forma, nos encontramos durante a adolescência ou no período da faculdade. Por isso, e mesmo com alguma remodelagem no layout (um deles estava quase careca), não nos estranhamos. O choque veio quando me encontrei com pessoas que foram extremamente importantes para mim, mas que haviam desaparecido da minha memória.
Logo que entrei no clube, um sujeito sorridente, baixinho e parrudo me recebeu:
– Tiago!
Eu o encarei com os olhos espremidos, como quem faz todo o esforço do mundo para encontrar um sinal, uma marca, um traço de fisionomia… Mas nada. Alguns segundos depois, quando consegui descobrir quem ele era, a imagem completa se formou com velocidade na minha cabeça. E notei que estava diante de um amigo que ainda se lembrava de fatos mínimos da minha vida – e que de certa forma sempre esteve lá, no avesso do meu cotidiano.
– É você! – eu disse, enfim
– Sou eu.
– É você.
E ficamos nisso por alguns minutos. Não havia o que dizer, mesmo quando sabíamos que havia muito a ser dito. Tomados por um transe, todos os antigos amigos se reconheciam e se abraçavam, gaguejavam algumas palavras entusiasmadas e lembravam de cenas irrelevantes e choravam enquanto trocavam fotografias amareladas. E tiravam fotografias digitais, para garantir que nada daquilo era apenas delírio. Fizemos poses para a câmera, trocamos telefones e combinamos que nunca perderíamos contato. Aposto que, num canto discreto do clube, duas amigas renovaram o pacto de sangue – dedinho com dedinho.
O lado patético da história é que ninguém saberia explicar o motivo daquela reunião. O que era? Queríamos de volta o gosto da nossa infância, que nos roubaram para sempre? Nosso desejo era pela certeza de que não estávamos sozinhos no mundo-cão? Ou tudo era apenas uma forma de renovar o compromisso com um período da vida que deixa saudades doloridas? Queremos provar para nós mesmos que estivemos lá, que experimentamos da infância doce?
Nós éramos, de certa forma, testemunhas uns dos outros. Ou quase. Uma das amigas, ausente, decidiu seguir o chamado e virar freira.
Eu não esperava por tantos momentos tocantes numa tarde de sábado, mas reconheço que me deixei levar pelo furacão. Quando a noite chegou, algo inusitado aconteceu: os amigos começaram a reviver literalmente os momentos da infância. O engenheiro civil e a psicóloga contavam piadas debochadas, o advogado mijava na latinha de cerveja do agrônomo e a professora de violino se contorcia no chão imitando uma minhoca com dores de barriga. Eu mesmo sorria como o menino imaturo que ainda sou. Por alguns momentos, me imaginei dentro de um episódio de True blood dirigido por David Lynch.
Mas foi divertido. De um jeito doentio, quase. O auge da comoção coletiva se deu quando o anfitrião disse ter uma confissão a fazer (a feijoada, nessa altura, era uma papa gelada e indigesta).
– Isso aqui… Isso aqui, minha gente… Isso aqui… Estou emocionado, gente.
Na terceira tentativa, o discurso decolou.
– Isso é um momento histórico. Histórico. Encontro em vocês tanto carinho, minha gente. Tanto carinho. Que é como… Nem sei. Não sei se vocês sabem, mas eu quero sair de Brasília. Quero sair pra sempre. Passei parte da minha vida longe da cidade, casei, separei e tive um filhotinho lindo. E agora, voltar para a cidade… É difícil. É que essa cidade vai devorando e maltratando. É tudo muito solitário e vocês sabem disso. É tudo fechado, e sou daquelas pessoas que deixam a porta de casa aberta. E os amigos entram. Sei que, de hoje em diante, vou poder contar com vocês, meus amigos. Vocês são mesmo… mesmo… Vocês são incríveis.
Depois dos aplausos e das conversas bêbadas e inconseqüentes, marcamos outro encontro e combinamos que aquele elo resistiria. Intimamente, sabíamos que era tudo mentira. Mas vivemos a mentira intensamente. Voltamos para as nossas casas. Sei de gente que não conseguiu dormir direito. No dia seguinte, chegaram as fotos. No outro, os comentários sobre o encontro (‘inesquecível’, alguém avaliou). No terceiro, os e-mails sentidos das pessoas que não puderam comparecer.
Mais tarde, as mensagens começaram a rarear. A onda bateu na areia e ficamos novamente em silêncio, seguramente a alguns quilômetros de distância uns dos outros.
Como se nada tivesse acontecido. Mas imagino que, de alguma forma, ficamos orgulhosos do que fizemos, do nosso pequeno ato de rebeldia. De verdade. Vá lá, conte esse como um final feliz. Já que, sem sentido ou explicação, algo aconteceu.
Superoito dentro do papel
Ainda fico espantado quando encontro repórteres recém-formados que procuram algum tipo de glamour numa redação de jornal. A eles, sou direto: no jornalismo cultural, não existe calçada da fama. Quem busca conforto e brisa nessa profissão provavelmente levará uma vida de duras frustrações – toda uma existência pontuada por dias tensos e noites em claro.
Mas entendo: os leitores, esses não têm a obrigação de saber disso. Por essas e outras, não me incomodo tanto com as pessoas que me tratam como se eu fosse o homem mais sortudo do universo – e isso pelo simples fato de que, às vezes, entrevisto pessoas famosas. Mas nada é tão fantástico quanto parece. Eva Mendes é mesmo maravilhosamente linda, mas lembro que, quando entrevistei a atriz, ela disse no máximo três frases curtas que não preencheriam meia página de um moleskine.
Prefiro as entrevistas mais informais e surpreendentes. Muita gente dá uma de Marisa Monte e ataca jornalistas que repetem as mesmas perguntas óbvias, mas garanto que os entrevistados são, na maioria das vezes, tão previsíveis quanto. Raro é encontrar quem tenha algo a dizer. Ontem mesmo, conversei rapidamente com um vocalista/guitarrista de uma banda de rock da cidade (ainda pouco conhecida) e aqueles 20 minutos valeram por um semestre inteiro de respostas burocráticas.
Roqueiros às vezes soam tão imaginativos quanto jogadores de futebol, também mestres em frases de efeito curtas e sem gosto, mas não foi o caso. Lá pelas tantas, o vocalista/guitarrista admitiu que ainda se sentia inseguro no palco. Ele não sabia se tinha jeito para a coisa ou se estaria condenado a doloridas sessões públicas de constrangimento. “E o pior é que, quando gravamos músicas, consigo notar a minha insegurança dentro das canções”, ele disse.
Entendi o drama. Perfeitamente, aliás. Sei que nasci para trabalhar com o que trabalho (caso contrário, eu já teria enlouquecido), mas lidar com a insegurança ainda é meu maior pesadelo. Não superei o medo de ser desmascarado em praça pública – de subir no palco e esquecer minhas falas. Tento calcular meus passos para não tropeçar, mas há momentos em que sou obrigado a dar saltos que, pelo menos no meu entendimento, parecem largos demais. É aí, meus amigos, que eu me estrepo, me machuco e, em alguns casos, aprendo e amadureço.
A última semana foi quase toda assim – uma maratona de responsabilidades impossíveis. A pior delas, um artigo longo e difícil, escrito a fórceps. O mais difícil, sempre, é lidar com as expectativas que crio para mim mesmo. Quase sempre, elas são inatingíveis. Quero escrever como o romancista que admiro, o jornalista que morreu há duas décadas ou o blogueiro maldito que ninguém entende. Esse crítico ranzinza que mora no meu cérebro me atormenta – é a ele que devo satisfações (seria esse crítico imaginário a imagem que faço de Deus, como a mulher gorda e invisível que vigia os passos dos personagens de Salinger?).
Esta semana, me pediram uma crônica. Num espaço nobre do jornal. Inseguro, quase paralisei de pânico.
Mas aceitei o desafio (já que saltar no vazio virou para mim uma espécie de meta masoquista). Passei os últimos dias pensando num tema e nada me pareceu atraente ou novo ou curioso. Pensei em fazer um breve perfil sobre uma velha cinéfila. Mas era um material muito sentimental. Depois tentei narrar uma noite num cinema tradicional da cidade, mas me vi aprisionado nos limites de uma idéia bem intencionada, politicamente correta. O plano de refletir sobre os silêncios da cidade foi descartado: abstrato demais.
Então apareceu uma lembrança que me persegue há uns bons oito anos, desde que eu era um estagiário. É uma sina do repórter, esta: ele se envolver intensamente com as pessoas, delas arranca histórias extraordinárias e, depois, as abandona (as pessoas e as histórias) para sempre. Resolvi fazer o caminho contrário: correr atrás de uma história que eu havia contado e abandonado. Eu queria saber o que havia restado dela, se é que havia restado algo.
Foi uma história que, talvez mais que qualquer outra, me fez entender e gostar da profissão, apesar de todos os sacrifícios que vêm na encomenda.
Era sobre um menino pobre chamado Rony, que tinha uns 8 anos e trabalhava vendendo doces na rodoviária. Ele estudava pela manhã e passava as tardes mergulhado em fumaça de ônibus, diante de uma banca de madeira. Era um garoto que não sorria muito, era extremamente tímido e, acredito que por causa disso, logo me identifiquei com ele. O fato curioso (e daí a matéria de jornal) era que ele matava o tempo desenhando a cidade em pedaços de papelão. E desenhava tão bem, com tanta concentração, que as pessoas juntavam caixas velhas para que o menino pudesse se divertir.
Foi muito difícil entrevistá-lo, já que ele mal conseguia articular algumas frases. Mas a situação toda me deixou estarrecido. Para quem aquele menino desenhava? Por que ele se concentrava tanto? Qual era a razão de tanto esforço? Ele não parecia interessado em algum tipo de reconhecimento (era arredio, introspectivo), nem fazia questão de se exibir. Apenas ficava lá, desenhando. A matéria foi publicada e, no dia seguinte, muitas pessoas presentearam o garoto com tinta e papel. Fiquei sabendo que ele ganhou aulas gratuitas de pintura. E aquilo me deixou muito satisfeito. Foi como se eu, no papel de repórter, tivesse cumprido uma função importante. Mais que isso: aquele menino me ensinou tanto sobre o desejo de criação artística que não consegui esquecer dele.
Instigado pela intenção de escrever uma crônica sobre o assunto, voltei a procurá-lo. Fui à rodoviária, mas a banca de doces não estava mais lá. Telefonei para um número que encontrei num bloco amarelado, mas a ligação foi interrompida por uma mensagem automática. Perguntei a alguns vendedores da rodoviária, mas ninguém conhecia o menino. O que teria acontecido com ele? Pessimista que sou, imaginei os cenários mais sombrios. Mas, quando sintonizei meus sentimentos numa estação realista, cheguei à conclusão de que talvez ele tenha simplesmente largado o desenho para se transformar num adolescente anônimo, daqueles que não despertam emoções fortes em reuniões de pauta. Teria ele conseguido vencer as expectativas da família e apostar no desenho como um talento incontrolável, uma vocação?
A crônica ainda não existe, e não sei se ela vai sobreviver ao crítico ranzinza e invisível que controla minhas decisões. O que fica, por enquanto, é essa experiência inexplicável de tentar capturar uma história que não é mais minha. Ela não ocupa mais no meu campo de visão. Nada posso fazer para salvá-la. O menino está solto no mundo – talvez perdido (espero que não), talvez feliz, talvez novamente disposto a ensinar a outros repórteres iniciantes algumas lições sobre a misteriosa ânsia de criar. Para mim, parece que morreu.
Talvez sobreviva numa crônica, não sei. Só torço para que o leitor não note a minha insegurança dentro do papel.