Justin Timberlake
cine | Amizade colorida
Era uma daquelas tardes eternas, impossíveis de quinta-feira: dezenas de e-mails engarrafavam o Microsoft Outlook, meu Nokia smartphone E5 detonava mil torpedos de SMS e os envelopes pardos com cópias de divulgação de livros da Editora Record e da Companhia das Letras se amontoavam na mesa, numa pilha alta que me lembrou um vulcão de projeto escolar. Minha cabeça apitava, ardia em lava. Decidi: “vou sair um pouco mais cedo e pegar um cineminha”.
Daí que tomei um comprimido de Tylenol, guardei alguns dos livros na minha mochila Adidas, conferi meu saldo (constrangedor) no caixa eletrônico do Bradesco, comprei uma barra de chocolate Talento com amêndoas (amargo, sem lactose), engatei meu Fiat Palio e notei que precisava abastecer o tanque do carro. Parei no posto BR, onde torrei 50 reais em gasolina aditivada.
No carro, ouvi um bom trecho do CD Tha Carter IV, de Lil Wayne, um lançamento Young Money/Universal Republic. Quando cheguei ao estacionamento do Carrefour, onde estacionei o carro, tive que parar a audição na faixa 6. Não consegui me concentrar na música. No mais, o cheiro de carne da Churrascaria Pampa acabou me distraindo. A sessão começaria em 15 minutos; foi com pressa, e passadas longuíssimas, que caminhei até o ParkShopping.
Apesar da aflição para chegar a tempo, não fiquei esbaforido: o treino diário na academia Smart Fit do Sudoeste, pensei (muito satisfeito comigo mesmo), fez de mim um sujeito com ótimo preparo físico.
Para não enfrentar a fila da bilheteria do Kinoplex Severiano Ribeiro, usei o terminal eletrônico, onde comprei o ingresso com meu Visa Electron. Saiu por 17 reais. Havia tempo para comprar o combo pipoca+guaraná (Antarctica), mas optei por uma garrafinha de Mate Leão — para não criar pança, todo cuidado é pouco. Já dentro da sala, pedi licença a uma mulher que bloqueava o corredor com uma imensa bolsa Louis Vuitton. Ela foi gentil e me deu passagem. Em seguida, apagaram as luzes parcialmente.
Na tela, eu e os outros 10-15 espectadores assistimos a anúncios de Coca-cola e uma seleção de notícias rápidas do IG. Após os trailers da sequência de Missão: impossível, uma produção Skydance/Bad Robot/Paramount Pictures, apareceram cenas de uma comédia em que um homem gorducho leva um chimpanzé para se divertir no restaurante Friday’s.
O filme, enfim, começou. Amizade colorida (em inglês, Friends with benefits), uma produção da Castle Rock Entertainment, distribuição da Sony/Screen Gems, que custou 35 milhões de dólares e arrecadou, até hoje, 74 milhões. Se não é um grande sucesso de bilheteria, diriam os especialistas, não chega a ser um fracasso.
O começo do longa, de alguma forma, se confunde com os anúncios que haviam aparecido antes dele. Mas sabemos que o filme começou porque agora as luzes apagaram totalmente e os personagens falam atendentes de telemarketing, numa velocidade assombrosa (eles habitam o mundo pós-A rede social, produção da Sony sobre a criação do Facebook).
O herói, Dylan (Justin Timberlake, o ídolo pop que lança discos pela gravadora Jive Records), é o diretor de arte num blog em Los Angeles. Numa das primeiras cenas, ele instrui a equipe a escolher a fotografia mais atraente para a página principal do site. Mais adiante, ele explica que a página dá uma média de zilhões, centenas de zilhões de visitas por dia. É um homem jovem, bem sucedido, atlético, que veste ternos justos e bem aparados, corta o cabelo curtinho e tem “talento visual”.
A heroína, Jamie (Mila Kunis, uma das 102 mulheres mais sexies do mundo, segundo a revista Stuff), é uma headhunter também muito bem sucedida, que mora sozinha num apartamento em Manhattan e tem uma mãe hippie. Dylan e Jamie estão desiludidos com o amor. Para eles, histórias românticas só acontecem no cinema, em filmes como Uma linda mulher e similares. Como bons consumidores antenados de cultura pop, eles curtem George Clooney, detestam John Mayer e conhecem todos os truques baratos das comédias românticas (se Amizade colorida fosse um filme de terror, ele chamaria Pânico).
Me perguntei se eles teriam visto Sexo sem compromisso, uma produção Spyglass Entertainment com Natalie Portman e Ashton Kutcher sobre um casal que decide praticar a atividade sexo-sem-amor. Acho que não viram (e nem era um filme legal, então tá).
São “pessoas reais”, os personagens de Amizade colorida. Mas isso se você, caro leitor, é daqueles que consideram o “mundo real” um Starbucks jeitoso que fica aberto 24 horas por dia dentro do cérebro de Steve Jobs ou de Mark Zuckerberg.
Mas ok: vamos supor que este seja o mundo desejado pelo público potencial deste filme, uma faixa formada por jovens entre 14 e 25 anos, que talvez sonhem em morar em Nova York e já se decidiram por um dos lados no conflito tecnológico de iPhone versus Android. Para esse público, o filme funciona como um anúncio fulltime: quem não quer ser Mila Kunis ou Justin Timberlake? Nos primeiros 15 minutos, quando Jamie apresenta Manhattan a Dylan, admito que bateu a vontade de comprar um pacote turístico da CVC (parcelado em seis prestações).
Anyway. A missão de Jamie é atrair Dylan para a função de editor de arte na revista GQ. Dylan não parece muito animado com a ideia. Ele gosta de Los Angeles, onde as ruas são largas e a vida flui como um churrasco de domingo. Mas a moça dá um golpe fulminante ao levá-lo para conhecer a Times Square. Nesse ponto da trama, o filme mostra um turbilhão de letreiros luminosos de marcas que não conheço (mas talvez já tenha sonhado em conhecê-las). Reconheci a fachada do Friday’s, mais uma vez. E, desta vez, a imagem abriu meu apetite.
(E aí refleti: é uma pena que trocaram o Friday’s do shopping Pier 21 pelo Fifties. Às vezes dá uma saudadezinha. Se bem que o Fifties não me parece desonesto, então ok)
Onde paramos? Sim. Na Times Square. Nos letreiros luminosos. Dylan não está convencido por eles. Ele quer algo mais puro, algo mais verdadeiro, algo que o inspire e o tire do chão. Eis que, numa sacada espertíssima, Jamie o apresenta a um legítimo flash-mob. Sim! Uma manifestação bacanérrima de afetuosidade urbana. Ao sinal dos acordes de uma canção de Frank Sinatra, os engravatados e as executivas dançam e fazem coreografias complicadas nas ruas de Nova York. Dylan se emociona e (como não?) decide ficar.
É um pouco complicada a adaptação à rotina nova-iorquina, já que, por exemplo, as pessoas não costumam esperar o sinal de trânsito fechar para atravessar a rua. E elas são tão estressadas e práticas, às vezes tão transgressoras, e de uma forma tão natural e desencanada (o editor de esportes, vejam só, parece machão mas é gay!). Ainda assim, Dylan chega ao escritório da revista GQ e cria uma bela companha publicitária que mistura a espontaneidade dos flash-mobs com a elegância da marca GQ. Fica muito joia, porque, cê sabe, propaganda boa é aquela que inspira verdade, humanismo e graça.
Para ambientar Dylan na nova cidade, Jamie prepara uma festa onde jovens atléticos e antenados se reúnem para beber cervejas Heineken e se divertir com um joguinho de videogame que lembra muito o Kinect do Xbox (com sensores de movimento! Onde vende?). Na trilha sonora, toca Janelle Monae, uma artista da Atlantic Records que faz relativo sucesso de público e grande sucesso de crítica.
Eis que Dylan e Jamie, dois corações despedaçados pelo cinismo bacana da era pós-Napster, se tornam amigos. Depois de assistir a uma comédia romântica na tevê (que, na verdade, é uma paródia de comédias românticas, com todos os clichês à flor da pele), eles decidem fazer um trato: transar só por diversão, como faziam os hippies. Nada de compromisso amoroso, nada da encenação carinhosa que os casais de verdade fazem quando se amassam sob lençóis. Nada disso. Só sexo. E sexo pragmático, mais ou menos como num treino de academia de ginástica. Eles curtem.
Antes de transar pela primeira vez, Jamie pede para Dylan jurar que eles não serão namorados. Ela não tem uma Bíblia em casa (quem tem Bíblias em casa? Estamos em 2011, deus!), mas tem o aplicativo-Bíblia no iPad. Dylan jura com a mão grudada no touchscreen da Apple, mas, antes disso, faz uma piadinha sobre a interface mais ou menos inteligente do iPad. Nesse momento a plateia ri, porque aparentemente todo mundo tem iPad, e todos já viveram aquele probleminha na vida real quando tentaram usar o aplicativo-Bíblia com a fuckfriend da ocasião.
Ou algo assim. E Dylan, que é um amor, confunde uma música do Semisonic com um hit do Third Eye Blind (bandas que, notem a sacada do roteiro, são tão descartáveis quanto este roteiro aqui).
Jamie e Dylan transam “a lot” e, quando tomam fôlego e decidem parar com a brincadeira, tentam entrar em relacionamentos de verdade. Não se sabe por que tentam (talvez por tédio, ironia), já que pareciam cansadíssimos do ritual romântico. Dylan encontra mulheres insuportáveis, chatérrimas. E Jamie encontra um médico perfeitinho, que consome cultura pop e cuida de crianças com câncer, mas ele se revela um crápula como todos os outros. Não acontece como nos filmes.
Nesse ponto da trama, quando a narrativa perde o ritmo e caminha para o inevitável happy end, aproveitei para checar meu smartphone. Havia duas mensagens no WhatsApp e um SMS da minha mãe, que pedia um sanduíche do Giraffa’s. Nessa altura, eu já havia bebido toda a minha garrafinha de Mate Leão, e pensava em ouvir com atenção o disco novo do Wilco, uma banda da Nonesuch Records.
Quando dei por mim, Dylan já havia levado Jamie para passar o feriado de 4 de julho na casa dos pais dele, em Los Angeles. E o filme havia ficado mais sério: descobrimos com o pai de Dylan tem Alzheimer. É o personagem mais verdadeiro em cena, mesmo quando tira as calças num restaurante, antes do almoço. Pena que o filme não esteja tão interessado nele: mais importante é mostrar os “problemas de intimidade” de Dylan, que também é péssimo em matemática.
Porque Dylan, na lógica do filme, parece mesmo bastante real.
Uma noite, depois de brincar alegremente (Jamie o espezinha com o livro Maths for dummies, daquela coleção bacana de capa amarela que vendem nas melhores livrarias), eles se conectam de um jeito, hmm, romântico. A trilha sonora do filme fica melosa, o sexo se torna mais lento e “amoroso”, os lençóis são de seda e, de repente, o amor está no ar. No dia seguinte, porém, Dylan não percebe nada disso e faz comentários infelizes sobre Jamie — que ela, a amiga, acaba ouvindo. Tá feita, como diria o locutor da Sessão da tarde, a confusão.
Num rompante, Jamie decide pegar um voo noturno para Nova York (cartões de crédito servem para isso), e o filme se torna melancólico. O amor é mesmo um curto-circuito terrível e frustrante, não é mesmo? Dylan liga para o telefone de Jamie, mas ela não atende. Quando Jamie decide enfim ligar para o telefone de Dylan (já que apareceu uma oferta de emprego para ele na Barnes & Noble), é o telefone dele que está desligado. Dá vontade de ter aqueles telefones (ainda que eu odeie touchscreen), mas não dá vontade de estar naquele relacionamento sem fio.
Quando Dylan percebe que está mesmo apaixonado (o filme, afinal, tem que terminar em algum momento), mexe os pauzinhos e organiza um flash-mob supimpa na estação de trem que serviu de cenário para o filme romântico babaca que eles viram na noite em que decidiram transar pra valer. Ufa. O importante é que a declaração romântica dá certo, e o filme termina mais ou menos como aquelas comédias românticas artificiais e quadradinhas que ele queria satirizar. A diferença é que, em vez de tomar a carruagem branca, o casal bate um papo num café confortável, que lembra o ponto de encontro da turma da série Friends.
E aí a gente pensa: ah, deve ser bom frequentar esse café, mas talvez ele só exista em Nova York. Talvez, pensamos, ele só exista em filmes que parodiam outros filmes e que, ainda assim, sentem saudade daqueles filmes que estão parodiando. Um cinismo cheio de nostalgia e afeto. Se é retrato de uma geração, Amizade colorida (dirigido por Will Gluck, que nunca vi mais gordo) me parece revelador: seria bom se trocássemos esta geração no balcão da megastore, porque as peças estão em curto-circuito e não haverá assistência técnica que dê jeito.
Na saída da sessão, comi um sanduíche de peito de frango no Giraffa’s (sem queijo), dei uma espiada na vitrine da loja da Nike (lembranças da minha conta bancária castraram o meu id) e chequei se o preço do Macbook Air permanecia altíssimo (permanecia). Duas horas depois, eu lembrava mais do sanduíche de peito de frango que do filme. Com uma dose menos exagerada de maionese, seria perfeito.
Superoito express (26)
How I got over | The Roots | 7
Note o paradoxo: How I got over está entre os discos menos caóticos que o Roots já gravou (e é conciso, o danado: um álbum de hip-hop e R&B cheio de participações especiais e com apenas 42 minutos de duração) – mas é também, e de longe, o mais ameno entre todos os que ouvi deles (e ouvi vários). Não sei se interpreto esse momento como uma resposta da banda à era Obama ou às transformações no mercado pop norte-americano (o rapper mais badalado do momento é o Drake, um sujeito romântico e doce). De qualquer forma, é um novo tempo.
E, não tenho dúvidas, é um disco que cumpre os próprios objetivos de uma forma muito precisa e com eficiência germânica: uma coleção de hits agradabilíssimos (Walk alone, Radio daze, Now or never, são tantos…) que confirma o gosto da banda por andar “on the indie side”, com flertes a Monsters of Folk (Dear God 2.0, que tem ares de Fleetwood Mac), Dirty Projectors (A peace of light) e Joanna Newsom (Right on tem sample da moça), sem abandonar o mainstream (vide a ponta de John Legend e a produção polida, sob medida para as rádios). O discurso também continua comprometido com o social e levemente agoniado, ainda que positivo. O importante é que eles ainda fazem a coisa certa, e a faixa-título começa assim: “Nas ruas onde cresci, sempre me ensinaram a não estar nem aí. Esse tipo de pensamento não te leva a lugar algum. Alguém tem que se importar.” Sacou? Mesmo mansinhos, eles ainda se importam.
Brothers | The Black Keys | 7
O sexto álbum do Black Keys é uma espécie de continuação de Attack and release (2008), também produzido por Danger Mouse, com o mesmo blues-rock compacto, comprimidíssimo (o maior impacto no menor espaço), que soa como se alguém tentasse encaixar o som do Led Zeppelin dentro de um dedal. Mas, ao mesmo tempo, Brothers estica esse estilo para que caiba numa tela grande. É uma questão de duração: em 15 faixas, a dupla se obriga a se exercitar mais. E, nesse esforço, a banda acaba beliscando o pop (as últimas faixas, baladonas bluesy, são até tocantes). Claro que nem tudo dá certo, e o duo ainda me incomoda muito quando faz o decalque fácil de uma certa estética de brechó à anos 70, sem nervos, sem sangue, diluída para desfiles de moda e peças publicitárias (e aí chegam muito perto de um Lenny Kravitz). Tropeços acontecem, mesmo quando (acredite) estamos falando do disco menos acidentado que eles gravaram.
Love king | The-Dream | 7
Timing perfeito: o terceiro de Terius Youngdell Nash chega na cola de Thank me later, a estreia do Drake. Eles disputam o título de melhor álbum perdidamente amoroso de rap ‘n’ soul, e não vejo muitos outros concorrentes na pista (a menos que Kanye West decida manter o tom dramático de 808s and heartbreak, o que acho improvável). Por mim, dá empate. Drake me agrada um pouco mais, já que me parece tão convencido quanto vulnerável, cheio de dúvidas e traumas de infância e frescurinhas mil. The-Dream é só convencido, mas tem a vantagem de trabalhar duro para aninhar um estilo – enjoativo ou não (e, em muitos momentos, não tenho paciência para o excesso de mel com morangos e chantilly das faixas bônus), este som aveludado é só dele. Love vs. money (2009) era mais sortido, mas Love king soa como um álbum conceitual (!) muito ambicioso, sexy toda vida, às vezes cafajeste (ouça Sex intelligent) e meio monocórdico sobre… o amor, o amor e o amor, é claro (também sobre sexo com champanhe num pornô-chic dos anos 80, quando muito). Coloque na estante perfumada ao lado de Futuresex/Love sounds, do Justin Timberlake.
Recovery | Eminem | 5
Demora apenas duas faixas. E lá vai: “Os críticos nunca têm nada legal para dizer, cara. Você quer saber o que eu penso sobre os críticos? Os críticos nunca perguntam como foi o meu dia.” Recovery é bem isto: um disco totalmente na defensiva. Curiosamente, o próprio Eminem parece admitir essa má fase – caso contrário, o nome do disco não seria Recovery, e sim algo imponente do tipo Staying on top ou Still king. Daí que, se o álbum anterior (Relapse, 2009) era uma tentativa bem picareta de reprisar o que deu certo antes (o humor cartunesco, a persona violenta, o clima de fita de horror, as paródias pop, etc), o novo tenta algo como The blueprint 3, do Jay-Z: um disco de rap comercial by-the-numbers, eficiente, 1×0 sem show de bola, com participações especiais de gente famosa (Pink, Lil Wayne, Rihanna) e samplers que já ouvimos de algum lugar (tem até What is love, do Haddaway!). Se a meta de Eminem era sair com um disco mediano de rap, que qualquer outro rapper mais ou menos talentoso poderia ter gravado, conseguiu. E pelo menos sobre um aspecto os críticos vão ter que concordar: é menos vergonhoso do que os dois anteriores.