J.G. Ballard

Crash, o filme, por J.G. Ballard

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“O filme Crash, de David Cronenberg, foi lançado no Festival de Cannes em 1996. Foi o filme mais polêmico do festival, e a controvérsia continuou durante anos, em especial na Inglaterra. Políticos do Partido Conservador desesperados, prevendo a derrota nas eleições gerais iminentes, atacaram o filme tentando ganhar créditos como guardiões da moral e da decência pública. Uma ministra, Virgínia Bottomley, pediu que o filme (que ela não tinha visto) fosse proibido.

O Festival de Cannes é um extraordinário evento de mídia, capaz de intimidar profundamente um reles romancista. É possível que os livros ainda sejam lidos em grandes números, mas os filmes são objeto de sonho. Eu e Claire (esposa de Ballard) ficamos assombrados com as multidões aos gritos, as festas suntuosas, as limusines exageradas. Participei de todas as entrevistas publicitárias do filme e fiquei impressionado ao ver como os astros do filme estavam comprometidos com a elegante adaptação do meu romance feita por David Cronenberg.

Eu estava sentado ao lado da atriz principal, Holly Hunter, quando se aproximou um importante crítico de cinema de um jornal americano. Sua primeira pergunta foi: “Holly, o que você está fazendo nessa merda?” Holly saltou da cadeira e partiu para uma apaixonada defesa do filme, acabando com esse crítico por seu provincianismo e sua mentalidade estreita. Foi a melhor atuação do festival, e aplaudi vigorosamente.

Em poucas semanas o filme estreou na França, com muito sucesso, e depois passou a ser exibido em toda a Europa e no resto do mundo. Na América houve problemas quando Ted Turner, que controlava a distribuidora, achou que Crash poderia ofender a decência pública. É interessante notar que na época ele era casado com Jane Fonda, que reanimou sua carreira representando o papel de prostitutas (como em Klute) ou fazendo malabarismos nua em uma nave espacial forrada de peles (em Barbarella).

Na Inglaterra o lançamento foi retardado por um ano quando as autoridades de Westminster o proibiram de ser exibido no West End de Londres, e várias municipalidades do país seguiram o exemplo. Mas quando o filme por fim estreou não houve nenhum desastre de carro tentando imitá-lo, e a polêmica acabou morrendo. David Cronenberg, um homem muito inteligente e profundo, ficou completamente perplexo com a reação dos ingleses. “Mas por quê?”, ele vivia me perguntando. “O que está acontecendo por aqui?”

Depois de cinquenta anos morando no país, eu não tinha resposta alguma para lhe dar, nem de longe.”

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A coincidência: antes de ler esse trecho da autobiografia de Ballard, Milagres da vida (que é fantástica, recomendo), pensei muito em Crash enquanto assistia ao Confissões de uma garota de programa, do Steven Soderbergh. Faz muito tempo que não vejo o do Cronenberg (um dos meus favoritos dos anos 90), mas tudo o que o Soderbergh tenta encenar (relações afetivas frias/mecânicas/despaixonadas) não chega nem perto das minhas lembranças daquele outro filme, de como Cronenberg foi fundo no mal-estar de uma época. Crash me perturba até hoje – o filme até mais que o livro. E talvez todo o problema do cinema de Soderbergh (ou pelo menos o que me incomoda nele) esteja aí: no medo de dar um passo para fora da zona de conforto e arriscar seriamente.

2 ou 3 parágrafos | O reino do amanhã

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O reino do amanhã (8/10) parece ter sido escrito para acompanhar uma sessão de O despertar dos mortos, de George A. Romero. No livro de J.G. Ballard, um monstruoso shopping center (chamado Metro-Centre) devora uma pequena cidade no subúrbio rico da Inglaterra. É o resort, o templo, o paraíso, a redoma de vidro onde os moradores de Brooklands oram e comungam diariamente – entre máquinas de lavar, canais de tevê a cabo, praias artificiais e ursos de pelúcia.

Do autor de Crash e Terroristas do milênio (ambos impressionantes, recomendo), eu não esperava um olhar menos demolidor para a humanidade. Como os zumbis de Romero, os figurantes da trama zanzam feito sonâmbulos em escadas rolante e praças de alimentação. O personagem principal é um publicitário que, como poucos, entende as engrenagens daquele refúgio de concreto e ar condicionado – não há marketing mais eficiente, ele sabe, que a crueldade associada a espetáculos esportivos.

O livro foi criticado por repetir procedimentos típicos da obra de Ballard: a distopia quase cega, o clímax megalomaníaco (novamente, o primeiro capítulo é lúcido; o último é doentio), a crítica feroz ao consumismo e uma queda pelo camp (em vários momentos, o discurso é pura auto-paródia). Mas existe uma novidade importante: o protagonista não é apenas vítima de um novo tipo de fascismo, mas atua (cinicamente) como um arquiteto do mal. É aí que Ballard elege os grandes alvos da vez: os intelectuais que, com boas ou más intenções, lançam lenha no inferno do ser humano. Como de costume (e como o Romero de Diário dos mortos), leva esse ataque às últimas consequências.